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5 OS ESTUDANTES E SEUS PAÍSES DE ORIGEM

5.5 Síntese comparativa

Um aspecto comum aos quatro países dos PALOP é o passado recente como ex-colônia portuguesa. Visto que o processo de independência geralmente não é pacífico, pois envolve batalhas e confrontos entre os que lutam pela autonomia e aqueles que pretendem evitá-la, o resultado implica em um processo de estruturação socioeconômica a longo prazo.

Os estudantes guineenses foram os que mais relataram questões do país, relacionando-as às conseqüências das sucessivas disputas pelo poder, que ocorrem desde a independência até os dias atuais. A Guiné Bissau ainda está em processo de normalização política, social e institucional. Eles denunciam as fragilidades da gestão, que não provê o acesso e a estrutura mínima para as escolas do sistema público de ensino e que deixa o funcionalismo, incluindo os professores, sem salário por muitos meses. Ser professor em Guiné significa sofrimento, como diz João (educação superior, linha 54). Nesse contexto, muitos guineenses formados, com graduação e pós, migraram para Cabo Verde, a fim de trabalharem em condições mais satisfatórias. Os estudantes consideram

85 Essas informações detalhadas sobre a relação filhos, família e universidade foram

reveladas à entrevistadora durante a realização de entrevistas narrativas, com Henrique e Flávia, mas que não estão incorporadas à tese.

que esse desvio no fluxo dos formados pode trazer más conseqüências ao desenvolvimento do país.

Já no caso dos países insulares, como São Tomé e Príncipe e Cabo Verde, uma dificuldade comum é a carência de infraestrutura nas ilhas periféricas, o que ocasiona a migração para os grandes centros, seja para estudo ou trabalho. Essa realidade é trazida por Carmen, oriunda da ilha do Príncipe, Flávia e Tatiana, das ilhas de São Nicolau e Santo Antão, respectivamente. Elas denunciam que ainda há muito a ser feito a fim de garantir igualdade de oportunidade para todos. Por certo que o percurso educacional dessas jovens carrega traços diferenciados, incluindo experiências precoces de deslocamentos para as capitais, no caso de Carmen com mudança de esfera rural/urbano, a fim de darem continuidade aos estudos.

Em todo caso, os próprios entrevistados pronunciaram os esforços que estão sendo empreendidos pelos governos locais no sentido da melhoria da qualidade de vida da população. Lucas, no grupo guineense, é um líder no grupo até pelo fato de ter chegado ao Brasil antes de todos os outros e de assumir o papel de conselheiro e do irmão mais velho. Ele é otimista em relação ao crescimento do seu país e faz questão de que seus colegas também partilhem desse sentimento. Por diversas vezes ele utiliza expressões que denotam a mudança em curso, reorientando a discussão (“agora a situação está melhorando”, escola, linha 114; “agora o cenário está melhorando”, idem, linha 122; “mas ta se pensando em melhorar isso”, educação superior, linha 47; “as coisas vão melhorar bastante”, futuro, linha 80). Henrique e Carlos também vislumbram claramente um futuro mais competitivo para Cabo Verde e deixaram isso claro durante a realização do grupo (“ultimamente tem melhorado bastante”, Henrique, país, linha 27; “acredito sim que tenhamos condições de ultrapassar todos esses problemas”, Carlos, idem, linha 158). Carmen, oriunda da ilha do Príncipe, nota que sua ilha tem prosperado, mesmo que lentamente (“mas assim já teve um crescimento, é muito lento, a gente não percebe, mas já teve crescimento”, país, linha 58). Já entre os estudantes angolanos essa abordagem não teve muito destaque.

Estreitamente vinculado às premissas de desenvolvimento, está o compromisso de contribuição ao desenvolvimento do país por meio do retorno depois de formados. Mesmo que a volta seja relativizada, é presente o compromisso de trabalhar em prol da melhoria do país. Eles sabem que exercem um papel muito importante nesse processo. Nas palavras de Lucas, a respeito de seu país, “a gente espera melhorar isso com nosso contributo né?” (passagem país, linha 42). A são-tomense Lúcia também afirma “porque também eu vim aqui pra isso, pra ajudar lá” (passagem país, linha 113), em consonância com Daniel, angolano, “mas é um compromisso com nós mesmos né?” (passagem futuro, linha 21) e com o caboverdiano Carlos “e por isso que estamos aqui né? Pra formar e regressar e dá nosso contributo”(passagem país, linha 156), como vem sendo feito há mais de uma geração. A migração internacional para estudo se configura como uma ação governamental intrínseca aos planos de desenvolvimento dos PALOP, envolvendo seguidas gerações neste processo. Muitos pais de alunos já estudaram no exterior, inclusive no Brasil. Esse traço geracional não foi perceptível somente no grupo de São Tomé e Príncipe. O ganho com a experiência de estudo reverte-se para o indivíduo, para a família e para a sociedade em geral86, contudo, eles se situam como parte de um projeto coletivo e o conhecimento adquirido, bem como o sucesso nesta etapa do percurso educacional tornam-se preciosos para seus países. Esse sentimento é comum a todos eles e é capaz de inspirar objetivos e projetos a longo prazo.

