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O vínculo no território e na clínica como condição de corresponsabilidades

PARTE I – “ESTAMOS MUDANDO MODELOS”: A INTENCIONALIDADE E

1.6. O vínculo no território e na clínica como condição de corresponsabilidades

Antes da convocação dos 850 novos profissionais concursados para a ESF24, houve a experiências das 21 equipes em áreas de risco, as quais foram implantadas, em 2005, de forma emergencial em áreas apontadas pela Defesa Civil num período em que a Cidade sofria bastante com as consequências do período chuvoso. Foram envolvidos 89 profissionais, dentre eles uma enfermeira que hoje é coordenadora de CSF. Ela relata esta experiência:

Foi uma riqueza pra mim de experiência. A gente foi trabalhar numa área do canal que o pessoal não acreditava na saúde, não recebiam a gente e tinham a maior dificuldade em acreditar no nosso trabalho. Então assim, era o médico, a enfermeira, o dentista e uma assistente social, durante o ano antes de chegar as equipes a gente desenvolveu um trabalho de PSF casa a casa, nós fizemos as fichas lá e foi assim uma riqueza muito grande de informação e a gente partilhou com

eles e até hoje eles procuram com a credibilidade que a gente

passou pra eles - GF coordenadores CSF.

disponibilidade em todas as unidades de saúde independente do local da consulta (este investimento na rede foi em torno de 11 milhões de reais); 4) gestão das filas noturnas nas UBS, reduzindo-as em 89% das unidades.

24 O Programa Saúde da Família teve início em Fortaleza em 1998, com apenas 32 equipes. Os profissionais haviam prestado seleção pública, mas tiveram que criar cooperativa pois a prefeitura

Apresenta-se aqui a mudança promovida mediante o estabelecimento de vínculos entre a equipe e o morador da comunidade. É a disponibilidade de o profissional realizar a territorialização, conhecer as famílias, ter informações (fichas do Sistema de Informação da Atenção Básica – SIAB) que solidificam a ‗credibilidade‟

com os usuários. Deste modo, reverte-se o „não acreditava na saúde‟. Provavelmente, para os moradores do Canal do Amuarama, região às margens de um rio e com condições precárias de vida, o „receber a gente em casa‟ não fazia parte de sua representação do que seria um serviço em saúde, provavelmente tanto por ser uma nova lógica de atenção à saúde, como também pela negação histórica aos seus direitos como cidadãos.

Góis (2008) expressa a necessidade de implicação dos profissionais de saúde na realidade da comunidade. Para ele, isso não se faz apenas por diagnósticos, análises epidemiológicas ou processos de territorialização só descritivos, pois é preciso estar junto com os moradores, consolidar convivências na análise e vivência dos modos de vida da comunidade25. Em suas palavras, ―esta análise permite o distanciamento crítico da comunidade e de nós mesmos, e a vivência nos faz entrar sensível e emocionalmente no lugar, identificando-nos com ele, levando-nos a sentir a realidade social profunda”.

(GÓIS, 2008, p.152).

Assim, a inserção na comunidade26 não está na perspectiva de apenas uma instrumentalidade do trabalhador entender o processo saúde-doença do usuário, mas, sobretudo, na sensibilidade de se cocomprometer com as mudanças na saúde dos indivíduos, famílias e da comunidade, junto eles. Neste sentido, a fala da coordenadora trouxe a potência deste contato direto com os modos de vida do lugar e com seus moradores para a formação de sujeitos.

Ainda sobre este tema da relação trabalhador-usuário, recordo-me de que, uma vez, em 2007, num centro de Saúde da Família, um médico de uma equipe estava indignado com a „ignorância‟ da população27. Disse que os usuários achavam que ele

25 Góis (2008) aborda métodos e estratégias de facilitação em saúde comunitária no capítulo 5 de seu livro Saúde Comunitária – pensar e fazer. Dentre os métodos: análise e vivencia da comunidade; o facilitar- pesquisando, observação-particpante e pesquisa-ação.

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Territorialização é o conceito mais utilizado na ESF para referenciar o processo de definição, descrição e diagnóstico da comunidade. Aqui, opto por inserção, termo oriundo da etnografia, por fortalecer as dimensões históricas, culturais e subjetivas na edificação do vínculo com a comunidade, sem negar a necessidade do saber epidemiológico.

