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3 APORTES TEÓRICO-METODOLÓGICOS DA PESQUISA

3.2 A interpretação das “visões de mundo” e o Método Documentário

No artigo intitulado “Contribuições para a teoria da interpretação das visões de mundo (Beiträge zur Theorie der Weltanschauungsinterpretation)”, publicado originalmente em 1921/22, assim como nos trabalhos publicados na coletânea Structures of Thinking64 (1982), Mannheim apresenta uma proposta de análise das visões de mundo que ele define como Método Documentário. As visões de mundo e orientações coletivas de um determinado grupo são construídas a partir das ações práticas dos indivíduos e pertencem ao campo definido por ele como sendo o campo do conhecimento ateórico65. O conhecimento ateórico geralmente não está acessível aos sujeitos do grupo, devido a sua vinculação ao contexto no qual foi produzido esse saber (WELLER et al, 2002).

Essas visões de mundo (Weltanschauungen) resultam de “uma série de vivências ou de experiências ligadas a uma mesma estrutura que, por sua vez, constitui-se como uma base comum das experiências que perpassam a vida de múltiplos indivíduos” (MANNHEIM apud WELLER et al, p.378-79).

Nessa perspectiva, o papel do pesquisador passa a ser, então, encontrar uma forma de acesso ao conhecimento implícito (ateórico) do

63 Para mais informações sobre a Hermenêutica Objetiva, cf. Weller, 2010 e Teixeira e

Vilela, 2010.

64 MANNHEIM, Karl. Structures of thinking. London: Routledge & Kegan Paul, 1982.

(Collected Works Volume Ten).

65 Para Mannheim, a finalidade da pesquisa teórica é o processo de apreensão da

realidade que aponta de volta para os estágios iniciais pré-teóricos, para o nível da experiência diária (1952, apud WELLER ET AL. 2002, p. 384).

grupo pesquisado, explicitá-lo e defini-lo teoricamente, isso implica em uma mudança de postura do pesquisador, que da postura de interpretação imanente, baseada na pergunta: o que é uma realidade social; passará à postura de interpretação genética, ou postura sociogenética ou ainda funcional, conforme Mannheim, que privilegia a pergunta como ou de que forma essa realidade social se constitui (BOHNSACK;WELLER, 2010). Entretanto, Weller et al. (2002) alertam que “a busca de um método adequado a essa tarefa de transformação do conhecimento apreendido no nível pré-teórico em conhecimento científico, não deve constituir-se como “construção vazia” ou especulação gratuita” (p. 379).

A postura sociogenética é fundamental para a análise dos produtos culturais em sua totalidade. Mannheim (1952) destaca os três níveis de sentido que devem ser considerados no processo de interpretação:

1) nível objetivo ou imanente; 2) nível expressivo; e

3) nível documentário.

O nível objetivo é formado por complexo autossuficiente de significados dados que são facilmente observáveis, não necessitando de interpretações mais profundas para que possamos compreendê-lo. O nível expressivo é transmitido através das palavras ou ações, a verdadeira razão do ato só será compreendida se o mundo interior do sujeito for acessado, nele está implícita a intenção e exige a análise do motivo, da “experiência psíquica” do sujeito. O nível documentário analisa o que o ato ou documento revela sobre a ação.

Mannheim tenta romper com a idéia de “transposição” dos métodos das Ciências Naturais para as Ciências Sociais, defendendo que os significados dos objetos culturais exigem um método compreensivo, em contraposição aos métodos formais, que seja capaz de relacionar as experiências individuais e as situações sociais. Os produtos culturais não podem prescindir dos três níveis de significação:

A cultural product, on the other hand, will not be understood in its proper and true meaning if we attend merely to that 'stratum of meaning' which it conveys when we look at it merely as it is 'itself—its objective meaning; we have also to take it as having an expressive and a documentary meaning, if we want to exhaust its full significance. (Mannheim, 1952, p.44)

