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CAPÍTULO III – ANÁLISE DOS PROGRAMAS ELEITORAIS DE TELEVISÃO DAS

2. Perfil e análise dos programas de 2000

2.3. As marcas ideológicas

Parece redundante, mas é imperativo aqui ressaltar que todos os componentes que fazem parte de uma peça de campanha como os programas eleitorais – depoimentos, jingles, cenários, entre outros - têm sobre eles, impregnada, perpassada, a ideologia. A palavra não é inocente. O discurso não é inocente. Até porque, “As formações discursivas89 são a projeção, na linguagem, das formações ideológicas.”(Orlandi, 2006, p. 17). Ainda mais quando se está

89

“Chamamos então formação discursiva aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determina o que pode e deve ser dito. Portanto as palavras, proposições, expressões recebem seu sentido da formação discursiva na qual são produzidas.” (Orlandi, 2006, p. 17)

decifrando o discurso político. Tudo que é dito num programa político tem um peso ideológico, á vezes intencional, às vezes não. “As palavras, expressões, proposições adquirem seu sentido em referência às posições dos que as empregam, isto é, em referência ás formações ideológicas nas quais essas posições se inscrevem.”(Orlandi, 2006, p. 17). É, portanto, na interação e no contexto que as palavras adquirem sentido ideológico.

Os signos só emergem, decididamente, do processo de interação entre uma consciência individual e uma outra. E a própria consciência individual está repleta de signos. A consciência só se torna consciência quando se impregna de conteúdo ideológico (semiótico) e, conseqüentemente, somente no processo de interação social. (BAKHTIN, 2004, p. 34)

Os estudos de Bakhtin sobre os signos e a ideologia são apropriados para o estudo do discurso de campanha por meio das peças desenvolvidas pela propaganda e o marketing político. As teorias do autor russo, baseadas no marxismo histórico, mostram que a palavra e o discurso são a manifestação mais pura da ideologia. Ou a revelam ou aparentemente a escondem, mas ali está a ideologia. Daí não poder negligenciar a importância do contexto histórico e sociopolítico na interpretação dos signos. Em que pesem outros signos que acompanham o discurso – no caso dos programas eleitorais, a linguagem não-verbal, por exemplo – a palavra está sempre dotada de ideologia.

É preciso fazer uma na análise profunda e aguda da palavra como signo social para compreender seu funcionamento como instrumento da consciência. É devido a esse papel excepcional de instrumento da consciência que a palavra funciona como elemento essencial que acompanha toda criação ideológica, seja ela qual for. A palavra acompanha e comenta todo ato ideológico. Os processos de compreensão de todos os fenômenos ideológicos (um quadro, uma peça musical, um ritual ou um comportamento humano) não podem operar sem a participação do discurso interior. Todas as manifestações da criação ideológica – todos os signos não-verbais – banham-se no discurso e não podem ser nem totalmente isolados nem totalmente separados dele. Isso não significa, obviamente, que a palavra possa suplantar qualquer outro signo ideológico. (BAKHTIN, 2004, p. 37)

A predominância da cor vermelha nos cenários e a apologia ao uso da camisa vermelha – como “vermelho é a cor da virada”, “vista a sua camisa vermelha” - remontam à cor do PT, ao símbolo do Partido Comunista, dos partidos de esquerda. É importante frisar que esse signo foi abundantemente trabalhado nos programas de João Paulo. A tão falada “onda vermelha” foi considerada um ícone da campanha, um símbolo, uma representação do novo, da mudança, do que é de esquerda. E ganhou as ruas do Recife nos eventos de João

Paulo e no dia da eleição, vestindo militantes e simpatizantes da candidatura. Esse fato foi amplamente difundido pela Imprensa local.

Um dos trechos da campanha que mais lança luz sobre a força desse signo foi materializada no texto narrado pela atriz pernambucana Lívia Falcão, durante o programa dos dias 12/10/2000 à noite e 13/10/2000 à tarde. Ela aparece em um cenário com a imagem de uma estrela vermelha, sem contorno. Lívia está de roupa comum e à medida que vai falando, vai abrindo uma camiseta toda vermelha que está dobrada em suas mãos. No final, há um corte de cena e ela já aparece vestida com a camiseta vermelha, lisa, sem inscrições, sem estrela, sem logomarca.

Texto narrado por Lívia Falcão:

“Gente, eu vim aqui fazer um convite pra vocês. Eu vim convidar todo mundo que quer transformar essa cidade a vestir essa camisa. Não é linda? Não, e o melhor é que ela combina com tudo. Combina com qualidade de vida, com moralidade, com transparência, com eficiência e mudança. Lisinha, super básica...Engraçado, né? Não tem nenhum nome escrito e quer dizer tanta coisa. Quer dizer virada, coragem, competência, honestidade, transformação. Eita, transformação tá na moda. Experimente. Isso não é só uma camisa. Isso é uma causa. Uma linda causa, que vai cair muito bem em você. Juntos vamos mudar o futuro da nossa cidade. A gente tá fazendo história e ninguém pode deixar de votar no dia 29. Em janeiro começa um novo século e também uma nova fase para a nossa cidade. Com João Paulo na prefeitura”.

