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5 OS ESTUDANTES E SEUS PAÍSES DE ORIGEM

5.3 SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE

5.3.1 A vida escolar das estudantes são-tomenses

FIGURA 4

São Tomé e Príncipe

Fonte: http://kley1984.no.comunidades.net/

Em resposta à pergunta da entrevistadora sobre o país, Carmen o caracterizou geograficamente, informando que se compõe de duas ilhas, a ilha de São Tomé e a ilha do Príncipe. De acordo com Carmen, o trajeto entre as ilhas pode ser feito em 45 minutos de avião, e de barco, o percurso leva de 6 a 24 horas, dependendo do tipo de embarcação utilizada. Carmen nasceu e viveu na ilha do Príncipe, que somente em 1995, 20 anos após a independência do arquipélago, conseguiu tornar-se uma região autônoma (passagem: país):

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Y: Ok. Bom, queria que vocês falassem sobre o país de vocês agora.

Assim, como é que é morar lá, o que mais vocês go::stam, o que vocês poderiam falar sobre São Tomé e Príncipe?

Carmen: Hum::, bem, São Tomé e Príncipe são duas ilhas ( ) você já

sabe, né-

Y: Humrum.

Carmen: Assim, e u::m país bem pequenininho que::-

((barulho de moto))

Carmen: -Assim, eu me sinto bem, o melhor lugar do mundo talvez que é

pra eu mora::r é lá, no meu país. Assim, se mora com:: dificuldades que nós enfrentamos lá::, como talvez por exemplo problema de luz coisas assim, até mesmo saneamento básico e coisas assim, mas (1) é o único lugar em que eu me sinto (1) sabe ( ) meu , é ali ( ) que eu me sinto bem, aí:: (1) assim, morar (2) é:: –

Carmen: Aí hoje já tem na Ilha do Príncipe nona, décima, décima primeira

classe na Ilha do Príncipe graças a Deus as coisas tão- apesar que a gente acha que não ta- não ta desenvolvido, que continuam na mesma, mas assim já teve um crescimento, é muito lento, a gente não percebe, mas já teve crescimento. E:: – é, na ilha do Príncipe (1) tinha, assim, La a gente ainda tava lutando pela, hã, autonomia lá, porque ( ) não considerava que- a gente era , digamos assim, excluídos, esquecidos. Então, a gente tem um governo regional lá-

Y: Hum::.

Carmen: Lá na Ilha do Príncipe, que é pra administrar a ilha, que é pra (2)

pode::r, hum, lutar pra seus direitos ter- conseguir algumas coisas e::, pra ter essa autonomia mesmo que é pra trabalhar e zelar pelos interesses da pés-da população da ilha do Príncipe mesmo.

“O melhor lugar do mundo para morar” (linha 9), essa é a definição do “seu lugar”, dada por Carmen. Afirmações dessa natureza foram recorrentes entre os estudantes que participaram da pesquisa. Apesar das dificuldades, tais como fornecimento de energia elétrica e saneamento básico, é o lugar em que ela se sente bem. Até 1995, a ilha do Príncipe era subordinada administrativamente à ilha de São Tomé. Conseguiu ter um governo regional e autonomia para promover o crescimento da região e Carmen lembra-se disso na sua fala (linhas 62-

70), pois certamente é um marco histórico extremamente importante para os habitantes da região, visto que deixaram a condição de “excluídos” (linha 64), no sentido de não terem prioridade no orçamento, para adquirirem certa independência. Lúcia compartilha desse pertencimento (passagem: país): 97 98 99 100 101 102 103 104 105 106 107 108 109

Lúcia: Bem, São Tomé pra mim é aquele país que se a pessoa

perguntasse pra mim qual é o lugar do mu::ndo que você ia-nunca queria sair, ou que você sempre queria viver; é São Tomé. Porque é lá que eu nasci, á lá que eu cresci, entendeu? Eu entendo as pessoas de lá, as pessoas de lá me entendem- @(4)@ Mas é; a cultura é diferente, eu me identifico mais com lá; além de- nossa, a ilha é linda. Linda, linda, linda. Por isso que até:: pensei em fazer biologia porque as vezes eu falo ( ) paraíso do Equador, tem coisa lá que ninguém nem descobriu, nem sabe (.) o que tem lá ainda.

Y: ( ) explorar.

Lúcia: Lá tem suas dificuldades, tem. Como todo canto do mundo tem.

Pode ser mais ou menos, mas tem. Mas é como eu falo, se adapta () o quanto você vai, () o quanto você cresceu né.

Além de ratificar o que foi dito por sua colega, Lúcia acrescenta a dimensão cultural, a identificação com o povo e as belezas naturais da ilha, que a motivaram a escolher o curso de Biologia. Ela também suaviza o peso das dificuldades socioeconômicas (“todo canto do mundo tem”, linha 107), talvez pelo fato de ter sempre vivido na capital do país e de não ter vivenciado o estigma de excluído, como os moradores da ilha do Príncipe.

