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Cisão e integração: Os ―20 horas‖ e os profissionais das equipes do PSF

PARTE I – “ESTAMOS MUDANDO MODELOS”: A INTENCIONALIDADE E

1.8. Cisão e integração: Os ―20 horas‖ e os profissionais das equipes do PSF

Muitos profissionais que atuaram e ainda atuam na rede de atenção básica, dentre estes, enfermeiros, pediatras, gineco-obstetras, clínicos gerais e cirurgiões dentistas, foram admitidos em concursos anteriores pela Prefeitura de Fortaleza. Nas palavras de Frota (2008), no período anterior à expansão de 2006 das equipes de Saúde da Família,

(...) as atuações dos enfermeiros eram restritas aos programas de saúde o que fazia com que estes profissionais delimitassem seus atendimentos segundo suas aptidões e habilidades no manejo de cada programa. Os cirurgiões dentistas operavam exclusivamente na clínica odontológica, inclusive aqueles da ESF. Ações de promoção da saúde, de caráter preventivo e coletivo inexistiam. Existiam ainda

agentes comunitários de saúde nas unidades que não eram UBASFs, estes operavam totalmente desconectados de qualquer profissional das unidades. (P.47).

Em 2005, ano anterior à expansão da ESF em Fortaleza, coexistiam visivelmente dois modelos de atenção básica à saúde, pois das 89 Unidades Básicas de Saúde, somente 26 eram Unidades Básicas de Saúde da Família (FORTALEZA, 2006).

Com a chegada dos novos profissionais, por concurso, houve maior evidencia da existência de práticas diferentes, contudo houve uma personalização dos trabalhadores, símbolo dos modelos. Os entrevistados trazem a produção de uma cisão entre profissionais ‘20 horas‘32 e os profissionais concursados para a ESF.

Segundo uma das coordenadoras do grupo focal, os profissionais do PSF33 foram identificados como os salvadores do sistema de saúde e os ‗20 horas‘ ficaram desvalorizados.

Lá tinha muito esse negócio de quem é do PSF e quem é de vinte horas, que a minha unidade era básica, ah é terrível, então o pior que o PSF chegou como estrela, a salvação da lavoura né "eu sou do PSF" e já foram recebidos com aquele coquetel lá no hotel, tudo chic e passaram aquela semana lá e os coitados de vinte horas nem

sequer um agradecimento por ter segurado a barra esses anos todos, então eles se sentiram muito desvalorizados e essa

desvalorização refletiu muito, eles se revoltaram aí diz assim: "eu não sou PSF, manda fazer o do PSF" aí o PSF diz assim: "eu não vou fazer não porque é área descoberta" aí ficava né no meio, aí eu digo: e agora? - GF Coordenador CSF.

Por esta fala e outras, é trazida a importância de integrar diferentes agentes dos serviços de saúde para a criação de um trabalho compartilhado e não fragmentado. Restou demonstrada a importância de problematização do novo projeto de atenção primária ter sido abordado e aprofundado por agentes diversos, mesmo com uma cultura organizacional e concepções divergentes ao novo projeto34, até mesmo para produzir mudanças mais consistentes.

32

Funcionários da Prefeitura de Fortaleza que atuam na rede de atenção básica por meio de concursos anteriores ao de 2006. Convencionou-se referi-los de ‗20 horas‘ devido este ser o valor da carga-horária que trabalham nas unidades de saúde

33 Os entrevistados ainda referiam-se à Estratégia Saúde da Família como um programa como sua primeira configuração em 2004.

34 Esses profissionais ‘20 horas‘ poderiam fazer a opção por criar ou agregar-se a uma equipe de Saúde da Família, ou mesmo ser profissional retaguarda para as equipes mínimas, trabalhando numa mesma lógica,

Pareceu-me, pois, que esta cisão entre trabalhadores agregou pouco, imprimiu conflitos e minimizou o debate sobre as mudanças na atenção primária de Fortaleza. É uma realidade que reflete no seguinte posicionamento, em que uma gestora disse que o PSF pode ser contaminado pelos ‗20h‘, os ‗cheio de vícios:

O PSF versus vinte horas que já estava há algum tempo com vícios, tem muitos viciados com horário, viciados com dia, viciados com várias coisas em que o coordenador porque tem que driblar porque senão o PSF também vai na onda dos vinte horas. GF Regional.