27 O médico referia-se também a certa inquietação dos usuários que reclamavam da demora de suas consultas, principalmente os que aguardavam no corredor.

era „balconista‟, incomodava-se por sua demora nas consultas e chegava já dizendo que receitas dele queriam. Ele insinuava querer oferecer uma atenção integral aos seus pacientes, mas apresentava uma dificuldade de empatia (de colocar-se no lugar do outro). Perguntei-lhe: a população é ignorante? Em que momento se indagou pelo motivo do comportamento dos usuários? Como haviam realizado a territorialização? Enfim, busquei criar um momento de reflexão sobre o problema.

Generalizando, esta questão reforça a ideia de que o contato com os valores, ideologia e cultura das pessoas, e as do próprio profissional se faz necessário para atuar na perspectiva da Saúde da Família a que se propõem trabalhar com território definido e criação de vínculos. Além disso, causou-me a impressão de que, apesar de diferenças entre profissionais e usuários, existe algo em comum: o reforço das práticas médicas centradas no medicamento, na doença e no procedimento. Segundo Figueiredo e Furlan (2008),

O que nos interessa destacar é que, na consolidação da racionalidade médica aparece como premissa a busca pela objetivação do sujeito e pela neutralidade na relação médico-paciente, cujo processo de expropriação da dimensão sociocultural, da subjetividade e das possibilidades de manifestação do que é mais especificamente humano no encontro entre usuários e profissionais de saúde. (p.159)

Em virtude da relação trabalhador-usuário, o que se torna necessário para consolidar autonomias? Uma resposta provável: aproximar diversos olhares, criar canais de comunicação, redirecionar a formação dos profissionais de saúde; enfim, estabelecer vínculos, o que permite tanto modificar o modelo da gestão e atenção baseado no pronto atendimento como favorece a corresponsabilidade, a qual, para Paulo Freire (1987) somente pode se realizar na comunicação. Apresento aqui duas vias para o estabelecimento de vínculos: a inserção comunitária, como também a reconfiguração da clínica.

Sobre a inserção comunitária, há como fazer uso de métodos, técnicas, inovações tecnológicas que podem criar condições de ‗(re) encantamento‘ para alguns, ‗conscientizações‘ para outros, com o fazer atenção primária em saúde. Aprofundar o trabalho nos territórios como trazido anteriormente pode favorecer o surgimento de sujeitos não apenas em defesa do projeto SUS, mas em defesa da vida, cidadania, qualidade de vida.

Frota (2008) colabora com a contextualização de alguns fatores objetivos que também dificultam a relação entre trabalhador e usuário em Fortaleza, dentre elas: 1) dimensionamento inadequado de famílias por equipes; 2) apesar de em dois anos e meio alcançou-se 247% de incremento, partindo de 95 equipes em janeiro de 2005 para 267 equipes em julho de 2007, a cobertura da ESF ainda é insuficiente com 38,11%; 3) diferentes estratégias de organização da demanda observadas vêm sendo postas em prática, a depender da cobertura populacional da ESF na área de abrangência dos CSF e da adscrição de território pelas Equipes SF.

Deste modo, posso concluir que questões objetivas e subjetivas convivem na manutenção das dificuldades no estabelecimento de vínculo; responsabilização sanitária; visão integral do cuidado; enfoque familiar; trabalho em equipe, dentre outros desafios da ESF no Brasil, reproduzidas em Fortaleza.

Como alternativa de soluções para o futuro, há que garantir a vontade política de continuar investindo na atenção primária em saúde, como também o incentivo às equipes de Saúde da Família para atuar nos territórios, mediante reflexões cotidianas, processos formativos, disponibilização e uso de métodos participativos28, educação popular e de inserção no território, dentre outros; como também melhoria das condições de trabalho.

Sobre a outra via de fortalecimento de vínculos, ou seja, o redirecionamento da clínica, trago a proposição de clínica ampliada (CAMPOS, 2003) como uma das possibilidades formadora de autonomias. Segundo Onocko Campos (2007):

Se há uma dimensão produtora de autonomia para a clínica, é aquela que – por meio do vínculo – pode-se desenhar um campo de propostas terapêuticas que recoloquem o sujeito no trilho da responsabilização da própria vida. (...) Evidentemente, tal clínica não se articula somente com base em conhecimentos técnicos biomédicos, porém assenta-se muito mais em aspectos relacionais da intervenção profissionais-trabalhadores/usuários. (P.683).

