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3 APORTES TEÓRICO-METODOLÓGICOS DA PESQUISA

3.3 Grupos de discussão e análise segundo o Método Documentário

O objetivo dos grupos de discussão67 é obter dados que permitam ao pesquisador analisar o meio social dos indivíduos, apreender suas intenções primárias, visões de mundo e representações coletivas ou

habitus (WELLER, 2006). A partir de 1950 essa técnica passou a ser

utilizada nas pesquisas sociais empíricas pelos integrantes da Escola de Frankfurt, e Werner Mangold, em sua tese de doutorado, foi um dos primeiros a tecer críticas sobre as análises feitas a partir dos depoimentos coletados em entrevistas grupais.

Mangold defendeu que os grupos de discussão poderiam ser utilizados como instrumentos de exploração das opiniões coletivas e não apenas opiniões individuais coletadas em grupo (MANGOLD, 1960, apud WELLER, 2006, p. 245).

Ele interessou-se em conhecer não apenas as experiências e opiniões dos entrevistados, mas as vivências coletivas de um determinado grupo, independentemente de os indivíduos se conhecerem ou não. Para Mangold, as opiniões de grupo não são formuladas no momento da realização das entrevistas, mas são apenas atualizadas, ou seja, as opiniões não devem ser interpretadas como influências mútuas, mas sim como a exteriorização das orientações coletivas ou visões de mundo do grupo social ao qual o individuo pertence. A partir dos estudos de Mangold, os entrevistados passaram a ser vistos como representantes do meio social em que vivem e não apenas como detentores de opiniões (WELLER, 2006, p. 245).

67 Krüger (2010) contrasta os grupos de discussão dos grupos focais da seguinte forma:

“Um método de entrevista relativamente novo e atualmente muito popular [na Alemanha] diz respeito aos “grupos de discussão”, que objetivam a reconstrução das orientações coletivas e dos espaços de experiências comuns nos quais essas orientações são construídas. Deve-se diferenciá-los dos chamados grupos focais, que pretendem ser uma técnica de entrevista que economiza tempo e que se caracteriza como uma entrevista de grupo semiestruturada”. (BOHNSACK, 2004, apud KRÜGER, 2010, p. 45).

Ralf Bonsack, assistente de Mangold à época, acrescentou novos elementos aos grupos de discussão e transformou o método documentário em um instrumento para análise dos grupos de discussão. A partir de então, os “grupos de discussão” revestiram-se de um embasamento teórico-metodológico, ancorado nas vertentes teóricas do Interacionismo Simbólico, Fenomenologia Social, Etnometodologia e essencialmente a Sociologia do Conhecimento, de Mannheim.

Desde a década de 1980, os grupos de discussão vêm sendo utilizados principalmente em estudos com jovens, dado o fato de que os

peergroups são percebidos como “o espaço de maior influência na formação e articulação das experiências típicas da fase juvenil”, posteriormente adquirindo popularidade na Alemanha em pesquisas realizadas em vários campos do conhecimento (WELLER, 2010, p.57/58). No Brasil, o método é utilizado, sobretudo em pesquisas sobre juventude, educação e culturas juvenis e representações de gênero de professoras e professores68.

De acordo com Weller (2010), estar entre colegas da mesma faixa etária, facilitando diálogo mais próximo do cotidiano; por pertencerem ao mesmo meio social, a discussão entre os integrantes pode revelar detalhes do convívio que não seriam perceptíveis em entrevista narrativa ou outra técnica; a interação do grupo faz com que aos poucos a presença do pesquisador seja mais vista de forma mais natural; a discussão em grupo exige um maior nível de abstração do que a entrevista individual, pois ao refletirem e expressarem suas opiniões sobre determinado tema, os integrantes podem reavaliar suas opiniões e até mesmo chegar a conclusões não consideradas anteriormente; o grupo ajuda a corrigir eventuais fatos distorcidos colocados pelos integrantes, devido ao conhecimento da realidade social compartilhada, o que, poderíamos dizer, garantiria uma maior confiabilidade aos fatos narrados. Esses são algumas das vantagens da utilização dos grupos de discussão, principalmente em pesquisas com jovens.