A primeira associação que o texto faz ao vermelho é que significa transformação, “transformar a cidade do Recife”. O verbo transformar remonta ao novo, à mudança. É uma palavra muito utilizada pelos movimentos progressistas no mundo inteiro, para significar um contraponto ao conservadorismo, ao que é reacionário. Depois vem a utilização da metáfora “ela combina com tudo”. Na verdade, não se está falando da camiseta, mas do vermelho, que significa uma proposta de transformação, de uma candidatura que combina com o povo, com os empresários, com as crianças, com as pessoas que querem um Recife melhor, enfim, “combina com tudo”. Além disso, “combina com qualidade de vida, com moralidade, com transparência, com eficiência e mudança”. E ainda mais “é lisinha, super básica”, ou seja, João Paulo é simples, é um homem do povo, é popular, “combina com tudo”.

Quando o texto proclama que a camiseta “não tem nenhum nome escrito e quer dizer tanta coisa”, há a referência ao vermelho como símbolo de uma ideologia, que é de esquerda e

que representa um fazer tudo o que Roberto Magalhães e o grupo considerado de direita não fizeram por Recife. É um novo tempo que pode começar a partir da adesão a uma bandeira ideológica que nunca teve experiência administrativa na cidade do Recife. Quando diz “não tem nenhum nome escrito e quer dizer tanta coisa”, mostra que essa bandeira é até maior e está acima do PT. Ora, a camisa não tem inscrição, não quer dizer que é do PT, mas o que João Paulo representa, que é “virada”, “coragem”, “competência”, “honestidade”, “transformação”. João Paulo, afinal, está acima do bem e do mal. Surge novamente a palavra transformação, que “está na moda”: a experiência do PT em Camaragibe foi muito explorada pelos programas petistas como um modelo a ser seguido. Finalmente, o texto declara, quebrando a expectativa construída pela linguagem metafórica, que “Isso não é só uma camisa. Isso é uma causa”. Chegou então a hora de dizer “a gente tá fazendo história e ninguém pode deixar de votar no dia 29”. Será a primeira vez que um candidato de esquerda tem chance de chegar ao mais alto cargo do poder executivo municipal no Recife, desde a gestão de Pelópidas Silveira. E conclui: “Em janeiro começa um novo século e também uma nova fase para a nossa cidade. Com João Paulo na prefeitura”. Nada como uma nova era, um novo século para vir um ‘salvador’, que representa o diferente, uma nova proposta, uma boa- nova para a cidade, rompendo com o atraso, com tudo que representa o negativo.

O vermelho também é simbolizado no programa veiculado nos dias 15/10/2000 à noite e 16/10/00 à tarde: Loc. (voz masculina):

“E lá vem a onda vermelha, tomando conta da cidade. Nesta terça-feira, grande caminhada da vitória, com João, Lula, Luciano e você, que quer mudar o Recife. Concentração a partir das três da tarde, na Praça do Oswaldo Cruz, do Bairro da Boa Vista. Venha de vermelho e participe dessa festa do futuro do Recife. É João. É o treze.”

A convocação para a caminhada reforça o vermelho, a onda vermelha, “lá vem a onda”. É como se dissesse ‘você não pode ficar aí parado’. Onda é um substantivo que significa “grande quantidade algo, que aflui, se espalha ou derrama”90. No sentido popular, onda significa algo que arrasta, que simboliza “ir na onda”, sem saber porque está indo. Mas a palavra vermelha, onda vermelha, abre o sentido para lembrar que não é qualquer onda, é a onda da esquerda, das pessoas que querem transformação, um novo tempo. E para ir nessa onda, as pessoas têm que ir de vermelho, claro, se não ficam de fora dessa novidade que está arrastando os recifenses: “Venha de vermelho e participe dessa festa do futuro do Recife”.

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E no dia 19/10/2000, durante uma convocação para a participação de uma caminhada das mulheres: Loc. (voz masculina):

“As mulheres do Recife vão levar seu apoio para João Paulo. Nesta sexta-feira, caminhada das mulheres com João Paulo, o prefeito que o Recife quer. Concentração na Câmara de Vereadores, a partir das três da tarde. Reúna as amigas, vista-se de vermelho e venha participar desta caminhada rumo ao futuro do Recife.”

Como se observa, a “onda vermelha” foi pontuada em diversos momentos dos programas eleitorais, que, pela repetição, tornou-se um símbolo da campanha de João Paulo. Tanto que em outras candidaturas do PT em Pernambuco, depois do ano 2000, a Imprensa frisava que determinado candidato não decolou, não empolgou a militância, “não repetiu a onda vermelha”.

Outro exemplo foi a chamada, veiculada no dia 12/10/2000, para o programa que traria a cobertura de uma carreata da Frente de Esquerda do Recife: Locutor (voz masculina):

“E à noite, mais atrações para você. O Recife ficou vermelho de felicidade. É a carreata de dignidade.”

