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2. CONSIDERAÇÕES SOBRE MIGRAÇÃO E IDENTIDADE

2.1 Aproximando-nos dos estudos sobre identidade

Hall (2006) sintetiza um resgate conciso sobre fases históricas e respectivas concepções de sujeito e identidade. O autor nos lembra que entre os séculos XVI e XVIII, período que compreende o Humanismo Renascentista e o movimento Iluminista, o conceito de um “indivíduo soberano” formava a base do pensamento moderno. Esse indivíduo era unificado e indivisível, sua identidade o pertencia desde o nascimento até a morte, era estável, única e singular e, em essência, não sofria grandes transformações no decorrer da vida. O sujeito da idade moderna centrava-se na capacidade individual de raciocinar sobre o mundo e seus fenômenos, em contraste com a ordem secular e divina das coisas que preponderou até a Idade Média. Podemos afirmar, então, que a idade moderna marca uma época em que se rompe com a crença de que as tradições e as estruturas da sociedade eram divinamente estabelecidas e alheias às mudanças.

Em outro momento histórico, do século XIX a primeira metade do século XX, percebe-se que a abordagem sobre o sujeito adquire uma dimensão mais coletiva, desestabilizando a idéia do eu interior inato e imutável e passando a conferir à interação social uma importância fundamental para a formação das identidades. Com o advento da industrialização e a estruturação da sociedade em classes, as leis do direito individual precisaram ceder lugar à organização das grandes massas da população. Desta forma, o cidadão viu-se parte da burocracia administrativa do estado moderno. As ciências sociais passaram a localizá-lo em processos de grupos e normas coletivas e a analisar como essas relações sociais mais amplas influenciavam suas identidades, e reciprocamente, como as estruturas sociais eram delineadas pelos papéis exercidos pelas pessoas.

Já a partir de 1970, o processo intensificado de integração global entre os estados-nação passa a influenciar fortemente as identidades dos indivíduos, especialmente no que diz respeito aos aspectos culturalmente

vinculados às nações de origem, as quais podem ser entendidas como uma das principais fontes das identidades culturais.

Importa nos determos um pouco nessa questão: uma cultura nacional é um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos e, por sua vez, as identidades nacionais adquirem tais sentidos por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais são representadas (HALL, 2006; WOODWARD, 2000). Assim, ser “brasileiro” envolve um processo de identificação do indivíduo com um conjunto de significados relativos à idéia de ser brasileiro.

O apelo fortemente genérico é uma marca do processo de formação das identidades nacionais, pois seu mecanismo trabalha criando padrões que servem de espelho para a população: padrão de alfabetização, de língua, de cultura, de instituições. O conceito de

comunidade imaginada56, de Benedict Anderson, retratou bem a narrativa

da nação moderna, definindo-a como uma estrutura simbólica que opera em uma temporalidade homogênea e vazia em uma perspectiva imaginária ou mítica da sociedade.

E como ocorre o processo de consolidação de uma cultura nacional? Hall (2006) cita alguns recursos: a) as narrativas de nação, contadas por meio da história, da mídia e da cultura popular, que trazem elementos compartilhados pelo povo e conectam os indivíduos uns aos outros, no passado, presente e futuro; b) a ênfase nas origens, na continuidade, na tradição e na intemporalidade, que confere à identidade nacional um caráter imutável, unificado e contínuo; c) a invenção da tradição, garantindo que normas e valores sejam disseminados entre o povo por meio de práticas que soam historicamente inquestionáveis; d) o mito fundacional, uma estória que conta a origem da nação e remonta geralmente a um tempo “mítico”, ou no caso de recentes estados-nação descolonizados, o mito fundacional inaugura a era do estado e cultura únicos, substituindo a realidade das inúmeras tribos pré-existentes; e e) a

56 ANDERSON, B. Imaginated Communities: Reflections on the Origin and Spread of

valorização da idéia de um povo puro ou original como a base da identidade nacional.

Essas estratégias visam conferir um aspecto unificado de representação à identidade cultural:

Trata-se de uma concepção fechada de “tribo”, diáspora e pátria. Possuir uma identidade cultural nesse sentido é estar primordialmente em contato com um núcleo imutável e atemporal, ligando ao passado o futuro e o presente numa linha ininterrupta. Esse cordão umbilical é o que chamamos de “tradição”, cujo teste é o de sua fidelidade às origens, sua presença consciente diante de si mesma, sua “autenticidade”. É, claro, um mito – com todo o potencial real dos nossos mitos dominantes de moldar nossos imaginários, influenciar nossas ações, conferir significados às nossas vidas e dar sentido à nossa história. (HALL, 2009, p.29).

