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PARTE III – ESPAÇOS POTENCIAIS DE FORMAÇÃO DE SUJEITOS

3.2. A política de humanização como um ―reacreditar‖

Outra possibilidade singular de fortalecimento do sujeito, diminuição das desigualdades no acesso à saúde, respeito às diversidades e cidadania, promovida por uma gestão em saúde, pode ser gerada por uma política de humanização do SUS. A Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão no Sistema Único de Saúde – Humaniza – SUSentende por humanização a valorização de usuários, trabalhadores e gestores. Os valores que norteiam essa política são a autonomia e o protagonismo dos sujeitos, a corresponsabilidade entre eles, o estabelecimento de vínculos solidários, a edificação de redes de cooperação e a participação coletiva no processo da gestão (BRASIL, 2004)

A Política de Humanização no Município de Fortaleza, desde 2005, está entrelaçada à Política de Educação Permanente em Sistemas de Saúde e a Gestão Participativa na Produção de Saúde. Guarda dimensões objetivas e subjetivas na produção da saúde no contexto local, sendo questões objetivas aquelas relativas à

garantia dos princípios de acessibilidade e resolubilidade da atenção53. Quanto à dimensão subjetiva, destacou-se o grande movimento desenvolvido junto aos gestores e trabalhadores do Sistema Municipal de Saúde, desencadeando um processo de educação permanente em humanização na saúde (ANDRADE et al, 2006). Sobre este último, tive a responsabilidade de coordenar um processo de formação em larga-escala..

Tínhamos definido a meta de mobilizar por adesão cerca de 5000 trabalhadores no Ginásio Paulo Sarasate em quatro sábados para um curso de extensão universitária, em parceria com a Universidade Federal do Ceará. Naqueles dias de muita correria, perguntava-me: o que estou fazendo aqui? Com péssimas condições de trabalho, articulando um curso em larga-escala, se eu acredito é no diálogo como ação transformadora? Hoje afirmo ter sido um espaço de afirmação de um projeto para a saúde embasado no SUS. Demarcaram-se, nas aulas, teatro e músicas, uma opção técnico-política pela humanização, a qual, como política pública na área da saúde, abarca concepções como clínica ampliada, cogestão, matriciamento, vínculo, ambiência, dentre outros. Isto talvez tenha contribuído bastante para a cointencionalidade de mudança descrita na primeira parte da análise.

Os momentos de reflexão sobre o processo de trabalho vieram depois. O mesmo curso referido teve um desdobramento de 20 horas/aula em turmas menores, que agregavam pessoas de um mesmo serviço de saúde54; mas, a pergunta de sempre: o que, após quatro anos da gestão, foi dito pelos informantes da pesquisa sobre a humanização em Fortaleza e o que isto tem de relação com o sujeito?

Este tema não foi aprofundado no grupo, mas alguns indícios foram elaborados. Um deles foi a retirada das grades dos centros de Saúde da Família55.

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Exemplos de ações da dimensão objetiva apenas no ano de 2005: fim do Cartão-Saúde como barreira ao atendimento em qualquer unidade da rede; universalização do acesso ao medicamento básico, com a garantia de sua disponibilidade e acesso em todas as unidades de saúde, independente do local da consulta (este investimento na rede, em 2005, foi em torno de R$ 11.000.000,00); gestão das filas noturnas nas unidades básicas de saúde, reduzindo-as em quase maioria das unidades; o processo de territorialização da cidade na perspectiva de organização dos serviços; a implantação de equipes de Saúde da Família em 21 áreas de risco do Município e a reforma e equipamento nas 88 unidades básicas de saúde, com investimentos da ordem de R$ 3.200.000,00 (três milhões e duzentos mil reais). (ANDRADE et al, 2006). 54 Este segundo momento ocorreu em janeiro e fevereiro de 2006. Para tanto, houve formação de facilitadores – Fortaleza Humaniza – SUS, com o objetivo de capacitar 150 profissionais, distribuídos em três turmas de 50 pessoas, para serem facilitadores do processo de implementação da PMH e das 20h do curso no próprio local de trabalho dos participantes,

com uma metodologia participativa.

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Antes das reformas de 2005, as unidades de saúde eram cheias de grades para proteção dos profissionais O principal argumento era a violência na periferia da Cidade.

hoje com a característica dessa gestão tirou a grade de dentro dos

postos de saúde e isso já mostra uma humanização tremenda né,

porque eu tava vendo a foto da unidade onde eu estou hoje, é uma foto que é uma grade né, posto branco com aquela grade azul e a pessoa lá embaixo com o computador na frente assim separando o usuário, além da grade ainda tem o computador e ele mais distante ali. - GF Coordenadores CSF.