68 Ver Valverde (2008), Silva (2009), Ojala (2008) Tavares (2009) e Gröz (2008), citados

De acordo com Bohnsack (apud WELLER, 2006), antes de realizar o grupo de discussão é importante estruturar previamente um roteiro ou tópico-guia, para que o pesquisador se oriente em relação às questões pertinentes. Uma orientação básica é de que a pergunta inicial do roteiro estimule a interação participação (de preferência uma pergunta vaga) e que sempre a mesma para todos os grupos, pois isso permitiria a análise comparativa entre os grupos. Durante a condução do grupo de discussão, recomenda-se ao pesquisador estabelecer um ambiente de confiança mútua e alguns comportamentos, como:

dirigir a pergunta ao grupo e não designar um integrante para respondê-la, nem interferia na ordem das respostas; evitar perguntas tipo “por que” e priorizar as perguntas “como”, no intuito de gerar narrativas e não somente descrições; e

intervir somente quando solicitado ou quando for necessário introduzir outra pergunta.

Ao final do grupo recomenda-se que seja elaborado um relatório com informações sobre o contexto em que foi realizada a entrevista (local, acesso aos integrantes, etc), os participantes e sobre a situação da discussão em geral. Interessante também é a aplicação de um formulário com informações de base socioeconômica, que caracterizem melhor cada participante do grupo (idade, escolaridade, situação profissional, local de moradia, etc) e que possam ser utilizadas para construção dos perfis de cada um deles.

Outra etapa após a realização do grupo é a organização temática da entrevista, que consiste em identificar os principais temas (ou passagens) e subtemas surgidos e anotar o tempo de duração de cada um deles. O pesquisador também deverá observar se os subtemas foram decorrentes de questão introduzida por ele mesmo ou pelos membros do grupo. Essa organização temática possibilita observar a “densidade metafórica” (grau de detalhamento das narrações ou descrições) e a “densidade interativa” (grau de envolvimento dos participantes na discussão do tema) do grupo (Weller, 2010, p.80). A transcrição poderá

ser feita da passagem inicial, seguida das passagens ou metáforas de foco e das passagens que discutem questões relacionadas ao tema da pesquisa. As metáforas de foco remetem aos centros das experiências comuns dos membros de um grupo, denominados por Mannheim de espaço de experiências conjuntivas.

No que tange a análise dos grupos de discussão, o Método Documentário (adaptado por Bohnsack a partir de Mannheim) pressupõe os seguintes momentos: 1ª) interpretação formulada; 2ª) interpretação refletida, que se relacionam aos níveis de sentido imanente e documentário, respectivamente; 3ª) análise comparativa e 4ª) construção de tipos (WELLER, 2005; BOHNSACK e WELLER, 2010).

Durante a interpretação formulada, primeiro momento, o pesquisador reescreve o que foi dito pelos entrevistados, organizando os blocos temáticos, trazendo para a linguagem comum termos específicos, a fim de tornar o discurso compreensível para aqueles que não pertencem àquele meio social. Importante frisar que nesta fase ainda não há espaço para comentários do pesquisador, ele deve ater-se somente ao que foi dito pelos integrantes do grupo. Na condução do grupo, é importante que a pergunta inicial seja elaborada de modo a incentivar uma narrativa, e que essa tendência se mantenha durante a entrevista, para que a mesma não adquira um tom meramente descritivo. O pesquisador deve permanecer como ouvinte, interferindo somente quando necessário. A interpretação formulada compreende vários estágios, dentre eles:

a organização dos tópicos discutidos na entrevista;

a seleção e transcrição dos temas (ou passagens) que serão analisadas; e

a análise detalhada do sentido imanente.

Na segunda etapa, a interpretação refletida, busca-se analisar tanto o conteúdo de uma entrevista quanto o “quadro de referência” que orienta a fala, as ações do indivíduo ou grupo pesquisado e as motivações que estão por detrás dessas ações (WELLER, 2005, p.276), com o objetivo de reconstruir o “quadro de orientação coletiva” ou habitus

do grupo. Nessa fase o pesquisador pode se valer do conhecimento prévio sobre o meio social pesquisado. Segundo Weller (2005):

O primeiro momento da interpretação refletida é dedicado à reconstrução da organização do discurso, à análise da interação entre os(as) participantes, por exemplo, a forma como se referem uns aos outros ou uma às outras, a dramaturgia e a densidade do discurso. Durante a interpretação refletida, quer dizer, no processo de explicação de uma norma, de um modelo ou quadro de orientação o(a) pesquisador(a) busca analisar não somente questões temáticas que possam parecer interessantes, mas também padrões homólogos ou aspectos típicos do meio social. (p.276)

A partir de então, configura-se o princípio básico do Método Documentário: a reconstrução de um modelo de orientação comum por meio de análises comparativas entre grupos. Esse procedimento garante ao pesquisador a possibilidade de caracterizar uma fala, comportamento ou ação como algo típico para determinado grupo social. “Toda interpretação somente passará a ganhar forma e conteúdo quando realizada e fundamentada na comparação com outros casos empíricos”. (WELLER, 2005, p. 276).