Pensamentos como este podem fortalecer, em vez de ensejar compromissos, a competição, estigmatização e segregação. E, se assim o for, não contribui para o fortalecimento do SUS, nem mudança de modelos. Muito menos está na direção da democratização, nem de edificação de sujeitos.

Se o leitor observar um pouco mais o posicionamento da coordenadora e o da gestora regional, observará que a primeira (coordenadora) colocou os ‘20 horas‘ numa posição de vítimas e critica a visão dos profissionais da Saúde da Família como os ‗salvadores‘ do sistema de saúde, afirmando que eles se posicionam em lugar de destaque (eu sou do PSF). A gestora regional inverte esses lugares, pois, para ela, os ‘20 horas‘ são ativos, imprimem suas regras e são, de certo modo, perigosos, pois o ‗PSF entra na onda‘, ou seja, são susceptíveis aos ‗vícios‘. Como percebo esses posicionamentos? Apesar de capazes e desejosas de encontrar outras soluções, as gestoras não aprofundaram a temática. Sobre essa superficialidade na leitura da realidade, uso as palavras de Góis (2005) sobre a consciência transitiva ingênua em Paulo Freire: ―Sua captação da realidade se baseia na simplificação dos fatos, pois não investiga, nem se aprofunda nas causas. Vê a realidade de maneira estática. Atua emocionalmente e tira conclusões rápidas e superficiais‖. (GOÍS, 2005, p.108).

mas com funções diferentes. Por exemplo, um ginecologista que atua na unidade poderia ser uma referência para pré-natais de risco das mulheres de 3 ou 4 equipes de SF que estão lotadas naquela mesma unidade de saúde, e não ser um ginecologista que atende mulheres sem priorização e sem discussão com as equipes. Ou mesmo esses profissionais podem ser referência para a população que não é coberta por equipes mínimas, mas está na área de abrangência da unidade, portanto, da responsabilidade de todos os profissionais. Digo ainda que a preparação da rede básica para a ESF também precisa agregar o apoio técnico e administrativo nas unidades, e até mesmo de alguns gestores que possuem pouca experiência e compreensão sobre a ESF.

Pela minha vivência, contudo, posso acrescentar que essa cisão não foi homogênea em todos os centros de Saúde da Família da capital. Em algumas unidades, a integração se deu desde o início, e, em outras, buscou-se reverter esta cisão entre os trabalhadores da rede. Esta afirmação condiz com outra análise trazida por uma gestora regional:

É claro que não é só a chegada deles que isso se transforma, mas nós precisamos no passado e hoje no presente ainda pegar esses profissionais e essas pessoas veteranas que estão na atenção básica e associar, tentar mudar conceitos, sensibilizar essas pessoas. GF Regional.

Ela traz a própria responsabilidade em integrar os profissionais. Nesse trecho, percebo uma tentativa de superar o discurso estigmatizante dos ‗20 horas‘, pois avança para uma síntese entre passado e presente.

Portanto, sobre esta questão, há divergência nos discursos: uns apontam para uma superficialidade na interpretação do problema, outros conseguem se perceber responsáveis pelos problemas da gestão.

Aqui faço uma reflexão sobre velocidade de processos da gestão e reflexão sobre estes. Muitas políticas e ações de grande envergadura foram iniciadas na gestão estudada, certa ebulição no setor saúde estava ocorrendo na cidade com a experimentação de novas políticas e ações, como algumas já citadas. Essas foram consideradas pelos entrevistados como importantes, mas que deveriam ter possuído maior participação e diálogo em sua criação e aplicação. Pareceu-me, portanto, que em alguns processos da gestão a velocidade de implantação não é a mesma da reflexão e apropriação.

O que fazer diante deste descompasso da implementação de políticas com o tempo para o aprofundamento político, conceitual e prático destas? Penso que é preciso associar ambas (ação e reflexão) para evitar a desintegração (ideal e real) e o propósito de qualificação do sistema de saúde não ser apenas de um grupo seleto, aliás, porque, se assim o for, estará tendendo para a fragilidade da mudança. Também penso, no entanto, podendo ser avaliada como incoerente, ser impossível só iniciar um processo quando todos estiverem de acordo, principalmente numa rede de mais de 6000 trabalhadores envolvidos. Dialeticamente algumas sínteses só são possíveis arrimados uma mudança no real e geram-se aprendizagens diante das dificuldades. Contudo, é indispensável

numa gestão, contudos, criar movimentos de avaliações e planejamentos numa permanente produção de consensos.