• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO III – ANÁLISE DOS PROGRAMAS ELEITORAIS DE TELEVISÃO DAS

1. Chegando ao corpus

O que significa a escolha de um corpus? Qual a lógica que move esse olhar para o objeto? Antes de iniciar esta parte da análise do corpus, propriamente dita, remonta-se ao livro de Michel Foucault, As Palavras e as Coisas – Uma Arqueologia das Ciências Humanas (1999), quando o autor elabora uma série de comentários sobre a tela Las Meninas, de Velásquez. O filósofo francês chama a atenção para a premissa de que não apenas é possível lançar inúmeros olhares sobre o objeto de estudo, mas que as possibilidades de olhares são inesgotáveis, que a relação da linguagem com o objeto é infinita, que deve ir além da materialidade aparente. O teórico francês descreve inúmeras possibilidades de representações, significações, intenções, interpretações e traduções das imagens, sob a suposta ótica do pintor, dos personagens e do espectador, que mostram quantos olhares podem ser lançados sobre um objeto de estudo.

Sobre a pintura, na sua materialidade aparente, pode-se dizer que

[...]Velásquez compôs um quadro; que nesse quadro ele se representou a si mesmo no seu ateliê, ou num salão do Escorial, a pintar duas personagens que a infanta Margarida vem contemplar, rodeada de aias, de damas de honor, de cortesãos e de anões; que a esse grupo pode-se muito precisamente atribuir nomes: a tradição reconhece aqui dona Maria Agustina Sarmiente, ali, Nieto, no primeiro plano, Nicolaso Pertusato, bufão italiano. Bastaria acrescentar que as duas personagens que servem de modelo ao pintor não são visíveis, ao menos diretamente; mas que podemos distingui-las num espelho; que se trata, sem dúvida, do rei Filipe IV e de sua esposa Mariana. (FOUCAULT, 1999, p. 11)

Mas Foucault prossegue dizendo que “Esses nomes próprios constituiriam indícios úteis, evitariam designações ambíguas; eles nos diriam, em todo o caso, o que o pintor olha e, com ele, a maioria das personagens do quadro. Mas a relação da linguagem com a pintura é uma relação infinita.”(FOUCAULT, 1999, p. 11-12).

Não que a palavra seja imperfeita e esteja, em face do visível, num déficit que em vão se esforçaria por recuperar. São irredutíveis uma ao outro: por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas, comparações, o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos descortinam, mas aquele que as sucessões da sintaxe definem. (FOUCAULT, 1999, p. 12)

Ao fazer uma analogia entre uma pintura e um cenário político, ou melhor, entre a pintura de Velásquez e o cenário político dos dois momentos eleitorais das campanhas de

João Paulo, em 2000 e 2004, vê-se a pertinência de aqui dizer que esta análise é apenas um olhar entre infinitos olhares que poderiam ser elaborados sobre o universo eleitoral das campanhas de João Paulo. Que, tal qual uma tela, há inesgotáveis formas de analisar o corpus, mas que sempre há uma que é prioritária para o pesquisador, de acordo com a metodologia, visão de mundo, interpretação, contaminação pela conjuntura em que está inserido, enfim, pelas várias interferências sofridas pelo analista. A relação do analista-pesquisador com seu objeto de estudo não é neutra, está submetida a diversos condicionamentos. Acredita-se, porém, que este trabalho é resultado de um encontro entre o objeto e o pesquisador.

Dessa forma, fica referendada uma crença de que o sujeito (pesquisador) e o objeto (corpus) estão numa relação de imbricação, na qual um influencia o outro. Apesar de e para

além de todo o rigor científico que se imprime a uma pesquisa deste porte. E esses elementos

são vitais para que a análise seja inédita, traga um olhar diferente e procure “uma verdade”, não “a verdade”. Sobretudo quando se trata de uma pesquisa à luz da Análise de Discurso, que mergulha no universo do dito, do não-dito e do já-dito.

Mas, se se quiser manter aberta a relação entre a linguagem e o visível, se se quiser falar não de encontro a, mas a partir de sua incompatibilidade, de maneira que se permaneça o mais próximo possível de uma e de outro, é preciso então pôr de parte os nomes próprios e meter-se no infinito da tarefa. É, talvez, por intermédio dessa linguagem nebulosa, anônima, sempre meticulosa e repetitiva, porque demasiado ampla, que a pintura, pouco a pouco, acenderá suas luzes.(FOUCAULT, 1999, p.12 )

Há uma necessidade premente de aprofundamento do estudo, de ir além das aparências, das pinceladas na tela, da análise das palavras como coisas e das coisas enquanto palavras, do que é dito nos programas eleitorais pelos vários personagens que estão envolvidos nos programas. Afinal, é necessário imprimir um olhar sobre as palavras, na sua opacidade, não apenas na sua transparência. Os textos dos programas eleitorais de João Paulo (com o suporte das imagens) são analisados no que revelam e escondem, com a consciência da infinitude da tarefa, como ensina Foucault. Para isso, é lançada uma luz sobre o cenário político de 2000 e 2004, a partir do referencial teórico da Análise de Discurso, que vai permitir decifrar as novas estratégias argumentativas e persuasivas do PT, a partir do discurso de João Paulo. Mas fica aberta, então, a relação “entre a linguagem e o visível”.

O governo da palavra não é tudo na política, mas a política não pode agir sem a palavra: a palavra intervém no espaço de discussão para que sejam definidos o ideal dos fins e os meios da ação política; a palavra intervém no

espaço de ação para que sejam organizadas e coordenadas a distribuição das tarefas e a promulgação das leis, regras e decisões de todas as ordens; a palavra intervém no espaço de persuasão para que a instância política possa convencer a instância cidadã dos fundamentos de seu programa e das decisões que ela toma ao gerir os conflitos de opinião em seu proveito. (CHARAUDEAU, 2006, p. 21)