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PARTE I – “ESTAMOS MUDANDO MODELOS”: A INTENCIONALIDADE E

1.3. O desenho da mudança: as redes assistenciais em saúde

No contexto da saúde de Fortaleza, a ideia de redes foi posta nos seguintes termos: ”trabalhar com o conceito de rede é estabelecer um diálogo construtivo com

outras áreas do conhecimento, como forma de responder aos complexos desafios da produção da saúde e, ainda, potencializar a organização e o funcionamento do modelo

de atenção integral à saúde”. (FORTALEZA, 2006, p.34). Desse modo, pressupõem o

desenvolvimento de ações articuladas, objetivos e ações compartilhadas.

O Modelo de Gestão e de Atenção Integral12 de Fortaleza busca atender a perspectiva de formação de redes, por meio de um desenho administrativo de cinco Redes Assistenciais (RAs), produtoras de serviços e de cuidados progressivos em saúde, quais sejam: Estratégia Saúde da Família, Atenção Especializada, Urgência e Emergência, Hospitalar e Saúde Mental. As informações da inteligência epidemiológica (vigilâncias epidemiológica, sanitária e ambiental) e da gestão (áreas de planejamento, administrativa, financeira e jurídica) são potencializadoras do sistema por favorecerem as tomadas de decisões e as vinculações das RAs (ANDRADE, 2006).

A proposta, ou apenas alguns aspectos desta, surgiu para os informantes da pesquisa como importante para que ―a gente se entendesse enquanto sistema‖, mesmo

com dificuldades inerentes à organização de ―todo processo”.

A própria organização da rede a gente sabe que tem dificuldades e vai existir em todo processo, (...), essa organização das redes de

atenção, das redes assistenciais ela também foi importante pra que

a gente se entendesse enquanto sistema né, o que compete a uma

rede, o que compete a outra muito embora algumas que hoje são redes a gente acha que não seja uma rede – GF Regional

Permitiu, pois, notar que o sistema de saúde se constitui de vários serviços, de complexidades e tecnologias diferentes, e que precisa se articular para garantir a integralidade da atenção. Pelo dito, parece-me que o fortalecimento de um discurso

12 Modelo de Gestão e Atenção Integral à Saúde é como é nomeado o desenho de organização do sistema de saúde de Fortaleza, embasado na proposta de redes assistenciais de saúde e políticas estruturantes.

institucional de redes proporcionou a imagem do sistema de saúde como um todo. Para Capra (2006):

Aquilo que denominamos parte é apenas um padrão numa teia inseparável de relações. Portanto, a mudança das partes para o todo também pode ser vista como uma mudança de objetos para relações. Num certo sentido, isto é uma mudança figura/fundo. (2006; p.47).

Esta ruptura das partes para o todo, de figura/fundo, caracteriza a percepção humana como não estática. Refere-se à tendência humana em organizar as percepções sobre o objeto (a figura) e o plano contra o qual ele se destaca (o fundo), entendendo que é fundo em um dado momento pode se tornar a figura de outrora, e vice-versa.

A reorganização do sistema em redes favoreceu, progressivamente, a mudança de figura/fundo, onde a captação da imagem do todo é destacada. Há um salto de percepção que pode favorecer que a relação entre as os pontos (serviços, política, espaços da gestão) seja entendida como sistema, interdependência das ações e agentes. Isto atenderia ao pressuposto de rede como produtora de autonomias compartilhadas que permitem ultrapassar dificuldades do sistema de saúde:

A utilização do conceito de rede é fundamental, à medida que apresenta e fortalece novos arranjos organizacionais e sociais, que

favorecem o desenvolvimento de processos emancipatórios, coletivos, solidários e compartilhados. Estes processos contribuem

para o conhecimento, o entendimento e a realização de intervenções em situações complexas. Situações essas não compreendidas, problematizadas e solucionadas pelas formas tradicionais de organização e de gestão. (FORTALEZA, 2006). (Grifos meus).

Apesar dessa capacidade do modelo em redes favorecer a „emancipação‟, não é possível, contudo, entendê-lo como algo plenamente constituído em Fortaleza, pois constitui um devir. Orientou e permitiu maior organização, mas está em processo, e há questões que precisam ser revistas: „algumas que hoje são redes a gente acha que não

seja uma rede‟.

