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PARTE I – “ESTAMOS MUDANDO MODELOS”: A INTENCIONALIDADE E

1.7. O concurso público e o perfil do trabalhador

O concurso e a contratação de 300 equipes de SF em Fortaleza, em agosto de

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Estas questões são postas no livro Pedagogia da Indignação de Freire. Este título foi escolhido por Nita Freire, esposa/companheira de Paulo Freire, para nomear o livro que contém suas Cartas pedagógicas e outros escritos.

200630, foram visto como um marco, segundo coordenadora a de CFS: ―isso aí pra mim foi um avanço, um sonho que a gente tinha a nível de esquerda, pensando

ideologicamente, e a gente conseguiu ver isso na gestão”. Novamente, o ideológico:

(...) Não podemos descartar o ideológico na formação da subjetividade humana, nem pensar que este é apenas um aspecto secundário da formação individual ou da identidade. O ideológico como condição da consciência, para a subjetividade, constitui-se, também, favorável ou desfavorável, impulsionador do sujeito ou opressor, permitindo ou não ao individuo fazer-se ou refazer-se dentro da coletividade em que está (Góis, 2008, p.52).

Para o autor citado, o que molda a consciência é a ideologia. Neste entendimento a Coordenadora apresenta o concurso público como um ‗pensar ideologicamente‘ que impulsiona o indivíduo fazer-se dentro da coletividade; um ‗sonho‟ que, provavelmente, de acordo com as tradições de esquerda, aponta para a não-exploração da força de trabalho, garantindo direitos e desprecarização do trabalho31 com raízes numa preocupação social.

Esta não foi, porém, a única representação ideológica do concurso. Para uma coordenadora, “o chamativo do concurso é apenas a estabilidade do serviço público, de

uma carreira”, outra diz ser ―simplesmente a questão monetária‖.

E isto acarreta o que os coordenadores nomearam de ausência de perfil: “muitos

profissionais que passaram no concurso realmente não tem perfil de PSF e isso realmente dificulta o trabalho”. Este julgamento não perpassou apenas pelos

profissionais, também dizem haver gestores sem perfil.

O que seria o perfil para os informantes da pesquisa? Em síntese, dizem que perfil é compromisso, responsabilidade e identificação com o trabalho na ESF.

Exprimiram que ―se você não tiver compromisso você não consegue gerenciar

um Programa Saúde da Família”. Para eles, há uma complexidade no trabalho em

Saúde da Família e sem compromisso não é possível superar as dificuldades encontradas no cotidiano. A responsabilidade representa a maior/menor implicação no

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Fortaleza aderiu, em 2005, ao concurso estadual de base municipal, coordenado pela Secretaria da Saúde do Estado. Após a divulgação dos aprovados, a Capital foi um dos primeiros municípios do Estado a efetuar a convocação. Com a contratação de 300 equipes, em 2006, a Prefeitura de Fortaleza ampliou a cobertura da Estratégia Saúde da Família de 15% para 43,44% da população local.

31 Após diversas negociações, o Plano de Cargos e Carreiras do município de Fortaleza, incluindo os profissionais do SF, foi aprovado em 2007.

acompanhamento de usuários e famílias:

...muitos profissionais eles querem ta ali, atendem e ir pra casa, não querem ter aquela responsabilidade por aquele território, saber que atrás daquela depressão tem N problemas naquela família, é você ver além do consultório, então eu acho que perfil é você ta vendo isso. GF coordenadores CSF.

Um coordenador trouxe a diferença entre querer estar no trabalho, reproduzindo um modelo tradicional de atenção, e atuar numa perspectiva de saúde ampliada e integral. Para eles, o concurso não garante o que definem como perfil: “É aquela coisa,

emprego todo mundo quer, trabalho não”. No entanto, há ainda muitas exceções quanto

ao querer o emprego: “praticamente dois terços dos profissionais médicos que

entraram acho que já desistiram do concurso”.

Ora, a formação e a representação social, individual e social, dos profissionais médicos não estão na perspectiva da atenção primária em saúde: este é um desafio da ESF em âmbito nacional (BRASIL, 2007) Com certeza a desistência de número significativo de profissionais mereceria estudo aprofundado. O que implica/desencanta o trabalhador? Esta pergunta não será respondida neste estudo, mas, como trarei a posteriori, fica a indicação de que, além de ideologias individuais e sociais que permeiam interesses e desejos do trabalhador, o modo de organização dos serviços e o impacto com a realidade das comunidades periféricas da cidade são também condições a serem analisadas na adesão ao projeto ESF/SUS.