As grades apresentaram-se como símbolo da separação entre usuários e trabalhadores. Retiraram-se as grades concretas. Pergunta-se: e as grades subjetivas foram retiradas? Com certeza, não se eliminam as distancias entre trabalhador e usuário na mesma velocidade que as grades de ferro, mas o ato de uma gestão admitir em sua ambiência esta barreira de acesso facilita novos modos de relação, além do respeito aos usuários, como foi expresso:

A questão das grades nas nossas instituições, nas nossas unidades de saúde elas tão saindo com naturalidade, ela sai e de repente e a

gente sente aquele impacto, (...) depois a gente vai assimilando e as pessoas também não tão agressivas como antes, existe né a

violência e a coisa, mas a gente sente que as pessoas estão se acomodando. Eles estão também se apropriando os seus direitos e ao mesmo tempo os seus deveres de respeito mútuo né, as chefias elas tão ouvindo mais, os nossos gestores acho que por conta dessa mudança de postura. – GF Coordenadores CSF.

Uma ação concreta, pois, origina a transformação das pessoas. Não elimina, mas diminuem medos, barreiras. A população ainda possui muitas reclamações sobre como é recebida nas unidades, como os profissionais reclamam dos usuários, no entanto, comentaram que vão assimilando, aos poucos, uma nova proposta de atenção e mudam comportamentos. Neste momento, lembro-me de Campos (2007) que poeticamente diz:

um sujeito não pode constituir-se apenas com riscos na água; alguma ponte, algum modo de navegar, algum caminho, alguma terra nova (...), algumas destas coisas são necessárias para que o sujeito se construa (p.55). A retirada das grades, assim como a implantação do acolhimento na atenção básica, parece ter sido base para fortalecer algumas feituras. O que é, porém, o acolhimento?

O acolhimento no campo da saúde deve ser entendido, ao mesmo tempo, como diretriz ética/estética/política constitutiva dos modos de se produzir saúde e ferramenta tecnológica de intervenção na qualificação de escuta, construção de vínculo, garantia do acesso com responsabilização e resolutividade nos serviços. (BRASIL, 2006, p.18).

A implantação do acolhimento, tanto como nova posição de receber os usuários, como tecnologia da gestão, foi vista pelos gestores como significativa para a organização dos serviços. A fala de uma coordenadora mobilizou bastante o grupo focal:

A humanização foi muito bom porque eu consegui engravidar

depois que eu chegou o acolhimento, eu era tão tensa na unidade resolvendo problemas com filas e mais filas de madrugada e quando chegou acolhimento e que a gente conseguiu implantar em toda unidade eu relaxei que eu engravidei.

Esta coordenadora revela o cruzamento entre trabalho e vida pessoal – o desejo de engravidar alcançado quando conseguiu relaxar por um processo que reflete sobre a cidadania na gestão. O arquétipo da mãe surgiu em sua possibilidade de acolher, gerar vida, ensejar trabalho, diminuir ansiedades.

Sei que o acolhimento ainda é um desafio em Fortaleza. Existe uma incompatibilidade entre demanda e a oferta de serviços. Muitos serviços reduzem o acolhimento à ‗triagem de pacientes‘ e vira uma das principais queixas dos profissionais. Noutras unidade, todavia, percebo um valor de uso agregado ao trabalho. Alias foi um dos temas mais abordados nas mostras do Sistema Municipal Saúde Escola e outros encontros de produções científicas e técnicas.

Outro fator positivo sobre o acolhimento na atenção básica foi ele ter repercussão com os usuários. O termo acolhimento foi incorporado à linguagem não apenas por gestores e trabalhadores:

Quarta-feira eu escutei no curso um usuário dizer assim: "eu não

estou me sentindo acolhido, eu não fui acolhido" usar esse termo

de acolhimento, de acolher, eu achei impressionante em plena emergência notada de gente e ele se reconhecer como direito dele, tava levando a criança desidratada pra casa porque chamou alguém e alguém não atendeu a ele e eu fui pedir desculpa a ele e mostrei o momento que a gente tava passando, aí ele usou esse termo. – GF Regional.

Cria-se uma cultura de indignação, entendam-se alguns direitos e são possíveis outros modos de relação. Por fim, a humanização foi vista como um ―reacreditar” nas

pessoas e no sistema público de saúde.

quando a gente chegou querendo organizar muita gente, que até

remédios chegavam, principalmente omeprazol metade era dos

funcionários e a outra metade quem chegasse na primeira semana,

omeprazol é ouro né e a mesma coisa vaga de dentista, não sei na área de vocês, mas na nossa tinha até uma tabela, trinta reais a

cabeça, então aquele usuário que vem de madrugada e guarda aquela vaga, ele vendia, então havia muito esse domínio, prevenções

e por aí, então foi muito bom porque houve realmente o resgate a da humanização, foi muito apostado isso no acolhimento (...) as pessoas

começaram a reacreditar.

Deste modo, a política de humanização foi apresentada como forma de reacreditar nos processos da gestão, na ética humana. Portanto, é relevante como iniciativa de gestão para coprodução de sujeitos.