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PARTE II – A PRÁTICA DA GESTÃO EM SAÚDE: CONSIDERAÇÕES

2.2. As relações entre as diferentes instâncias da gestão

A atual estrutura administrativa de Fortaleza advém de duas reformas administrativas. A primeira foi em 1997 e a segunda em 2001, com a intenção de aprimoramento. Ambas as reformas ocorreram na gestão do Prefeito Juraci Magalhães, com a justificativa do alto crescimento da Cidade nos últimos anos e a necessidade de descentralização mediante regionalização, aproximando a Administração Pública municipal da população (ANDRADE, 2006).

Hoje o desenho administrativo do Município é composto por estruturas de apoio, como Procuradoria Geral do Município, Gabinete da Prefeita e secretarias temáticas e

regionais. As secretarias temáticas são: Turismo; Esporte e Lazer; de Defesa do Consumidor, Assistência Social, Planejamento e Orçamento; Saúde; Educação; Meio Ambiente e Serviços Urbanos; Desenvolvimento Urbano e Infraestrutura; Finanças; Desenvolvimento Econômico; Administração.

As seis secretarias executivas regionais (SER), instâncias executoras, possuem um secretário executivo (‗prefeito regional') que administra seis distritos (saúde, educação, assistência social, infraestrutura, meio ambiente e finanças). Cada distrito possui um ‗chefe de distrito‘ que atua como secretário setorial da regional.

A relação entre secretarias temáticas (saúde), regionais (distritos de saúde) e serviços de saúde foi vista pela necessidade de maior aproximação da dinâmica/cotidiano do trabalho entre diferentes níveis de gestão; ou seja, solicitam que as pessoas que trabalham na SMS conheçam a realidade das regionais e das unidades de saúde (―O que faltou mais a nível central é descer pro nível local”), tanto pela necessidade de apoio, como também para a maior contextualização evitando as ‗coisas

de cima pra baixo‟.

Houve coordenadores e gestores regionais que referiram também a importância dos profissionais e gestores da regional ―estar mais presente no cotidiano da unidade,

não só em dia de campanhas”. Um exemplo vem da queixa dos coordenadores sobre a

―retroalimentação das informações‖. Dizem que o nível central tem a “grande cobrança

de passar as informações” (indicadores e produtividade), mas não há retorno para os

centros de Saúde da Família quanto ao processamento destas. Posso dizer, nesse caso, que há ênfase na tarefa e não no produto, que é gerar ferramentas para o trabalho planejado das equipes.

Enfim, me refiro a Andrade (2006), quando ressalta que o desenho administrativo de Fortaleza, mesmo com as intenções nobres, traz consigo dilemas:

O conflito de poder em Fortaleza ocorre em três esferas: das secretarias centrais, intersetoriais, com os seus coordenadores setoriais; das secretarias centrais com os secretários regionais e das coordenações setoriais com os secretários regionais. As secretarias centrais sentiram dificuldade de articular as coordenações regionais, que têm sua base setorial construída historicamente, e diálogo direto entre outros níveis de governo, como é bastante visível no caso da saúde. E tanto as secretarias centrais com as coordenações setoriais tiveram dificuldade em aceitar o grau de autonomia, até mesmo de planejamento, das secretarias regionais, sendo visível o dilema entre o planejamento regional e o planejamento central, quem planeja e quem executa. (P.278).

Os conflitos de poder, além de indefinição dos papéis (quem planeja, quem executa) é posto como dilema, que é apresentado pelos entrevistados desta pesquisa através das distancias e, ao mesmo tempo, pela interdependência entre as três instancias da gestão.

Apesar das críticas ao processo de trabalho, paradoxalmente indicaram que há também uma aproximação entre os agentes da gestão:

(...) a gente tem essa facilidade de chegar pras pessoas e as pessoas também tem facilidade de chegar pra nós e perguntar o que ta acontecendo e até de criticar e a gente às vezes até dizer é, de fato existe um problema, mas a gente ta trabalhando pra que não aconteça mais, então existe proximidade e é por isso que talvez as coisas sejam melhores. GF Regional.

Esta ‗facilidade de chegar‟ melhora as tensões do trabalho por compartilhar as dificuldades. A categoria que mais expressa esta aproximação entre as pessoas foi definida por ―acesso‖:

O coordenador tinha acesso ao chefe da atenção básica (responsável pela atenção básica na regional) que tinha acesso ao chefe de distrito, não existia aquela coisa do profissional chegar e ter o acesso direto ao chefe de distrito, tinha que ser uma coisa hierárquica, então ssim, hoje não.

