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A OPÇÃO DE CAMUS PELO ENSAIO

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 89-94)

4 REVOLTA OU REVOLUÇÃO

4.1 A OPÇÃO DE CAMUS PELO ENSAIO

Em sua obra Albert Camus soleil et ombre (1987), Roger Grenier passa em revista todos os livros do autor, com exceção de Le Premier homme, seguindo a ordem cronológica de publicação e valendo-se de elementos biográficos e históricos, de uma maneira bastante lúcida, sem cair no anedótico, destacando a relação destes elementos com os textos.4 Não podemos deixar de concordar com o procedimento de Grenier, na medida em que ele leva em conta o contexto sócio-histórico de produção e recepção dos textos de Camus e busca não excluir nada do que possa ser útil ao conhecimento da obra.

Sem nos reduzirmos a uma leitura "biográfica" dos textos do autor, pensamos que o conhecimento do "contexto" da obra literária em seu sentido amplo é imprescindível para a sua compreensão. Consideramos que a linha da Escola Francesa de Análise do Discurso pode nos fornecer este instrumental teórico, pois ela não se reduz ao sociologismo, nem se contenta com uma análise puramente estrutural ou lingüística das obras. Além disso, a Análise do Discurso não restringe seu campo de estudo aos textos de ficção, mas aborda igualmente os textos filosóficos, que constituem um campo a ser investigado quando se aborda a produção de Camus. Assim, sem desconsiderar os aspectos lingüísticos e estruturais de um texto, levamos em consideração os aspectos aparentemente extra-textuais, pois o ―contexto‖ em seu sentido amplo se inscreve no interior do próprio discurso.

Num trabalho coletivo, Cossutta, Maingueneau e outros (COSSUTTA (dir.), 1996) se propõem o estudo da argumentação filosófica em Descartes. Cossutta se pergunta sobre as

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Cada um de seus livros manifesta o engajamento de sua reflexão e é inseparável dos acontecimentos de sua vida, durante a qual ele nunca se manteve afastado dos combates, dos sofrimentos e das agitações da sociedade. É por isso que este estudo sobre seus livros me levou muitas vezes a fazer referência à biografia, a dizer que momento de sua existência ele atravessava quando escrevia esta ou aquela obra. Tomar partido a favor ou contra Sainte-Beuve é uma iniciativa um pouco ingênua. Não se deve excluir nada do que é útil ao conhecimento de uma obra. GRENIER, 1987, p.11

condições de possibilidade de uma teoria da argumentação filosófica e trata particularmente do discurso cartesiano; no entanto, pela diversidade e profundidade da discussão, bem como pelos conceitos que desenvolve, fornece elementos para a análise de outros autores, como Albert Camus.

Entre Descartes e Camus as diferenças são muitas, a começar pelo grande intervalo de tempo que os separa. Descartes é um dos filósofos consagrados pela tradição acadêmica; estabelece uma virada no pensamento ocidental e é o responsável por um discurso constituinte que inaugura uma tradição filosófica subjetivista e racionalista, mesmo se, paradoxalmente, seu discurso, que busca combater o ceticismo, acaba por lhe fomentar o desenvolvimento. Camus é crítico dos poderes pretensamente absolutos da razão no domínio do conhecimento e parece haver uma relação entre sua localização bastante à margem no campo da filosofia e sua inserção numa linha de pensamento refratária ao dogmatismo em todas as suas expressões.

O paralelo entre estes escritores mostra de que maneira todo discurso filosófico é passível de uma análise discursiva, que por sua vez constitui um avanço no estudo da filosofia, em seu campo específico, pois, como afirma Cossutta, a consideração da dimensão especificamente lingüística e discursiva do texto filosófico não tem apenas um valor descritivo mas pode cumprir uma função heurística, na medida em que ela nos permite expandir sua inteligibilidade e formular interpretações novas (Cf. COSSUTTA (dir.), 1996, p.2). Assim, o estudo do discurso filosófico e a história da filosofia, com seus métodos e aquisições próprios, podem se completar.