O autor, entretanto, apresenta elementos que servem para questionarmos a tese da unicidade da cultura nacional, como, por exemplo, o fato de que a unificação da grande maioria das nações ter acontecido por meio de processos violentos, que acabavam por subjugar os povos dominados, aniquilando seus traços culturais, costumes, línguas, tradições, ocasionando assim o desaparecimento forçado da diferença cultural. Outro argumento é o de que as nações foram historicamente compostas por diferentes classes sociais, grupos étnicos e de gênero e, por fim, o terceiro aspecto lembra que as modernas nações ocidentais exerceram grande influência generalista sobre as culturas dos colonizados. Hall (2006) sintetiza, então:

Em vez de pensar as culturas nacionais como unificadas, deveríamos pensá-las como constituindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade. Elas são atravessadas por profundas divisões e diferenças internas, sendo “unificadas” apenas através do exercício de diferentes formas de poder cultural. (p. 62)

Como vimos, as idéias de nação e identidade cultural são construídas por meio de um sistema simbólico de representação que visa

à unificação, entretanto, seu padrão cultural socialmente reconhecido, visto como um meio harmônico, não poderia escapar à multiplicidade.

Ainda de acordo com Hall (2006), a essência de qualquer sistema de representação são as dimensões espaço e tempo e essas têm sofrido profundas transformações na era da integração global, revelando algumas forças de mudança como o processo de compressão do tempo e do encurtamento das distâncias. O espaço simbólico da nossa identidade nos remete ao senso de “lugar”, de “casa” e o tempo imaginário relaciona- se às tradições inventadas, aos mitos de origem e às narrativas de nossa nação, os quais nos conectam no passado e futuro com os outros indivíduos da mesma nação de origem. Bhabha (2010) afirma que inícios e fins não mais se sustentam, uma vez que espaços e tempos vêm produzindo “figuras complexas de diferença e identidade, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão” (p. 19). Para o teórico, deve-se focalizar os momentos ou processos produzidos no “entre-lugar”, nos interstícios, nas fronteiras, pela articulação das diferenças culturais:

Esses “entre-lugares” fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade. (p.20)

Nessa perspectiva, abordaríamos, então, a identidade em uma perspectiva da differánce, conceito originalmente utilizado pelo filósofo francês Jacques Derrida, e retomado nos Estudos Culturais para valorizar a linguagem na compreensão dos termos identidade e diferença cultural. O princípio elementar é de que a identidade refere-se ao que “eu sou”, em oposição ao que o “outro é”. As duas categorias, “eu” e “outro”, podem parecer assim “fatos autônomos”, de caráter essencializado e cristalizado. Contudo, chama-se atenção para a estrita dependência entre as duas entidades: implicitamente no que “eu sou”, esconde-se “o que eu não sou”, até porque nós nos afirmamos no intuito de negar outra posição de identidade. “Toda identidade é fundamentada sobre uma exclusão e, nesse sentido, é um efeito de poder”, diz Hall (2009, p.81). Esse efeito de poder se manifesta na tensão entre incluir/excluir; em demarcar fronteiras;

em classificar; em normalizar; todos são processos de afirmação/negação de identidades.

Dessa forma, a afirmação de uma identidade e a negação de outra são atos de linguagem, de criação lingüística, ou seja, são ativamente produzidos pelos indivíduos no seio das relações sociais e culturais. De acordo com os pressupostos de Ferdinand de Sausurre, lingüista estruturalista, os signos, elementos constitutivos da língua, são arbitrários57. Isso quer dizer que eles não têm valor absoluto e só adquirem sentido em meio a um sistema de diferenciação, que é um mecanismo básico de funcionamento da língua e também, de instituições sociais e culturais, como a identidade (SILVA, 2000).

Além de arbitrário, Derrida alerta para outras características do signo: sua instabilidade e indeterminação. Isso significa que o signo é um sinal, um traço que apenas representa uma outra coisa ou conceito, porém esses não estão presentes no signo. Apesar de não estarem presentes no signo, há sempre a percepção de que a coisa ou conceito é parte integrante da idéia do signo. O filósofo afirma que a plena presença no signo é indefinidamente adiada e, em função dessa impossibilidade da presença plena, o signo passa a depender de um processo de diferenciação. Sendo assim, Derrida acrescenta a idéia de traço: “o signo carrega sempre não apenas o traço daquilo que ele substitui, mas também o traço daquilo que ele não é, ou seja, precisamente da diferença” (SILVA, 2000, p. 70). Hall (2009) contribui afirmando que o significado/identidade de cada conceito é constituído(a) em relação a todos os demais conceitos do sistema em cujos termos ele significa. Esses demais conceitos são o “exterior” da identidade, cuja “ausência” ou falta é constitutiva de sua presença (p. 81).