Sobre este tema, ainda posso acrescentar uma situação singular vivida por uma coordenadora. Um caso de um profissional que não ‗gosta do que faz‘:

Ele chegou pra mim e colocou, "eu tenho trinta e três anos de idade, sete anos de formado e estou infeliz, eu não gosto do que faço, eu não sabia que o PSF era atender pessoas onde eu não tenho como

resolver totalmente o problema deles e que eles vão voltar sempre

pra mim toda vida mais doente. E eu não sei até que ponto eu estou ajudando" e esse médico se ausentou, tirou licença, passou um ano e três meses de licença e a controladoria agora obrigou ele a se apresentar, a voltar, e ele voltou dizendo que vai batalhar e vai sair da regional, em momento algum ele diz assim: "eu vou me demitir", mas em todo momento ele diz que não vai trabalhar com PSF porque não gosta.

Ele não está feliz e cria formas de distanciar-se do trabalho. Estudos apontam a relação entre trabalho, saúde e subjetividade na constituição do sofrimento psíquico.

(SAMPAIO, RUIZ e BORSOI, 1999). Isto prova a necessidade de cuidado também com os trabalhadores, respeitando suas condições, interesses e desejos pessoais (CAMPOS, 2003), no entanto, até que ponto, neste caso, constitui-se a responsabilidade deste profissional sobre sua própria ‗infelicidade‘ no trabalho? ‗Eu não tenho como resolver

totalmente o problema‟ poderia ser interpretado como uma ferida na onipotência

médica, tão reforçada historicamente? Estas serão indagações sem resposta, pois há apenas a versão da coordenadora, a qual traz um questionamento sobre as licenças remuneradas do profissional. Aproveitando-me desta ilustração, porém, novamente, uso as palavras de Freire (1979):

(...) se nos interessa analisar o compromisso do profissional com a sociedade, teremos que reconhecer com ele, antes de ser profissional, é homem. (...) se seu compromisso como homem, como já vimos, não pode fugir, fora deste compromisso verdadeiro com o mundo e com o homem, que é solidariamente com eles para a incessante procura da humanização, seu compromisso como profissional, além de tudo isto, é a dívida ao fazer-se profissional. (P. 20)

O profissional, ontologicamente, possui uma ‗dívida‘ com o social. Freire (1996) diz que a humanização do homem faz-se também por sua consciência histórica de que ao se fazer profissional, o fez também nas bases de uma sociedade desigual. Assim, o social urge e é preciso perguntar qual o limite entre o direito pessoal e coletivo. Não quero aqui negar as dificuldades no processo de trabalho dos profissionais de saúde e seus incômodos. Também jamais proporia a anulação da diversidade e da individualidade, querendo que todos os trabalhadores ‗gostem‘ de atenção primária em saúde, nem induzir que a responsabilidade da implicação cabe apenas ao trabalhador. Apenas insinuo a ideia de que o entrelaçar entre privado e público; entre subjetivo e objetivo, merece maior aprofundamento para compreender a constituição de sujeitos do trabalho.

Para finalizar esta dimensão do vínculo empregatício, trago a insegurança como outro aspecto que „desmotiva‟ o trabalho:

Hoje eu conto com um técnico e amanhã ele ta altamente desmotivado. Porque ele não tem segurança nenhuma e ainda é pior do que dos terceirizados, porque os terceirizados eles ainda tem um vínculo e os cooperados estão totalmente desamparados - GF Regional.

Outras formas de contratação foram vistas como um limite da gestão que prejudica a vida pessoal dos trabalhadores, o compromisso com o trabalho e „incerteza

se aquele grupo continua‟. Aliás, os coordenadores trouxeram as próprias situações de

insegurança ao serem cargos comissionados: ―é a gente saber que ta ali de passagem, a gente não é um cargo efêmero né, então muitos vezes isso aí pesa bastante no próprio

andar, no próprio transcorrer da gestão”.

Do exposto, concluo que o vínculo empregatício é fator importante para a formação de sujeitos no trabalho, no entanto não é condição sine qua non. Há várias pessoas sem condições estáveis no trabalho, quanto à remuneração e direitos trabalhistas, mesmo assim implicadas; também como profissionais concursados que não criam raízes com o trabalho. Isto não invalida a imprescindível necessidade de garantir direitos trabalhistas e melhores condições de trabalho por uma questão de justiça social e desenvolvimento profissional.

Acrescento que o concurso, quando acompanhado sobre uma reflexão sobre projeto de vida, pode favorecer maior implicação com o trabalho. Presenciei de profissionais da rede a afirmação: „nos próximos 20, 30 anos estarei nesta unidade de

saúde‘, o que significava, com outras palavras, ‗preciso fazer algo, este é meu futuro‘.

Portanto, o concurso tem o potencial tanto de acomodação, como exposto pelos entrevistados em alguns casos, mas também de fortalecer a permanência do trabalhador que, consciente de sua situação e sensível à realidade da população, pode criar tensionamentos para mudanças.