Perguntar pelo “o que” gera respostas que se limitam ao primeiro nível de sentido, ou nível imanente, ou seja, aquilo que é apreendido por meio da comunicação intencional dos indivíduos, conhecimentos expressos explicitamente nos discursos dos participantes (WELLER, 2005). Quando se pretende buscar o terceiro nível de sentido, o sentido documentário66, a pergunta deve girar em torno do “como”, do modus

operandi da formação da realidade social, implicando em uma postura

sociogenética por parte do pesquisador. Ao questionar o “como”, buscando intervir o mínimo possível, o pesquisador incentiva a reflexão e a narração de determinadas experiências por parte dos integrantes dos grupos e não somente a descrição de fatos (WELLER, 2005). E por meio da análise refletida, como veremos adiante, ao pesquisador abre-se a possibilidade de acessar conhecimentos que, em um grupo de discussão, poderiam não vir à tona, pelo fato de os integrantes considerarem-nos (consciente ou inconscientemente) tão compartilhados e evidentes que sua explicitação seria desnecessária.

Enquanto membros de uma comunidade ou pertencentes a um meio social específico, o grupo partilha de um conhecimento comum que os leva a se entenderem mutuamente sem a necessidade de maiores explanações. A explicação do conhecimento implícito – no sentido do método documentário – torna-se, dessa forma, a tarefa do pesquisador social. (BOHNSACK; WELLER, 2010, p.74)

66 A análise do sentido expressivo ao trabalharmos com entrevistas e com sujeitos

produtores de objetos culturais, situados no contexto histórico contemporâneo, torna-se muito difícil, uma vez que seria necessário um acesso direto à vida desses sujeitos, pois o sentido expressivo só pode ser apreendido a partir da reconstrução do “clima mental” de uma determinada época ou contexto. Ao tentarmos apreender o “clima mental” que permeia os significados das ações atribuídas pelos próprios entrevistados corre-se o risco de realizar deduções ou suposições que não podem ser comprovadas empiricamente. (cf. GOMES, 1999)

É importante salientar que o processo de interpretação em nível documentário só acontece de forma receptiva, pois implica na exploração de uma via de acesso ao “psíquico do outro” e a inserção no contexto social, ou seja:

(...) o autor afirma que o sentido documentário de uma frase ou de uma expressão cultural está inserida num contexto específico e que, para entendermos o seu significado, é preciso encontrar uma forma de inserção nesse contexto específico (por exemplo, através do trabalho de interpretação), não apenas para conhecê-lo, mas para compreender o significado de determinadas expressões e representações sociais. (WELLER, 2005, p. 266)

Conforme Weller (2005), o sociólogo Harold Garfinkel foi o primeiro a reconhecer a importância do método documentário de interpretação de Mannheim, em análises da organização social, no campo da Etnometodologia, na década de 1920. No entanto, foi o sociólogo Ralf Bonsack quem desenvolveu a aplicabilidade Método Documentário para a análise de dados qualitativos transformando-o em um instrumento de análise para a “pesquisa social empírica de caráter reconstrutivo” (WELLER, 2005, p.268, grifo da autora). Weller (2005) ainda esclarece a esse respeito:

A reconstrução constitui uma das principais ferramentas do método documentário de interpretação desenvolvido por Ralf Bohnsack, diferenciando-se, desta forma, de outras abordagens qualitativas e/ou métodos “estandardizados”, que se caracterizam pela elaboração prévia de hipóteses e pela verificação ou comprovação destas no processo de interpretação. A análise documentária tem como objetivo a descoberta ou indicialidade dos espaços sociais de experiências conjuntivas do grupo pesquisado, a reconstrução de suas visões de mundo e do modus operandi de suas ações práticas. (p.268)

O centro da análise, nesse sentido, é a reconstrução do terceiro nível de sentido proposto por Mannheim, do sentido da ação no contexto

social em que está inserida, na tentativa de compreensão e conceituação das visões de mundo e orientações coletivas.