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CAPÍTULO III – ANÁLISE DOS PROGRAMAS ELEITORAIS DE TELEVISÃO DAS

2. Perfil e análise dos programas de 2000

2.5. A interdiscursividade

Na introdução do seu livro O Discurso: Estrutura ou Acontecimento, Michel Pêcheux versa sobre a vitória de François Mitterand à presidência da França, em 10 de maio de 1981, para discorrer acerca desse acontecimento político que “remete a um conteúdo sócio-político ao mesmo tempo perfeitamente transparente (o veredito das cifras, a evidência das tabelas) e profundamente opaco.”(Pêcheux, 2002, p. 19). O acontecimento político do momento - a eleição de Mitterand – faz parte de uma teia de outros acontecimentos que foram tecidos antes da vitória do líder socialista.

Entre outras interpretações possíveis em torno da afirmativa de Pêcheux, está dito que o discurso nunca é novo e os enunciados também. Há sempre vários discursos que são retomados por um outro sujeito, pelo Outro, numa relação entre locutor e interlocutor. Sobretudo no discurso político, em que há o embate permanente de forças opostas que vão desqualificando, desconstruindo e desmistificando a imagem dos adversários. O reflexo ‘desse Outro’, da sociedade, dos sujeitos, estão dentro desse discurso, concebendo o dialogismo entre o autor e o outro. O sentido só emerge dessa interação, dessa troca, do interdiscurso.

Em Bakhtin, a questão do interdiscurso aparece sob o nome de dialogismo. É preciso examinar mais detidamente esse conceito. Cumpre, no entanto, inicialmente, afastar duas leituras recorrentes da obra bakhtiniana: a) dialogismo equivale a diálogo, no sentido de interação face a face; b) há dois tipos de dialogismo: o dialogismo entre interlocutores e o dialogismo entre discursos[...]. Essas duas afirmações parecem equivocadas. (FIORIN, 2006, p.165)

Ao contrário, para Fiorin “o dialogismo não se confunde com a interação face a face(...)”(FIORIN, 2006, p. 166). O autor também desconstrói a tese de que há dois dialogismos. “O dialogismo é sempre entre discursos. O interlocutor só existe enquanto discurso.”( FIORIN, 2006, p. 166). Os discursos são construídos a partir de outras vozes, que se entrecruzam e que são (re)significadas por um outro discurso, que aparentemente é novo, mas que nunca é novo. “O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta.”(FOUCAULT, 2006a, p. 26)

Quando se diz que o dialogismo é constitutivo do enunciado, está-se afirmando que, mesmo que, em sua estrutura composicional, as diferentes vozes não se manifestem, o enunciado é dialógico.[...]Todo enunciado

possui uma dimensão dupla, pois revela duas posições: a sua e a do outro.(FIORIN, 2006, p. 170)

A interdiscursividade está presente nos programas eleitorais de João Paulo de forma consciente - como estratégia política e comunicacional de retomar fatos, eventos e discursos que circulam -, e inconsciente, como é próprio do discurso, que nunca é novo, é sempre o já- dito, sempre uma (re)significação de outros discursos, de outros textos. Em vários enunciados aqui investigados, foi possível observar alguns exemplos de interdiscursividade, a partir de categorias e referências que foram se construindo ao longo dos programas de João Paulo. Porque

O interdiscurso determina a formação discursiva. E o próprio da formação discursiva é dissimular na transparência do sentido, a objetividade material contraditória do interdiscurso que a determina. Essa objetividade material contraditória reside no fato de que algo fala sempre antes em outro lugar e independentemente. O interdiscurso é irrepresentável. Ele é constituído de todo dizer já-dito. Ele é o saber, a memória discursiva.[...]Para que uma palavra tenha sentido é preciso que ela já faça sentido (efeito do já-dito, do interdiscurso, do Outro). A isso é que chamamos historicidade na análise de discurso.[...](ORLANDI, 2006, p. 18)

Trabalhando a materialidade dos programas, o texto verbal e não verbal, vai interessar aqui observar a intertextualidade como uma forte estratégia dos programas da Frente de Esquerda do Recife. De acordo com a semioticista Júlia Kristeva, que estudou o dialogismo em Bakhtin, “Todo texto constrói-se, assim, ‘como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto.”(KRISTEVA apud FIORIN, 2006, p. 163). Assim, “o discurso (o texto) é um cruzamento de discursos (de textos) em que se lê, pelo menos, um outro discurso (texto).” (KRISTEVA apud FIORIN, 2006, p. 163)