Ainda sobre o posicionamento da gestora, considero-o crítico: mantém a consciência histórica (olha para o passado, reflete sobre o presente) e faz „a gente se

entender‟ como um coletivo interconectado. Essa compreensão sobre as redes,

entretanto, não foi homogênea. Para alguns, ainda é uma concepção restrita a alguns agentes:

(...) eu acho que não está muito claro para o todo dos trabalhadores, aquele que ta lá atendendo né não existe muita clareza de qual é a política de saúde de Fortaleza (...) Essa questão das redes eu acho que ela ainda ta muito dentro da gestão e mesmo dentro da gestão eu digo nível central, regional. (...), até porque ainda acho que a gente tinha que ter esse aprofundamento do que nós mesmos entendemos por rede. GF Regional.

Aqui, foi considerada a necessidade de um aprofundamento político e conceitual e ampliação da discussão do modelo de Fortaleza no âmbito local. Capto desse discurso uma curiosidade: até que ponto o propósito da gestão é entendido pelos profissionais e outros integrantes do sistema? A pesquisa não se propõe essa pergunta, mas divago em minhas lembranças13 e considero que ainda é preciso o amadurecimento da proposta de Fortaleza junto com o maior número de agentes. Afirmo, entretanto, que não é preciso apenas um alinhamento político e teórico/conceitual, a importância da dimensão técnica14, também referida nos grupos focais de modos diferentes.

Os participantes da pesquisa consideraram que este modelo ainda mantém antagonismos, principalmente pela manutenção da fragmentação e manutenência de práticas ainda tradicionais:

A própria atenção básica o sistema é fragmentado, ele é encaixotado, por mais que a gente tente dizer que não, mas ele ainda é, e A isso reflete muito lá, então eu acho que a gente ainda vive esse

antagonismo e eu acho que a gente podia ter evoluído mais,

acredito nisso. Mas aí por diversas razões eu acho que a gente sofreu com isso e sofre ainda algumas conseqüências com relação a isso né e eu acho que isso reflete lá na ponta um pouco com relação ao modelo.

Isto quer dizer que o modelo traz antagonismo porque ainda há uma distância entre o desenho e sua prática. Pergunto-me: „Por mais que a gente tente dizer que não‟ quer dizer ser difícil avaliar nossas fragilidades? Retornando da breve provocação, ora, toda mudança histórica em sua raiz dialética, mantêm o conflito e a interconexão entre o antigo e novo (OUTHWAITE E BOTTOMORE, 1996). Em Fortaleza, pela diversidade

13 Em 19 de fevereiro de 2008, numa das primeiras atividades da Especialização em Saúde da Família e Comunidade, realizamos oficinas regionais com os profissionais a partir do modelo adotado em Fortaleza. Nesses encontros, havia representantes das redes assistenciais (Saúde da Família, Hospitais e Saúde Mental), da vigilância em saúde e conselhos de saúde. Foi um dos momentos de conhecimento e de problematização a partir de trabalhos em subgrupos. Era percebível, contudo, a necessidade de amadurecimento das redes no âmbito regionais e locais, principalmente quanto a articulação entre serviços (CSF, CAPS, Hospitais, vigilâncias...).

14Chamo dimensão técnica o ‗como fazer‘. Captei dos discursos fragilidades ainda no como organizar processos da gestão, como organização das rodas, planejamento de ações e gerenciamento de recursos.

de necessidades, interesses, poderes e papéis, o propósito de fortalecimento do SUS será sempre processual, com idas e vindas; e não é possível pensar que a mudança se dará apenas quando atingir o formato do modelo definido por esta gestão. Como disse Coelho (2008), o grande problema dos modelos teóricos é erigi-los à categoria de verdades eternas e incontestáveis. Desse modo, não abordarei no próximo item este desenho como meta a ser alcançada em seu ideal, mas como movimento que poderá orientar mudanças no modo de organização dos serviços de saúde. Aviso, de antemão, ao leitor que o item ‗território como espaço de constituição de redes‘ será mais uma reflexão minha do que análise de material empírico, por entender a necessidade do aprofundamento conceitual, tanto da dimensão de redes, como de território para qualificar o sistema de saúde de Fortaleza, como para criar espaços de encontro entre os agentes do SUS. Aliás, não poderia escapar de falar sobre este tema, sendo preceptora de território15.