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CAPÍTULO 4: POLÍTICA PÚBLICA E INTERSETORIALIDADE

4.9. A intersetorialidade e a política de segurança pública

A patologia do saber, colocada por Hilton Japiassu (1976) e que se expressa na prática, através de uma patologia das políticas públicas, tem claro reflexo na política de segurança pública. A interdisciplinaridade se contrapõe à disciplinaridade, que levou a um esmigalhamento do saber através de uma superespecialização do conhecimento. A intersetorialidade, por sua vez, vem se contrapor à setorialidade ou insulamento das políticas públicas em setores, que levou a uma consequente limitação da eficácia dessas políticas no atendimento às demandas da sociedade.

Como já foi dito antes, é voz corrente entre os diversos autores que tratam de interdisciplinaridade e intersetorialidade que não se trata de extinguir as especializações ou setores, mas de se retornar a uma visão unificada do conhecimento e da realidade. Os especialistas, seja no campo da pesquisa ou do ensino ou ainda na implementação das políticas públicas, precisam se libertar das fronteiras displinares ou setoriais e encarar a realidade de forma total, tanto nos aspectos teóricos quanto práticos. Não existe desligamento entre teoria e prática, uma vez que o conhecimento produzido vai orientar a prática e é esse conhecimento produzido de forma fragmentada que vai orientar uma prática setorializada nas políticas públicas.

Não há que se negar a importância do saber particular, da especialidade para o avanço do conhecimento, pois a realidade é, ao mesmo tempo, unidade e parte. Tratar as políticas públicas de forma setorializada é, muitas vezes, um meio de facilitar sua implementação. O que não se pode é perder a visão de totalidade e perceber que as partes que formam o todo guardam relação entre si e que essa relação é imanente à realidade. Tanto as disciplinas precisam romper fronteiras e se integrarem a outros conhecimentos para explicarem melhor os fenômenos quanto as políticas públicas precisam trabalhar de forma integrada para serem mais eficazes.

A política de segurança é uma política pública, pois, como todas as outras, procura, por meio da ação estatal, atender demandas da sociedade em meio a interesses conflitantes. E ela, portanto, não escapa ao problema da setorialização das politicas. Implementada pelas polícias, conforme colocado pela Constituição Federal de 1988, a política de segurança pública tem como missão garantir a defesa do cidadão contra a violação dos direitos humanos e de cidadania. Essa é a visão atual da segurança pública distinta da que por muito tempo orientou os órgãos estatais envolvidos com a segurança da sociedade. Antes, no Brasil, a segurança pública que deveria ser garantida era a do Estado e não a da sociedade.

O entendimento atual é que, enquanto necessidade humana, a segurança pública precisa ser vista de forma ampliada e deve ser garantida nos mais diversos aspectos, como trabalho, saúde, educação, lazer entre outros, e não apenas na preservação da incolumidade das pessoas ou do patrimônio, como dispõe a Constituição Federal de 1988. Em virtude disso, a política de segurança pública passou a ser entendida como garantidora dos direitos humanos e de cidadania.

A concepção restrita de segurança, entretanto, tem se mostrado insuficiente para garantir a experimentação de um sentimento de segurança por parte da sociedade fazendo-se mister uma nova perspectiva para a política de segurança que entenda a segurança pública de forma ampliada. Embora ainda enfatizando o enfrentamento ao crime e a preservação do patrimônio

como focos da política de segurança, o poder público já inclui em seu discurso uma visão ampliada de segurança, tendo em vista a ineficácia da visão restrita como balizadora das ações de segurança pública.

Essa perspectiva ampliada da segurança pública e consequentemente da política de segurança pública tem por base uma visão de totalidade que compõe a relação dialética entre segurança e insegurança pública. Garantir a segurança e evitar a insegurança só vai ser possível a partir de uma visão de totalidade dessa relação, pois garantir segurança e evitar insegurança é uma possibilidade que demanda a atuação das diversas políticas articuladas com a de segurança pública. Portanto, é preciso avançar de uma visão particularizada da segurança, dependente tão somente das ações repressivas de combate ao crime, para uma visão totalizante que entenda o fenômeno da segurança versus insegurança como dependente de políticas sociais, como saúde, educação, trabalho e outras.