As experiências escolares aconteceram no âmbito da rede pública de ensino e elas esclareceram que a diferença entre as escolas públicas e particulares era basicamente a estrutura oferecida em termos de recursos didáticos, pois a metodologia adotada era bastante comum. Lúcia não traz muitos relatos pessoais, diz que tinha convivência amigável com colegas e professores, mas se detém nos aspectos relacionados à educação em geral.

A história de Carmen traz elementos de migração (passagem: escola):

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Y: Gente, agora é sobre a trajetória escolar de vocês. Queria que vocês

falassem como fo::i - como foi a experiência de estudos de vocês lá, desde do ensino- como é que se chama lá? Primário?

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Y: Secundá::rio, assim, o que vocês tem de marcante nessa experiência,

de repente a relação com os professores, com os amigos, o que vocês trazem de marcante nesse percurso de estudo, sabe? Lá. Sabe aquela coisa assim que a gente-

Lúcia: Não, eu sei, eu sei. Y: Que fica-

Lúcia: Eu sei. Y: Com a gente.

Carmen: E:: ( )- assim, pro ensino secundário, também era do mesmo

jeito. Em relação aos colegas, por exemplo, quando eu estudava na roça, na escola na roça, é aquela coisa, todo mundo- todo o colégio era negro-

Y: Hum::.

Carmen: Nem tinha aquela coisa de- divisã::o- Y: Grupo.

Carmen: Grupo, então ( ) social, aquela coisa assim, em grupo, porque

eu sou filha de tal fulano, minha mãe é diretora da escola, que minha mãe é educadora, que minha mãe é- é alguma coisa; aquela divisão não tinha. Aí já quando eu fui pra cidade estudar, daí eu já comecei a ver isso.

Y: Humrum.

Carmen: Na roça não tinha. Definitivamente eu nunca observei. Y: Humrum.

Carmen: Aí todo mundo- todo mundo brincava, não tinha aquela coisa.

Mas já na cidade tinha. Aquela coisa- aí quando eu cheguei, aí tinha uns grupi::nhos, umas meninas que ficavam de um lado, aí tem o grupinho dos meninos, que elas ficavam desse lado; “ah, porque uma desse grupinho ta interessada no menino do outro”. Aí ficava aquele grupinho aí, de menina e de menino. Eles não misturavam, mas assim, eh, digamos, assim, um fica no outro, @assim@-

Y: Humrum.

Carmen: Aquela coisa. Aí sempre- depois era um pouco assim- E eu

sempre, não sei. Eu sempre talvez jogava na defensiva, nunca- preferia ficar de fora, e não me incluir nesses grupinhos

Na ilha do Príncipe ela morou com sua avó “na roça” e estudou durante o primário em uma escola rural. A partir da 5ª série, ela foi morar com seu pai “na cidade” e no ensino secundário precisou mudar-se para São Tomé, pois não havia oferta desse nível de ensino na ilha do Príncipe. Hoje, no entanto, já existe escola para esta etapa, sendo um indício de desenvolvimento social na sua região (“mas já teve crescimento”, passagem país, Carmen, linha 61). Nesse movimento, a jovem percebeu algumas diferenças que nos relata no trecho acima. A condição de estranhamento se fez presente em meio ao novo grupo social. Na escola rural, segundo a jovem, não havia segregação porque todos eram negros e pertenciam à mesma classe social. Ao frequentar uma escola urbana, Carmen começou a perceber que os estudantes se agrupavam também pela classe social, não somente por afinidade. Importa destacar a postura de Carmen em relação à nova experiência,

que era de permanecer mais neutra, como ela diz que “jogava na defensiva” (linha 102), e preferia não participar dos grupos. Este traço de personalidade de Carmen estará presente em outros momentos, na vida aqui no Brasil, como veremos no próximo capítulo.

A educação em São Tomé e Príncipe é assim retratada pelas estudantes (passagem: escola):

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Carmen: E com relação à:: metodologia, a qualidade de ensino, assim,

educação em São Tome e Príncipe, é muito, muito, muito precária. Assim, eu espero que nós que estamos estudando agora, a gente consiga fazer alguma coisa pra que a qualidade de ensino melhore. Principalmente em educação- em escola pública, né. Porque assim, a gente estuda sem material, (1) tem vezes que o colégio não tem material, e precisa de livros; por exemplo, eu estude::i na escola de ensino secundário, eu nunca tinha acessado uma biblioteca e ido pra biblioteca pra pesquisar pra ver alguma coisa. Mesmo quando eu terminei a oitava classe, que é oitava série aqui, eu acho, ( ) no Liceu, a gente não tinha uma biblioteca na escola.