Alguns exemplos de peças dos programas são significativos para realçar essa estratégia discursiva: No programa do dia 12/10/2000 à tarde, vai ao ar um desenho animado, com um bonequinho na tribuna amarela representando um candidato de camisa azul e gravata (Remetendo a Roberto Magalhães discursando. As cores são da logomarca dele). Chegam no cenário bonequinhos de crianças cantando. O candidato sai do cenário depois que as crianças chutam a tribuna, expulsam-no. Durante a movimentação do desenho, as crianças cantam uma música com melodia da canção infantil que diz “Havia um pastorzinho que andava a pastorar,

saiu de sua casa e logo pois-se a cantar, dó-ré-mi-fá-fá-fá, dó-ré-dó-ré-ré-ré, dó-sol-fá-mi-mi- mi, dó-ré-mi-fá-fá-fá”.” Eis a letra parodiada:

Música (voz de crianças):

“Havia um candidato que vivia a prometer... Mas não cumpria com nada

Meu voto não vai ter Sou mais PT, PT, PT eu sou, sou, sou

Votar eu vou, vou, vou, só no PT Vote 13, vote PT!”

Há um quebra de expectativa discursiva quando se desloca uma canção do universo lúdico-infantil para um cenário político. Esse discurso infantil retomado no discurso político (interdiscurso) “Imerge esse enunciado em uma rede de relações associativas implícitas – paráfrases, implicações, comentários, alusões, etc – isto é, em uma série heterogênea de enunciados, funcionando sob diferentes registros discursivos[...](Pêcheux, 2002, p. 23). É possível deduzir que existe a intenção de vincular a imagem de João Paulo à doçura, à sinceridade e à honestidade das crianças (ele foi considerado o candidato mais carismático entre as crianças). A retomada do discurso de uma cantiga popular (melodia que está no imaginário da população) também reforça a tese de construção da imagem do João Paulo popular, mais do que do João Paulo parlamentar, que foi vereador, deputado estadual - identidades que foram praticamente silenciadas nos programas. A letra da música recoloca ainda uma fixação do “PT”, fortemente marcada, como contraponto ao adversário: mais uma vez a esquerda e a direita, dois lados opostos. No final, as crianças chutam a tribuna na qual está Roberto Magalhães e o expulsa: ‘até as crianças rejeitam o pefelista’, segue a construção de identidade negativa de Magalhães.

Outro desenho animado utiliza as mesmas estratégias. São bonequinhos de meninos e meninas entrando em cena, puxando uma corda com estrela vermelha amarrada. Vozes de crianças cantam uma música que é a paródia do cancioneiro popular infantil “Eu sou pobre, pobre, pobre, de marré, marré, marré...”. Finaliza aparecendo a estrela vermelha, com PT escrito em branco. O fundo da imagem é todo branco. A peça foi veiculada nos dias 12/10/2000 à noite e 13/10/2000 à tarde:

Música:

“Eu sou forte, forte, forte Sou PT, PT, PT

Eu sou forte, forte, forte Sou PT, PT

Vote treze Vote PT”

Outro desenho animado com casinha de porta, janela, chaminé, árvore e a cantiga de roda “Ciranda, cirandinha”, cantada com vozes de crianças. Bonequinhos de crianças brincam de roda. O quadro fez parte do programa dos dias 12.10.2000 à noite e 13.10.2000 à tarde

Música:

“Ciranda, cirandinha Vamos todos cirandar No PT vamos votar.” “Vote treze! Vote PT!”

Como também o desenho animado veiculado no dia 13/10/2000 à noite, com bonequinhos de crianças, ora chupando pirulito ora com pirulito na mão, cantando, no ritmo da cantiga infantil “Pirulito que bate-bate” (no último boneco o pirulito é uma estrela):

Música:

“Candidato tem compromisso, compromisso com você,

É por isso que eu voto em candidato do PT.”

Uma perspectiva diferente de desenho animado surge no programa do dia 17/10/2000. A cena remonta ao personagem Barman. O fundo musical é a trilha sonora do filme. Dessa vez é o discurso dos super-heróis no discurso político.