O vermelho se transformou em adjetivo para categorizar o que é bom, o que traz felicidade. Há um deslocamento do dito popular “ficou vermelho de vergonha” para o “vermelho de felicidade”. O vermelho não é mais o temido símbolo dos partidos comunistas que foram estigmatizados pela contra-propaganda, que difundiu a idéia, durante a Guerra Fria, de que ‘comunista come criancinhas’. Agora o vermelho quer dizer “dignidade”. Quer dizer tudo que é positivo para a felicidade das pessoas. Como sugeriu Bakhtin, esses signos não- verbais são banhados pelo discurso “e não podem ser nem totalmente isolados nem totalmente separados dele.”

Todavia, um instrumento pode ser convertido em signo ideológico: é o caso, por exemplo, da foice e do martelo como emblema da União Soviética. A foice e o martelo possuem, aqui, um sentido puramente ideológico. Todo instrumento de produção pode, da mesma forma, se revestir de um sentido ideológico: os instrumentos utilizados pelo homem pré-histórico eram cobertos de representações simbólicas e ornamentos, isto é, de signos. Nem por isso o instrumento, assim tratado, torna-se ele próprio um signo. (BAKHTIN, 2004, p. 32)

Porque “A palavra é o fenômeno ideológico por excelência. A realidade toda da palavra é absorvida por sua função de signo.(...) A palavra é o modo mais puro e sensível da relação social.” (BAKHTIN, 2004, p. 36). A campanha política, tal como outras formações discursivas, utiliza as palavras de acordo com o contexto no qual está inserida, o momento histórico, o lugar de fala dos sujeitos, a finalidade, as estratégias, enfim, elementos valorizados e imprescindíveis para a Análise de Discurso. Assim, “A palavra está presente em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação.”(BAKHTIN, 2004, p. 38)

O depoimento do ex-governador do Distrito Federal, Cristóvam Buarque, no programa veiculado nos dias 15/10/2000 à noite e 16/10/00 à tarde, revelam outras marcas ideológicas verbais no discurso da Frente de Esquerda do Recife. Ele aparece em imagem colorida num quadro. Em outro quadro menor, simultaneamente, aparecem cenas de violência, imagens em preto e branco com crianças e adultos fugindo da polícia, que prende pessoas nas ruas. São cenas, supostamente, de repressão à ocupação de terras, com pessoas algemadas, policiais batendo em homens com cacetete, em cavalarias, gente sendo carregada pela polícia como se estivesse desmaiada, carro tanque nas ruas. Essa cena é recorrente em vários programas, mas não há uma explicação lógica para elas, um crédito sobre onde ocorreram ou em que data, e de que se tratavam. A finalidade é sempre para associar a violência à imagem de Roberto Magalhães, assim como as imagens da Ditadura Militar. Muitas vezes, quando essas cenas vão ao ar terminam com a superposição da imagem de João Paulo fazendo gesto obsceno para militantes opositores durante um evento público na orla da Praia de Boa Viagem.

Depoimento de Cristóvam Buarque:

“As forças conservadoras brasileiras cometeram muitos crimes contra o nosso povo. Mas talvez o maior desses crimes tenha sido usar a mentira como forma de ficar no poder. E entre essas mentiras, a tentativa de assustar o povo. Como se o povo tivesse medo de políticos honestos. De políticos comprometidos com os interesses do próprio povo. Mas o povo, o povo não é ingênuo. O povo sabe diferenciar quem é que rouba, quem é que governa para os ricos e quem é que pode governar para os pobres, com criatividade a serviço do povo. Por isso, o povo de Recife não pode ir atrás de ameaças, como se tivesse medo daqueles que podem trazer uma nova cara para Recife. Aqui, essa nova cara chama-se João Paulo.”

Começar o depoimento com “forças conservadoras brasileiras” já marca o lugar do discurso com forte conotação ideológica. Declarar que há “forças conservadoras” é admitir que há forças político-ideológica de direita e, logicamente, de esquerda. “Forças

conservadoras” que “cometeram crimes”, como as torturas, prisões e mortes durante a Ditadura Militar. “Usar a mentira como forma de ficar no poder” faz um paralelo entre as omissões dos desmandos da Ditadura Militar e a contra-propaganda que ocorreu durante o período eleitoral de 2000, dando conta que com João Paulo a anarquia seria instalada no Recife. No texto, João Paulo é categorizado como político honesto, político comprometido com os interesses do próprio povo. E contrapõe os dois lados: as forças conservadoras governam “para os ricos” e as forças progressistas governam “para os pobres”. Chama a atenção também a repetição exagerada da palavra “povo” no depoimento. Na verdade, povo ora nomeia o próprio João Paulo ora nomeia a população pobre, numa identificação de João Paulo com o leitor, com o povo. A expressão “o povo de Recife não pode ir atrás de ameaças”, significa João Paulo não se intimidar nem a população temer votar no petista.