O caminho para a articulação entre as políticas públicas é a intersetorialidade que visa romper com a visão fragmentada no planejamento e implementação dessas políticas. No caso da política de segurança pública, a atuação entre setores precisa acontecer para que esta supere a visão restrita de segurança e se articule com as demais políticas para realmente fazer com que a população se sinta segura.

Malgrado os avanços, na política de segurança vamos encontrar os mesmos entraves à implementação da intersetorialidade que também ocorrem nas demais políticas públicas. A visão fragmentada da segurança pública está tão arraigada nos órgãos de segurança que estes resistem a qualquer mudança rumo à intersetorialidade. Embora na esfera da segurança pública muitos já defendam ações intersetorializadas, ainda existe um resistência ao trabalho articulado com as outras políticas.

Outro problema que ocorre com a política de segurança pública e que decorre de uma visão particularizada e setorializada dessa política é a busca por solucionar o problema da segurança principalmente por ações policiais e pela redução do número de homicídios. Não se quer dizer que essa intervenção não seja importante, mas que a segurança da população está para além da simples redução do número de homicídios e só poderá materializar-se com intervenções intersetorializadas. Não se pode olvidar, entretanto, que um dos principais vetores de insegurança na atualidade é o incremento da violência. É esta violência que, por agredir direitos humanos e de cidadania, é também objeto de ação da política de segurança pública. Todos os especialistas em segurança pública, entretanto, afirmam que a violência só poderá ser enfrentada, se houver ações articuladas entre a política de segurança e as outras políticas públicas.

O enfrentamento da violência como forma de possibilitar um sentimento de segurança na população é parte da visão totalizante da segurança pública e, por isso, não pode ser encarado de forma setorializada. É uma subtotalidade que se relaciona com outras subtotalidades para formar uma totalidade. Dito com outras palavras, a violência é uma singularidade da relação dialética, formada entre segurança e insegurança e que sofre múltiplas determinações. Atuar de forma eficaz no enfrentamento à insegurança é articular as diversas políticas públicas que possam intervir nessas múltiplas determinações do fenômeno.

As determinações da insegurança, portanto, são múltiplas e não podem ser resolvidas ou pelo menos minimizadas com ações meramente policiais e de caráter repressivo. Não se trata, como já se disse antes, de negar a importância da especialização ou dos setores, mas de não se perder a visão do todo. O trabalho da polícia, seja repressivo ou preventivo tem uma importância crucial no enfrentamento à insegurança, porém, não vai dar conta do fenômeno se atuar sozinha e nesses eixos.

Do mesmo modo que a saúde pública não pode mais ser entendida apenas como um problema que diz respeito ao corpo de cada um, a segurança pública não pode mais ser encarada como um problema dos indivíduos que teimam em infringir as leis. Logo, os órgãos que implementam a política de saúde não vão garantir sozinhos saúde à população, bem como a polícia não vai garantir sozinha a segurança a esta mesma população. Precisa existir ações integradas, intersetorializadas, para que essas políticas realmente se efetivem.

A insegurança, que vem causando tanto desassossego à população, tem como uma de suas principais determinações a questão social que evidentemente demanda respostas das diversas políticas públicas e não apenas da política de segurança. A falta de assistência social e emprego; as péssimas condições de moradia; o pouco acesso à educação e à saúde; além de dificuldades na profissionalização e lazer para a juventude, são, entre outros, os determinantes da atual situação de insegurança em que nos encontramos.

A política de segurança pública, portanto, deverá atuar de forma integrada com outras políticas públicas, se quiser realmente garantir segurança à sociedade contra a violação de seus direitos humanos e de cidadania. Esta política precisará romper fronteiras, sair do enclausuramento setorial para buscar uma integração com as políticas de saúde, educação, assistência social e outras, para cumprir sua missão de garantir a segurança à população. É preciso principalmente mudar a cultura dos órgãos de segurança acostumados a um trabalho fragmentado e isolado, para uma cultura de articulação e integração entre setores, visando uma maior eficácia da ação estatal.

O enclausuramento da política de segurança pública em um único setor e voltado apenas para ações policiais decorre de uma visão restrita da segurança pública direcionada para a garantia do direito à integridade física e ao patrimônio. É preciso entender que esses também são direitos humanos e de cidadania que precisam ser preservados, porém que não são os únicos. Uma visão ampliada de segurança vai permitir romper com o enclausuramento da política de segurança pública a partir da incorporação do princípio da intersetorialidade pela mesma.