Descrição do quadro: Narrador com voz masculina diz:

Imagens de desenho animado de uma cidade à noite. Aparece o reflexo, no céu, do que seria o escudo de Batman, só que é o número treze que aparece, em vermelho, dentro de um círculo amarelo. Então surge uma caricatura de Roberto Magalhães (desenho animado), de fraque e cartola, numa referência ao personagem Pingüin, antagonista do filme Batman. O boneco de Roberto Magalhães tem postura revoltada, raivosa, com os ‘balões’ do desenho mostrando símbolos de palavrões, como é referenciado em desenhos animados e gibis. Finaliza a cena com foco no reflexo do escudo com o treze no céu.

A interdiscursividade aqui se presta a categorizar uma identidade negativa para Magalhães. Ele é o “pingüin”, o antagonista. João Paulo é o herói, que vai salvar a ‘humanidade’ - ou seja, o Recife - com seus ‘super-poderes’.

Na cena que foi ao ar no programa do dia 17/10/00, à noite, o enunciado esportivo é retomado no enunciado político. O quadro começa com imagem desfocada do prédio da Prefeitura do Recife. Surge a voz do ator Cláudio Ferrário, narrando o texto como se fosse uma partida de futebol. É a narração de um jogo de futebol e as cenas de um jogo de futebol em desenho animado, mostrando apenas as pernas de dois jogadores. Aparece boneco de João Paulo driblando, fazendo gol, sendo aplaudido pelos torcedores. A bola, no início, tem a imagem da prefeitura dentro. No final, a bola tem o número vinte e cinco de Roberto Magalhães (a bola no final é chutada a gol, de João Paulo).

Texto narrado:

“Concordo, Seu Roberto, tava tudo bagunçado mesmo. Começou com a prefeitura de Gustavo Krause, depois veio Joaquim Francisco, que passou a bola para Jarbas, que voltou pra Joaquim bagunçar de novo e entregar pra Gilberto Marques Paulo. Ele devolveu a bagunça pra Jarbas mais uma vez passar adiante pra Roberto Magalhães bagunçar de vez. (Som de vaias). Também concordo, Seu Roberto. Tá na hora de mudar. Com João Paulo.” (Aparece boneco de João Paulo, de calção amarelo e camisa vermelha com o número treze. A bola que ele chuta e faz gol tem o número vinte e cinco de Roberto Magalhães.)

Cláudio Ferrário finaliza, dizendo:

“Gooollllll. (Torcida gritando também ‘João Paulo’), João Paulo despacha o vinte e cinco, João Paulo, João Paulo, João Paulo... Aos treze do segundo turno...”

O desenho animado é um dos mais marcantes porque quer mostrar o poder passando de mão em mão na Prefeitura do Recife, no mesmo grupo político. O grupo político de Roberto Magalhães, que já foi referenciado como do atraso, da violência, da prepotência, do desleixo, da incompetência. O grupo político das ‘forças conservadoras’. Mais: que João Paulo é ‘o herói da torcida’, o ‘campeão do povo’, ‘o representante dos grupos progressistas’, da esquerda. E o grupo do pefelista “bagunçou” a gestão municipal durante vários anos. A repetição do verbo “bagunçar” é ‘um reforço da herança política que prejudicou o Recife’. E nomeia os ex-prefeitos que “bagunçaram”: Gustavo Krause, Joaquim Francisco, Jarbas e Gilberto Marques Paulo, que passou o poder a Roberto Magalhães.

Uma das cenas mais repetidas nos programas é a cena com imagens da Ditadura Militar, em preto e branco. Ela foi utilizada como estratégia em diversos quadros quando se criticava a gestão de Roberto Magalhães, seja por depoimentos, denúncias ou apenas para compor o final ou o começo de programas. Muitas vezes, quando acabavam as cenas, aparecia a imagem colorida de Magalhães fazendo gestos obscenos. Uma das veiculações ocorreu nos dias 12.10.2000 à noite e 13.10.2000 à tarde.

Descrição da cena:

“Começa com imagens da época da Ditadura Militar, em preto e branco, imagens antigas. Com fundo musical de som dramático, forte, com fotos de militares, generais à paisana, outros fardados, ou andando em carros do Exército. As imagens são tremidas, com barulho de coisas quebrando. Multidão protestando com faixa “ABAIXO A DITADURA. POVO NO PODER.”. Pessoas apanhando com cacetete de policiais; presos (políticos) atrás das grades (sem aspecto de presidiários). Surge então a imagem, já colorida e atual do perfil de um homem de óculos, imagem somente da silhueta numa referência a Roberto Magalhães.”

3. PERFIL E ANÁLISE DOS PROGRAMAS DE 2004: UMA COMPARAÇÃO COM