O acesso ficou mais fácil, a nível central, a gente pra ter um acesso alguém daqui era super complicado e hoje em dia não, você tem acesso até os secretários, se você quiser né. GF Coordenadores CSF.

Há, pois, entraves no processo de trabalho entre instâncias da gestão, mas ampliou-se a comunicação entre vários agentes do sistema de saúde – fator importante que indica uma diminuição da hierarquização, pois, apesar das amarras burocráticas e da existência de relações de poder, houve maior flexibilidade entre os diversos gestores de serem procurados diante das dificuldades, independentemente do local de trabalho e dos meios de comunicação, desde secretário ao coordenador do centro de Saúde da Família.

Neste sentido há um avanço na mudança de modelo da gestão. O desenho administrativo ainda dificulta a integração, operacionalização das políticas e a distribuição do poder, contudo indicaram maior horizontalidade tensionada pela

formação de vínculos (“essa parte de relacionamento eu acho que ficou muito boa”), provavelmente também fomentado pelos espaços criados de compartilhamento do trabalho (abordado na Parte III desta análise).

O acesso, neste caso, permite a interação de agentes e sugere maior democratização da gestão e, por conseguinte, de existência de terreno para a participação. Aliás, como já expressei, o adjetivo ‗participativa‘ também foi usado para caracterizar a gestão de Fortaleza: ―a gente se sente bem porque ta numa gestão

participativa que ouve, que deixa ouvir e que estimula as pessoas”. Porém:

(...) mas a gente sabe ainda que existem algumas coordenações

locais de unidade de saúde que tem essa dificuldade de permitir que as pessoas opinem e que ela seja gestora, mas que possa abrir

mão de decisões por coletivo da unidade, existem essas dificuldades. E tem também profissionais que querem esse direito de voz, de falar, de opinar, de dizer sim e dizer não, mas que não usam isso bem, porque na hora que se coloca então, vamos lá, qual a sua sugestão? Qual a sua proposta? Faça! E as pessoas recuam, por que é melhor colocar responsabilidade na dificuldade do coordenador e não na sua autonomia e liberdade pra fazer ou dizer o que pensa.- GF Regional.

Alguns se apropriaram, exercitam e proporcionam o direito à cidadania, à voz e à escuta, mas existem pessoas que concentram as decisões e outras que apenas usam da participação como discurso, pois não assumem a corresponsabilidade, consequência inerente à participação.

Observo que o discurso democrático está incorporado pelos gestores e profissionais. A participação é experimentada com o desafio de reconfigurar valores e distribuir poderes, mas ainda existem muitos desafios para efetivar a democratização da gestão.

Ainda sobre a dimensão do acesso entre as pessoas do sistema de saúde, foi dito que não quer dizer garantia de resolubilidade.

(...) acho que existe a diferença entre o acesso e a resolutividade, eu posso ter muito bom acesso ao secretário de saúde, mas o problema é que nem sempre ele vai poder resolver o meu problema e vai continuar acontecendo aquele mesmo problema, aquele entrave, aquela trava na gestão. GF Coordenadores CSF.

Existe a intenção de resolver os problemas, mas ―às vezes fica de mão amarrada

disseram que as pessoas possuem ‗boa vontade‘, no entanto há a necessidade de um modelo da gestão mais ágil, flexível e resolutivo, contudo, esta boa vontade em que o problema é na „burocracia‘ não foi unânime no discurso. Alguns dizem que existem pessoas com ‗má vontade‘.

Sobre isto, considero que muitas vezes a percepção de que outra pessoa possui ou não vontade pode refletir uma superficialidade na análise nos processos da gestão, principalmente quando for desconectada do contexto, política e estrutura da gestão. Como venho abordando, entretanto, também esse querer e não querer podem vir a indicar os graus de sujeitos implicados com o trabalho, com o SUS.

Esta percepção do outro está também atrelada aos cargos, funções e lugares que, pelo dito na pesquisa, concluo que condicionam posicionamentos e sentimentos sobre o trabalho, e isto influencia na formação de autonomia Em seguida, trarei um pouco deste aspecto que colabora para compreender a interconexão das instâncias da gestão.