Conforme a reflexão proposta por Cossutta, mesmo quando lidamos com textos filosóficos podemos abordar a linguagem, a materialidade discursiva, pois a "argumentação" filosófica é indissociável da "doutrina", ou seja, os elementos retóricos não são uma camada sobreposta, nem se separam da exposição de idéias, nem são, muito menos, apenas ornamentos que poderiam ser encontrados apenas nos textos literários. Esta colocação nos

permite atenuar fronteiras entre os campos dos saberes, fronteiras que são geralmente de caráter institucional.

Camus optou por desenvolver sua reflexão filosófica em ensaios. Já os filósofos que se expressam através de sistemas, gênero supostamente mais rigoroso, tendem a buscar uma língua ideal, uma espécie de discurso com regras próprias, que se concentra no desenvolvimento de conceitos e na exposição de uma verdade. Isto pode ser entendido como uma busca de especificidade, visto que os campos da ciência, da filosofia e da literatura não vêem a linguagem da mesma maneira nem com os mesmos objetivos. No entanto, a pretensão de um discurso filosófico conceitual, que busca se colocar acima de todas as linguagens ou diferente de todas elas, e que rejeita a retórica como um elemento enfraquecedor, não deveria existir. Mesmo se é a crença nesta possibilidade que parece estar presente de forma subjacente em muitas classificações que tentam justificar a superioridade de um discurso filosófico com relação a outros em razão de sua linguagem supostamente mais objetiva, mais neutra, mais rigorosa ou racional.

Pode-se estabelecer uma distinção entre a argumentação, ligada à retórica e à busca da adesão do auditório, e a demonstração, ligada à lógica e às deduções dos raciocínios. Entretanto, Cossutta esclarece que, na verdade, é difícil identificar num texto uma limitação clara e distinta entre a argumentação retórica e a argumentação lógica. Mesmo o discurso filosófico de maior pretensão lógica não consegue escapar do aspecto retórico, pelo fato de já se construir como discurso.5

Cossutta mostra bem que, mesmo se distinguirmos entre a demonstração filosófica, sob a forma dedutiva ou de prova, e a argumentação, que visa convencer ou persuadir, não as podemos opor. O texto se constrói na interação entre estes dois pólos, que não são

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Os modos de validação pelos quais uma doutrina configura seus enunciados e seus princípios não são independentes de um contexto de motivação ou de legitimação que supõe a intervenção das dimensões institucionais e biográficas, e que supõe igualmente a consideração das operações que definem as condições de legibilidade de uma obra. COSSUTTA (dir.), 1996, p.36

dissociáveis dos conteúdos doutrinais. Ou seja, não pode haver separação entre demonstração, como forma privilegiada do discurso genuinamente filosófico, e argumentação, como raciocínio em linguagem comum, baseado não sobre o necessariamente verdadeiro, mas sobre o verossímil e sobre pressuposições.

Além disso, o argumentativo não é exclusividade do discurso filosófico e à obra literária também pode estar subjacente um plano de conceitos, que origina um corpo de doutrinas ou, como no caso de Camus, uma dimensão filosófica associada à elaboração de obras diversas. Assim, a demonstração já não é vista como uma forma privilegiada e o argumentativo é considerado como inerente à própria atividade lingüística, como um componente próprio das línguas naturais.6

O discurso filosófico, seja de que gênero for, do tratado ao ensaio, não pode fugir às limitações que são próprias de toda produção textual, visto que este discurso, mesmo que se pretenda único ou especial, depende sempre de uma língua natural na qual ele se insere, da mesma forma que o discurso dos literatos e cientistas. Assim, o discurso filosófico, mesmo quando adota formas mais rigorosas, no sentido de mais teóricas e conceituais, nunca é simplesmente demonstração. Esta envolve simultaneamente os aspectos mais demonstrativos ou comprobatórios e os aspectos retóricos ou de busca de uma convicção (Cf. COSSUTTA (dir.), 1996, p.2).