Assim, esta clínica possui a proposta de ampliar o objeto de saber e de intervenção da clínica. Busca reaver as dimensões existenciais, subjetivas e sociais do

28 Em Fortaleza, principalmente a Preceptoria de Território, Cirandas da Vida e o projeto de Extensão Universitária Liga de Saúde da Família (UFC e UECE) se vem buscando fortalecer estudos e práticas de métodos participativos que aproximem trabalhadores, movimentos sociais e populares, usuários, estudantes, professores, dentre outros atores. Partimos do pressuposto que a Estratégia Saúde da Família precisa avança na construção de vínculos no território.

usuário e trabalhador, pela singularidade de cada pessoa, trabalho em equipe, identificação de risco e vulnerabilidade, utilização de múltiplos paradigmas, corresponsabilidade clínica e sanitária, enfim, do incentivo à autonomia (COELHO, 2008).

Cunha (2007) lembra que a manutenção das relações de poder e o monopólio de determinado saber possui implicações importantes para a superação da clínica tradicional. Portanto, não é possível esquecer de que, para criar racionalidades, como de clínica ampliada e inserção comunitária, é necessário reconhecer a existência de relações de poder, muitas vezes reforçada pelas ideologias:

O sistema ideológico apresenta-se diferentemente entre as classes sociais de uma mesma sociedade, torna a vida coletiva heterogênea em suas modalidades ideológicas que, em cada classe social, se apresenta com uma dada configuração social particular. (GÓIS, 2008, p.51).

Eu seria ingênua se considerasse que a aproximação entre saber técnico e saber popular, entre trabalhador e usuário, e até mesmo entre diferentes categorias profissionais necessita apenas de uma abertura para o contato entre as diferenças. Não! Há a circulação de poderes e ideologias de classe que dificultam o vínculo na produção de saúde, portanto, de formação de sujeitos; mas, “os serviços públicos comunitários,

na medida em que lidam com famílias extremamente fragilizadas, necessitam repensar sua tradição autoritária e normatizadora de relação com o mundo popular para não as

massacrarem”.(VASCONCELOS, 1999, p.16).

Para isso, Carlos Botazzo (1999) adverte que o trabalho tem assim que fazer sentido para os trabalhadores. É necessário perguntar aos próprios trabalhadores sobre as coisas e sobre si:

Se o funcionário não pratica o vínculo, se não aderido ao seu trabalho nem o realiza com independência e autonomia, não vá se imaginar que o desvinculado possa realizar o próprio vínculo, qualquer autonomia no outro (P.166).

Esta provocação é justamente sobre a constituição de sujeitos e formação de vínculos. Para ele, há ‗sujeitos-previamente-existentes‟ no campo de definições políticos

ideológicas, sendo assim o investimento na constituição de sujeitos cocomprometido com um projeto democrático de saúde em espaço de conflitos e disputa deve considerar

o que as pessoas percebem de si, de suas histórias de vida e o que são para o trabalho que realizam. Também concordo com o autor (apesar de usarmos diferentes sentidos para o uso de sujeito) por ver coerência e relevância em seu posicionamento.

Diante destas dificuldades de edificação de vínculos, há dois caminhos: cruzam- se os braços pela dificuldade em atuar com relações de poder e ausência de sentidos para o trabalho ou criam-se possibilidades de aproximações entre pessoas e ressignificação do trabalho. Aos que mantêm a capacidade de amar e a esperança, o segundo caminho é a escolha, pois, segundo o poeta popular Ray Lima (2005), ninguém ama de braços cruzados.

Assim se faz necessário remover as armaduras das ideologias de classe que impossibilitam o encontro entre as pessoas. Acredito na minimização de artimanhas subjetivas e culturais, na indignação com a injustiça social e na amorosidade indispensável para desenvolver vínculos, manter esperança e atuar no mundo29. É tanto que escrevo uma dissertação sobre sujeito e gestão. Neste sentido, cabe a gestão em saúde:

(...) eu acho que é essa questão de fortalecimento mesmo dos

sujeitos né, de você ta dando autonomia para que ele olhe onde ele

está e veja quais são as estratégias de enfrentar aqueles problemas trazidos ali pela população, eu acho que é esse caminho que a gente

criou, quer dizer criando né, de a gente ta fortalecendo aquela

pessoa que ta lá frente a frente com aqueles usuários, com aqueles problemas de saúde dando ferramentas para que eles construam dentro de todo, claro, os princípios do acesso, das prioridades da gestão, mas que eles criam as alternativas pra enfrentamento disso aí. - GF Regional.

O caminho da autonomia e fortalecimento das pessoas se criou e está ainda em criação, e isto é um ponto positivo da gestão, mas ainda existem muitas dificuldades como ainda trarei.