As questões relativas ao sistema educacional de seus respectivos países chamam a atenção principalmente dos estudantes guineenses e são-tomenses, porém, ganham focos diferentes em cada um dos grupos. Os primeiros analisam a situação educacional do país, se percebem como parte do sistema precário descrito, porém, de maneira ocasional, pois estudaram em escolas privadas na Guiné. O mesmo não se pode dizer das jovens são-tomenses, visto que sempre estudaram na rede pública, na mesma que analisaram e criticaram durante o grupo de discussão. A trajetória até a universidade é reconhecidamente vitoriosa: “mesmo com a

dificuldade, a gente consegue superar” (Carmen, escola, linha 188). O verbo usado por Carmen está no tempo presente “consegue superar”, quer dizer, a dificuldade não cessou com o ingresso na universidade, e isso nos remete a uma singularidade que se relaciona diretamente com as carências educacionais no país: as condições de acompanhamento do fluxo escolar na UnB. Este ponto foi tocado por Carlos, quando reconheceu a qualidade da educação básica caboverdiana e a associou ao bom desempenho de seus conterrâneos nas universidades estrangeiras.

Um fator positivo é a caracterização do povo africano, presente em quase todos os grupos. Somente as estudantes de São Tomé não explicitaram essa percepção, mas nos outros grupos os estudantes se manifestaram salientando a simpatia e, principalmente, a solidariedade de seu povo. Carlos chama de alegre, solidário e apegado à família (passagem país) o povo caboverdiano. Maria impressiona-se com o desperdício de comida em Brasília, pois em seu país, quando há sobra, as pessoas doam para quem não tem, ou ainda menciona que alguém pode te ajudar sem pedir nada em troca (passagem escola) e Lucas resume o espírito do povo “há uma solidariedade imensa entre a gente” (passagem escola, linha 129). A solidariedade guineense foi expressa, sobretudo, na convivência religiosa entre católicos e muçulmanos, na região do leste do país em que Paula vive com a família. No caso dos angolanos, a identidade nacional africana foi exibida pelo acolhimento do povo e constituiu o eixo principal de discussão em dois blocos do grupo de discussão, inicial e país, tecido principalmente pelo viés da comparação com os brasileiros.

A família, uma questão central para a maioria dos grupos, com exceção de Guiné, que não se deteve muito no tema, mostra-se como uma base de apoio, incentiva e propicia condições para realizar sonhos. Associada à condição econômica do país, a condição de custear os estudos no exterior pode variar, porém, mesmo que o salário integral dos pais não valha “nada” em Brasília (Lúcia, São Tomé, família), o apoio é incondicional. “É um sonho deles @que a gente vai concretizar@ e que é

um sonho nosso também” (família, linha 42), diz Lúcia. E Henrique ratifica: “é que nem o sonho de qualquer pai pra nossa geração é ter um filho formado assim” (Cabo Verde, família, linha 139). Eles estão realizando um projeto87 em comum, o curso superior. Em função deste projeto, os pais apóiam a migração temporária dos filhos, segundo Lúcia, eles não “nos travam” (idem, linha 45), pois querem que sejamos “alguém na vida” (linha 53). A expectativa dos pais supera inclusive possíveis barreiras culturais, como é o caso de Paula, guineense, muçulmana, cujo padrasto resistiu a sua escolha de vir para o Brasil, em um primeiro momento, mas em seguida aceitou a idéia e a incentivou. Outra função que a família assume, em prol da realização desta meta, é o cuidado com os netos, caso de Tatiana e Flávia de Cabo Verde.

Há uma tendência de que o olhar sobre o país de origem ganhe mais maturidade ao longo da temporada de estudos no exterior, que poderíamos caracterizar como uma espécie de “viagem para dentro” para utilizarmos um termo de Edward Said (1995) e Carlos está ciente disso. dizendo “que já por ser um universitário, não sei se com o espírito já mais, não podia ser feito muito mais, com aquele olhar mais crítico” (Cabo Verde, país, linha 73), demonstrando que a condição de universitário, que representa um país, permeada pelas experiências vividas como o veterano do grupo no Brasil e outras vivências dentro e fora do ambiente acadêmico, modificam a descrição e análise de seu país. Refletir sobre o país de origem é também um exercício de reflexão sobre si mesmos, é resgatar a vida de cada um, a identidade e cultura de origem, o conhecimento adquirido e projetar-se individual e coletivamente. As identidades nacionais têm a função de conectar os indivíduos em torno do ideal da nação e vimos que o passado e futuro desses jovens se entrelaçam em uma relação de interdependência e responsabilidade.

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Sobre o conceito de projeto, SCHUTZ (1953) afirma que “All projecting consists in anticipation of future conduct by way of phantasying, yet it is not the ongoing process of action but the phantasied act as having been accomplished which is the starting point of all projecting” (p. 15). Cf. SCHUTZ, Alfred. Common-Sense and Scientific Interpretation of Human Action. In: Philosophy and Phenomenological Research, Vol. 14, No. 1 (Sep., 1953), pp. 1-38.