Y: Humrum, sei.

Carmen: Não tinha uma biblioteca. Então você estuda com muita

deficiência. Até as vezes assim eu paro e as vezes eu digo: “Nossa, eu acho que nós somos muito inteligentes, porque mesmo com a dificuldade, a gente consegue superar”. Então porque a qualidade de ensino lá é fraca, por quê? Porque a gente não tem- assim, a escola, a educação lá não tem estrutura; não tem livros, não tem materiais, não tem nada que é pra auxiliar. Mesmo quando eu terminei, que eu fui dar aulas, aí é que eu comecei a ver a dificuldade. Aí eu dava aula de inglês, assim, não tinha um dicionário na escola, só tinha um guia, (.) aí o plano de aula, assim, a gente tinha uma (metodóloga), que era pra avaliar os professores, pra ensinar, pra orientar os professores, fazer o plano de aula, e tudo mais que é pra professores lecionarem e tudo mais-

Y: Humrum.

Carmen: Aí a metodóloga não aparecia, os professores tinham que se

virar, tinham apenas um dia e tudo estava em inglês. Aí, e não tinha dicionário, e você- dicionário é caro, (.) você não te::m, digamos que você quer passar uma- dar uma aula, digamos assim, mais prá::tica, passar um ví::deo, ou passar uma mú::sica, ou um diálogo pra eles escutarem, pra eles escutarem a sonora, música, essas coisas; não tem nada disso.

Lúcia: No meu caso até::, não tem laboratório. Y: Pois é.

Lúcia: Não tem- nunca estudei com um microscópio, nunca conheci um

microscópio lá. Só fui conhecer um microscópio aqui.

Y: Humrum. Lúcia: Olha só.

Carmen: Então a deficiência está mais assim- a questão é, a qualidade é

deficiente por quê? Porque a gente não tem material, não tem estrutura.

Algumas dificuldades do sistema educacional, relatadas pelas jovens neste trecho e em outros momentos desta passagem, foram: falta de biblioteca nas escolas (“eu estude::i na escola de ensino secundário, eu nunca tinha acessado uma biblioteca”, Carmen, linha 185); falta de

bibliotecas públicas (“na Ilha do Príncipe não tem uma biblioteca, não tem uma biblioteca na Ilha do Príncipe, só tem um centro cultural lá”, Carmen, linha 239); falta de livros, ou manuais, estes quando existiam eram reutilizados ano após ano e encontravam-se em estados deploráveis (“o manual tá totalmente velho, rasgado, e você estuda com ele mesmo assim”, Carmen, linha 248); falta de dicionários nas escolas e impossibilidade financeira de comprá-los (linha 197); ausência de apoio didático-pedagógico e formação continuada para os professores (linha 203); fragilidade na formação e contratação dos professores (Carmen conta que foi selecionada para dar aulas na rede pública com o ensino médio completo e o curso preparatório durou apenas uma semana, linhas 218); falta de recursos didáticos para as aulas, como um videocassete, DVD, rádio, etc; ausência de laboratórios de informática (“agora é que começaram a ter laboratórios de informática pros alunos terem acesso a pesquisa, essas coisas”, Carmen, linha 235); falta de laboratórios específicos de química, física, biologia (“só fui conhecer um microscópio aqui”, Lúcia, linha 212).

Diante de todo o cenário educacional desfavorável, Carmen reflete sobre a sua condição atual e a da colega Lúcia, como estudantes universitárias e conclui: “Nossa, eu acho que nós somos muito inteligentes, porque mesmo com a dificuldade, a gente consegue superar” (linhas 191-193). E com o ingresso na universidade a história de superação continua, pois a fragilidade das primeiras etapas no processo educacional trará conseqüências como, por exemplo, a dificuldade em acompanhar o conteúdo das disciplinas da graduação.

Quando as jovens vieram estudar no Brasil, não havia instituição de ensino superior no país e as alternativas para os jovens após o ensino secundário eram cursos técnicos. Entretanto, hoje já funciona um núcleo da universidade portuguesa Lusíadas, mas esta é uma instituição privada. Lúcia não entrou muito em detalhes sobre a relação com colegas e professores, mas lembra que já foi chamada atenção por alguns deles, mas considera isso normal, pois devem ser respeitados, inclusive no ensino secundário. O relacionamento com os colegas também era

harmonioso e ela chama atenção para o fato de que lá “você aprende a conviver com todo mundo” (linha 15), talvez pelo fato de que a escola pública incluía estudantes de diferentes camadas sociais, pois ela mesma comenta que havia poucas escolas particulares no seu país (uma escola privada para cada nível de ensino). Lúcia cita também as separações dos grupos de amigos, mas considera isso também um fato comum ao ambiente escolar.

5.4 CABO VERDE: “Assim, o pessoal tá tudo voltando pro país e tá