A tradição do discurso filosófico escamoteia as dimensões estilística, retórica e pragmática da filosofia, privilegiando os textos dos quais tais dimensões estariam ausentes. Há, contudo, exceções, uma delas é justamente o Discours de la méthode, no qual os elementos retóricos são bastante evidentes. O Discours não foi escrito sob a forma de um tratado, mas como uma introdução a uma obra de física e nele a narrativa se constitui como

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Para definir a argumentação em filosofia, não se pode contentar em considerar o aparelho demonstrativo que permite a validação das teses doutrinais, mas é preciso considerar o conjunto dos meios discursivos postos a serviço de sua legitimação. COSSUTTA (dir.), 1996, p.90

autobiográfica, e também como uma forma retórica bem conhecida, o exemplo. Trata-se, com efeito, de uma obra da qual muitos aspectos escapam à aridez de um racionalismo puramente demonstrativo e podem ser dissociados da armadura conceitual e lógica do próprio cartesianismo.

Le Discours de la Méthode, por seu estatuto, é visto como uma obra filosófica à parte, secundária no plano estritamente doutrinal e ao mesmo tempo um texto constituinte na história da literatura. Para Frédéric Cossutta, como discurso constituinte, ele pertence ao mesmo tempo ao campo filosófico e ao domínio da literatura (Cf. COSSUTTA (dir.), 1996, p.14). Daí a possibilidade de se tratar a dimensão retórica da filosofia cartesiana que se inscreve na história da literatura.

Cossutta identifica no Discours uma distância entre os filosofemas e o estilo, uma distância interna entre a língua empregada por Descartes e o teor dos enunciados filosóficos. Na estilística cartesiana, as imagens (comparações, analogias, metáforas) desempenham um papel fundamental e, ao lado desta instância poética, há o papel das instâncias lógico- conceituais. Sendo que a coerência é obtida não pelos esquemas doutrinais, e sim graças ao papel estruturante dos esquemas de imagens, que situam o sistema sob a unidade de uma visão de mundo (Cf. COSSUTTA (dir.), 1996, p.17-18).

Conforme Frédéric Cossutta, o estilo está associado às dimensões conceituais e seria artificial querer separar a dimensão demonstrativa da argumentativa, a conceitual da metafórica, a retórica da estilística. Cada filosofia explora modos de sustentação diversos, ou privilegia alguns deles, a fim de legitimar e validar uma doutrina. Ou seja, o filósofo cria a argumentação da qual ele precisa em função de suas razões próprias.7

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Os fenômenos argumentativos devem, portanto, ser pensados em correlação com os conteúdos, porque uns e outros são, de certa forma, inseparáveis, como o verso e o reverso de uma mesma página. Assim, as formas da argumentação numa determinada doutrina são tributárias desta filosofia, e a maneira segundo a qual um filósofo utiliza raciocínio, prova ou argumento não é independente da natureza de sua filosofia. COSSUTTA (dir.), 1996, p.23

Uma doutrina, explícita ou implicitamente, tematiza suas próprias condições de argumentação. Camus, por sua vez, o faz de forma clara, ao optar pelo ensaio, ao exercer a mistura de gêneros e ao defender o valor das imagens poéticas, onde o puro raciocínio se mostra limitado e insuficiente. Seus ensaios exploram os recursos retóricos e, desta maneira, nele, não há aquela distância que Cossutta identifica em Descartes entre doutrina e estilo. A opção pelo ensaio está ligada à sua concepção de uma filosofia ciente dos limites do conhecimento, esta opção também é significativa porque existe uma relação entre a escolha de um gênero e o público ao qual se destina o texto.

Cada filosofia não só legitima suas próprias condições de possibilidade argumentativa, como também elabora igualmente as condições gerais de uma validação do discurso, ou subverte as pretensões à autojustificação das grandes formas especulativas ou positivas (Cf. COSSUTTA (dir.), 1996, p.25). Camus, escolhendo o ensaio filosófico, contrapõe-se à filosofia racionalista que é privilegiada pelas instituições acadêmicas e pela tradição filosófica ocidental e que é expressa normalmente de forma conceitual em tratados ou sistemas. A argumentação de Camus, ao mesmo tempo em que contesta uma tradição, busca a própria legitimação. E as formas pelas quais exprime sua filosofia têm uma razão no interior desta filosofia, no espaço em que ela constrói a imagem do outro.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 89-94)