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CAPÍTULO 2: A POLÍTICA PÚBLICA NA RELAÇÃO ESTADO E SOCIEDADE

2.5. A política pública na relação Estado e sociedade em uma perspectiva gramsciana

Gramsci trouxe grandes contribuições ao estudo da sociedade capitalista, sendo uma das mais importantes a sua análise da forma como se dá o domínio de uma classe sobre outra. Esse domínio, que para Marx e Lênin se devia principalmente ao poder coator do Estado, para Gramsci, se expressa principalmente no domínio ideológico, na possibilidade de uma classe obter o convencimento e a adesão de outra classe ao seu projeto societário. Para conseguir esse consenso, a classe dominante, algumas vezes, vai se valer, entre outras estratégias, do atendimento a demandas oriundas dos grupos subalternos por meio das políticas públicas.

Ao se obter o consenso, estabelece-se uma hegemonia. Para se conseguir a adesão dos grupos subalternos, e consequentemente a hegemonia, o Estado tem um papel fundamental e atuará tanto de forma violenta e coercitiva quanto através das políticas públicas, da cultura e do incremento e disseminação de ideologias. No primeiro caso, o Estado é visto em sentido estrito,

ou sociedade política, no segundo caso, em sentido amplo, abrange sociedade política e sociedade civil.

Para Gramsci, diferentemente de Marx e Lênin, o Estado não é tão somente um comitê para administrar os interesses da burguesia, mas um organismo complexo que exerce funções de dominação e hegemonia e que detém os instrumentos de coerção e de construção do consenso. O Estado tem como função básica manter a dominação, mas também buscar o convencimento dos grupos subalternos e sua adesão ao projeto societário da classe dominante. De acordo com Simionatto (2004, p. 69):

Em qualquer forma de Estado moderno, as funções de hegemonia e dominação, ou coerção e consenso, podem ser apontadas. No entanto, o que permite que a postura do Estado seja menos coercitiva e mais consensual, imponha-se menos pela dominação e mais pela hegemonia, depende da autonomia relativa das estruturas e de como se colocam no interior do Estado as organizações de cada esfera.

Não é tarefa fácil manter o equilíbrio e a estabilidade política em uma sociedade atravessada pelo antagonismo de classes. Ao mesmo tempo em que defende os interesses da classe dominante, o Estado precisa garantir a legitimidade de seus atos perante os subalternos. Um instrumento que também pode ser utilizado pelo Estado para conseguir o consenso da classe dominada: são as políticas públicas. Através delas, a classe dominante abre mão de parcela de seus lucros para atender interesses dos grupos subalternos. Para Pansardi (2012):

A construção do equilíbrio político entre as classes sociais significa um compromisso em que a classe dominante se propõe a atender algumas demandas econômico-corporativas dos setores dominados, ou seja, a ceder parte dos seus lucros em benefício a esses setores. Assim, construir a hegemonia significa construir políticas públicas que atendam algumas reivindicações e necessidades daqueles grupos subalternos.

Não se pode perder de vista, entretanto, que as políticas públicas são também um espaço de conflito onde entram em choque os interesses de classe. Nas políticas públicas, portanto, abre-se a possibilidade de ganhos por parte dos subalternos a partir do confronto de interesses com a classe dominante. As políticas públicas não podem, entretanto, ser reduzidas ao aspecto puramente político, pois elas são também meios de desenvolvimento da produção e reprodução do capital. O Estado nesse caso assume um papel formativo e educativo adaptando a massa de trabalhadores às novas necessidades da civilização capitalista. O novo homem e novo cidadão no capitalismo carecem agora de novos costumes, moralidade e conhecimentos. Esse cidadão

trabalhador é imprescindível ao sistema capitalista, uma vez que exerce o papel de produtor, consumidor e também de eleitor.

O papel do Estado, portanto, na perspectiva gramsciana, tem a dupla função de garantir a acumulação capitalista e também a legitimidade da ordem burguesa. O equilíbrio entre essas duas funções é instável, uma vez que, como vimos, a classe dominante precisa, através das políticas públicas, abdicar de parte de seus privilégios, visando atender demandas da classe subalterna. Gramsci escreve: “o fato da hegemonia pressupõe indubitavelmente que se deva levar em conta os interesses e as tendências dos grupos sobre os quais a hegemonia será exercida; que se forme certo equilíbrio de compromisso, isto é, que o grupo dirigente faça sacrifícios de ordem econômico-corporativa.” (GRAMSCI, 1989, p. 33).

Por outro lado, os benefícios econômicos concedidos não podem ir além dos limites fixados pelos lucros privados burgueses, pois, quanto menor forem estes lucros, mais a classe burguesa pressionará o Estado para recuperá-los. É o que vem demonstrando as mudanças no aparelho de Estado, implementadas pelo neoliberalismo, visando diminuir os gastos sociais. Os defensores do ideário neoliberal acusam o Estado de Bem-Estar de tolher o crescimento econômico e a consequente produção de riqueza.

Mesmo defendendo um Estado mínimo, os governos neoliberais, no entanto, não podem prescindir das políticas públicas enquanto instrumento para atender necessidades dos trabalhadores, visando o convencimento, a adesão e o consenso. A questão social continua a existir e precisa de políticas públicas para seu enfrentamento, mesmo que essas políticas possam ser implementadas pela própria sociedade civil em parceria com o Estado e mesmo que essas parcerias sejam uma desresponsabilização do Estado, e um meio de controle e subordinação de organizações da sociedade civil.

A política de segurança pública não é uma política social, mas pode também ser facilmente interpretada dentro de uma perspectiva gramsciana. No Brasil, os setores subalternos são os que mais reivindicam ações do Estado para garantir a segurança pública. São esses setores os mais vulneráveis à insegurança, advenha ela de criminosos ou da omissão do próprio Estado. Em uma perspectiva restrita de segurança, os aparelhos do Estado que desenvolvem as ações de segurança pública são a polícia, o ministério público e o judiciário, que têm a função de garantir a segurança do cidadão e atuar de forma coercitiva contra os que atentam contra as normativas jurídicas e sociais.

Obviamente que a insegurança vivida pelo cidadão brasileiro não atinge apenas a classe subalterna, mas generalizou-se também para a classe dominante. Mas é óbvio também que os setores mais vulneráveis são aqueles que compõem os estratos mais pobres da população e que,

por isso, são os principais alvos da política de segurança pública, seja como beneficiários, seja como objetos da coação estatal. Percebe-se, então, que o atendimento à demanda por segurança pública é um meio de atender os interesses da classe subalterna como forma de legitimação do Estado enquanto mediador de conflitos e indutor do consenso entre as classes.