A escolha do corpus da pesquisa deve seguir, em um primeiro momento, critérios objetivos, como faixa etária, sexo, profissão, práticas político-culturais, etc. A análise, por sua vez, fruto da interpretação do pesquisador, pautar-se-á pela busca de contrastes em casos homólogos. Tal procedimento adquire o caráter de controle metodológico das afirmações ou generalizações realizadas, uma vez que o conhecimento teórico ou o saber explícito do pesquisador não exercerão tanta influência no processo interpretativo, já que a reconstrução do conhecimento ateórico que orienta as ações do grupo será baseada em dados obtidos da comparação com outros grupos.

O controle das interpretações, ou da objetividade, na Sociologia do Conhecimento, é exercido principalmente pelo papel do pesquisador (observador) que passa a admitir a premissa de que todo conhecimento histórico possui o caráter relacional, e de que existem esferas de pensamento nas quais é impossível conceber verdades absolutas

independentes dos valores e posições do sujeito e sem relação com o contexto social (MANNHEIM, 1950).

Gomes (1999, p.132) nos diz que o papel do pesquisador passa pela consciência:

de que a neutralidade não pode ser uma postura adequada; da necessidade de percepção e controle crítico das

valorações (submeter o próprio ponto de vista ao processo de análise);

da necessidade de suspensão de juízos imediatos, até que sejam vistos em um contexto mais amplo; e

de que os critérios de exatidão devem ser específicos a cada campo e não universais, pois não existem critérios eternos de validade.

O terceiro e quarto momento consistem na análise comparativa e a construção de tipos (WELLER, 2005; BOHNSACK, 2011). Como os indivíduos ou grupos pesquisados fazem parte de diferentes espaços de experiências conjuntivas, a construção de tipos exige uma análise multidimensional, com sobreposição dos diferentes espaços de experiências conjuntivas. Lembrando que “um tipo deixa de ser singular quando comprovado que não é apenas específico daquele meio ou daquela realidade social” (WELLER, 2005, p.280). Sendo assim,

A generalização dos resultados da análise empírica e a transformação deste conhecimento em teorias fundamentadas depende, portanto, da validade dos tipos construídos e da consolidação destes numa tipologia abrangente. (WELLER, 2005, p.280)

O Método Documentário, portanto, tem como objetivo não só a descrição do que foi observado, mas a “própria produção de teorias, construídas a partir da análise criteriosa dos dados empíricos” (WELLER, 2005, p.280).

Optou-se nesta pesquisa pela realização de grupos de discussão, por permitirem ao pesquisador conhecer as orientações coletivas ou as visões de mundo do grupo social ao qual o indivíduo pertence (WELLER, 2010). Além das opiniões pessoais, no grupo de discussão é possível

apreender as bases das vivências comuns dos participantes. Isto é, além de conhecermos as opiniões individuais sobre os temas propostos, nossa intenção é compreendermos o modus operandi de suas ações, que os caracterizam como grupos de jovens estudantes oriundos dos países africanos de língua portuguesa na UnB.

Primeiramente pensou-se em realizar grupos de discussão com mulheres e homens, separadamente, mas com representantes de todos os países. Posteriormente, consideramos que seria mais interessante a formação de grupos de acordo com os países de origem, uma vez que nossas observações em campo mostraram que os espaços de convivência estão fortemente organizados segundo a nacionalidade desses estudantes.

Um roteiro, ou tópico-guia, foi elaborado (Apêndice A), considerando questões pertinentes à pesquisa e na intenção de que, ao serem questionados, os participantes pudessem criar respostas de caráter narrativo e não somente descritivo, uma vez que perguntar pelo “como” é o princípio da postura sociogenética do pesquisador social. Bohnsack e Weller (2010) explicam que perguntar pelo sentido documentário

implica perguntar pelo “como” da formação prática da realidade social, que se diferencia das questões localizadas no âmbito da observação de primeira ordem e que poderiam ser formuladas da seguinte forma: O que é esta realidade social na perspectiva cotidiana, do sentido comum? Na terminologia de Mannheim, esta seria uma questão que remete ao sentido imanente.

Para conhecer melhor cada participante dos grupos e ajudar na elaboração do perfil de cada um deles, foi feito um formulário sócio- econômico (Apêndice B). Os perfis puderam ser complementados com dados pessoais extraídos dos próprios grupos de discussão.

Veremos no próximo capítulo os procedimentos adotados para termos acesso aos estudantes, a configuração dos grupos por país, o contexto de cada grupo de discussão e os perfis dos jovens participantes da pesquisa.