57 Para Saussure (2006) a unidade linguística chamada de signo é dupla, uma união de

dois termos. Ele liga um conceito a sua representação mais material (ou imagem acústica), denominados de significado e significante, respectivamente. Ele explica: “Assim, a idéia de “mar” não está ligada por relação alguma interior à sequência de sons m-a-r que lhe serve de significante; poderia ser representada igualmente bem por outra sequência, não importa qual; como prova, temos as diferenças entre as línguas e a própria existência de línguas diferentes: o significado da palavra francesa boeuf (“boi”) tem por significante b-ö-f de um lado da fronteira franco-germânica, e o-k-s (Ochs) do outro” (p. 81).

Nessa perspectiva, os signos são essencialmente marcados pelo adiamento da presença e pela diferença frente a outros signos, características da différance. Visto que a identidade e a diferença são também definidas pela linguagem, elas também serão igualmente marcadas pela instabilidade e indeterminação, não sendo definidas somente por sua presença e conteúdo positivo. Esse princípio é fundamental, pois nos ajuda a refletir que nenhum texto ou sistema de significados culturais são autossuficientes, uma vez que “o ato da enunciação cultural – o lugar do enunciado – é atravessado pela

différance da escrita" (BHABHA, 2010, p. 65).

Debates como esses nos previnem quanto a possíveis simplificações no âmbito do estudo sobre as identidades culturais, inclusive, contribui no discernimento de termos, tais como diversidade e diferença cultural. De acordo com BHABHA (2010), o primeiro termo, diversidade, é relativo ao reconhecimento de conteúdos e costumes culturais pré-dados; reflete uma separação de culturas intocadas e “protegidas na utopia de uma memória mítica de uma identidade coletiva única” (p.63). Já a diferença cultural “é o processo de significação através do qual afirmações da cultura ou sobre a cultura diferenciam, discriminam e autorizam a produção de campos de força, referência, aplicabilidade e capacidade” (p. 63). E mais:

O conceito de diferença cultural concentra-se no problema da ambivalência da autoridade cultural: a tentativa de dominar em nome de uma supremacia cultural que é ela mesma produzida apenas no momento da diferenciação. (idem, p. 64, grifo do autor)

Por isso o teórico afirma que “é essa diferença no processo da linguagem que é crucial para a produção do sentido e que ao mesmo tempo, assegura que o sentido nunca é simplesmente mimético e transparente” (p. 65), garantindo assim que o significado e os símbolos da cultura possam ser apropriados ou traduzidos de outro modo.

Como tentamos demonstrar, a identidade é erguida no seio da linguagem, cujos princípios básicos, arbitrariedade, indeterminação e instabilidade são materializados em um processo de diferenciação não

dialógico (eu sou isso porque não sou aquilo). O indivíduo, produtor do discurso, pode fazer-se valer de uma autoridade produzida no ato de afirmar/diferenciar: eu considero que a minha identidade é melhor que a do outro e daí se estabelece uma relação de poder, em que os traços híbridos da diferença cultural não sobressaem. Os jovens estudantes dos PALOP “em trânsito” são surpreendidos com tamanho conflito em função da diferença, no sentido abordado neste capítulo e como Silva (2002) propõe: “A identidade é predicativa, propositiva: x é isso. A diferença é experimental: o que fazer com x.” (p. 66).

Assim, a aproximação e a convivência no novo grupo social os conduzem a um modo ativo de experimentação biográfica, quando precisam negociar “agonisticamente”, segundo Bhabha (2010), suas normas e valores de referência. Essa posição distinta que o estrangeiro assume no grupo pode ter traços de positividade, segundo Simmel (1993), ou carregar perenemente a impossibilidade de transposição das barreiras do poder cultural, aproximando-nos da análise de Schutz (1944).

De todo modo, há que se pensar que os jovens estudantes oriundos dos PALOP traduzem-se permanentemente, e é nesses espaços que identidades, singulares ou coletivas, são produzidas, não mais na busca da pretensa linearidade e homogeneidade cultural, já descontruída há muito tempo. E Weller et al (2002, p. 36/95) nos esclarecem que as experiências diárias não compõem um todo claro/racional, mas constituem a vida real/racional, repleta de ambivalências, e é assim, que as manifestações culturais devem ser compreendidas.