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CAPÍTULO 3: POLÍTICA DE SEGURANÇA COMO POLÍTICA PÚBLICA

3.5. A política de segurança pública sob uma perspectiva ampliada de segurança

O debate em torno do tema da segurança pública vem ganhando espaço muito mais pelos altos índices de criminalidade e violência em todo o país, do que por ser um direito que precisa ser garantido pelo Estado de forma totalizante. Estudos e ações vêm sendo desenvolvidos com o intuito de aprimorar a segurança pública e mudar o atual sentimento de insegurança da população nas diversas regiões do Brasil. Existe uma necessidade de se superar antigas práticas cujos resultados são insatisfatórios para garantir um sentimento de segurança à população. Um ponto de partida é o entendimento de que a segurança pública diz respeito a todos, englobando Estado e sociedade, e não é apenas um caso de polícia, mas de política.

A principal dificuldade, porém, na implementação da política de segurança pública, parece estar associada a uma visão limitada do que seja a segurança pública. Essa visão limitada entende a segurança pública materializada apenas na garantia da ordem pública e da integridade física e do patrimônio do cidadão. É essa visão expressa no artigo 144 da Constituição Federal, quando coloca que a segurança pública diz respeito à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Na verdade, como a segurança pública é uma necessidade humana que está atrelada a outras necessidades, é possível entender a mesma de uma forma ampliada e o sentimento de segurança relacionado à garantia dos direitos humanos e de cidadania.

A política de segurança pública, por conseguinte, não pode, do mesmo modo, ser vista de forma limitada e voltada apenas para ações repressivas de enfrentamento à criminalidade. Ela também precisa ser vista a partir de uma perspectiva ampliada de segurança pública que tem de por base a garantia dos direitos humanos e de cidadania. A garantia desses direitos consequentemente passa por uma articulação entre a política de segurança pública e as demais políticas públicas como trabalho, saúde, educação entre outras.

Não se pode olvidar, entretanto, que um dos grandes desafios da segurança pública na atualidade é a insegurança expressa no incremento da violência, que também agride os direitos humanos e de cidadania da população. Garantir os direitos humanos e de cidadania para dar segurança à sociedade é também enfrentar a violência. Ocorre que a violência tem causas estruturais ligadas à relação capital e trabalho no mundo capitalista e é expressão da chamada questão social. Desse modo, mais uma vez, faz-se mister uma ação integrada entre a política de segurança e as demais políticas públicas, visando enfrentar a insegurança que se expressa na violência e garantir segurança à população.

Retomando a perspectiva gramsciana de política pública, vamos perceber que a visão restrita da segurança pública direcionada apenas para garantia da ordem pública ou incolumidade das pessoas e do patrimônio representa bem os interesses da classe dominante. Por um lado, a garantia da ordem pública admite que a mesma possa ser usada como instrumento de coerção da classe dominada através da repressão a grupos ou movimentos que se contraponham ao Estado. Em última instância, continua a visão conservadora da segurança pública como segurança do Estado e não da sociedade. Por outro lado, a garantia da incolumidade das pessoas e do patrimônio é também um meio de atender à demanda da classe subalterna por segurança em oposição à insegurança, que se manifesta na violência e que tem afetado principalmente os mais pobres. Essa violência agride principalmente a integridade física e os bens de ordem material, daí porque a ênfase na incolumidade e no patrimônio.

Vale lembrar que a propriedade foi transformada em direito fundamental defendido pela burguesia e colocado inclusive na declaração Universal dos Direitos Humanos em seu artigo 17. A Carta Constitucional de 1988 também faz referência ao direito de propriedade no inciso XXII, do artigo quinto. A propriedade é, por conseguinte, um direito humano e de cidadania defendido largamente pelos burgueses. Não é de se estranhar, portanto, que, ao tratar da segurança pública, a Carta Magna fale em preservação do patrimônio.

Para realmente dar segurança à população, a política de segurança pública precisa romper com essa visão restrita e se pautar por uma visão ampliada se segurança pública, entendendo-a como garantidora de todos os direitos humanos e de cidadania, que englobam muito mais do que apenas os direitos ao patrimônio ou a incolumidade das pessoas. Para implementar uma visão ampliada de segurança que garanta direitos, a política de segurança pública deverá, portanto, se articular com as demais políticas públicas, uma vez que a amplitude dos direitos humanos e de cidadania só poderá ser atingida através da articulação com as diversas políticas públicas.

Não se pode, por outro lado, criminalizar a pobreza e achar que apenas ações de redistribuição da riqueza e redução da desigualdade econômica irão reduzir a violência como se esta tivesse uma relação direta com a pobreza. Existem outros fatores culturais e ambientais que também influem no fenômeno da violência e uma ação sobre eles pode trazer resultados bastante eficazes. Desse modo, a prevenção da violência pode estar associada, por exemplo, a políticas de planejamento urbano, educação, cultura, lazer, geração de emprego e renda, fortalecimento comunitário, desarmamento, combate ao alcoolismo e consumo de drogas, entre outras. Essas estariam, portanto, no bojo das políticas que devem estar articuladas com a política de segurança pública.

As discussões em tono da segurança pública, na maioria das vezes, esbarram em uma dicotomia expressa em um discurso social e outro repressivo. Isso leva a uma percepção de que a política de segurança pública ou é independente ou está subordinada a macropolíticas sociais. No primeiro caso, corresponderia a uma política repressiva e no segundo, a uma política preventiva. O que fica claro, entretanto, é que os paradigmas não são incompatíveis e podem atuar de forma complementar. Um primeiro passo para fugir a essa dicotomia é justamente compreender a diferença e, ao mesmo tempo, complementariedade entre política de segurança pública e demais políticas públicas, como de educação, saúde, esportes, juventude, entre outras. Estudos desenvolvidos por diversas organizações governamentais e não governamentais dão conta de que a tarefa central da política de segurança pública é a redução “da sensação de insegurança da população, e não do atendimento, investigação e punição eficaz das ocorrências criminais verificadas”. (ZACCHI, 2002, p. 46). Não é que as ações de repressão e punição aos responsáveis por delitos sejam menos importantes, mas já se constata que não são suficientes para a redução da insegurança, daí porque o enfoque deve ser principalmente preventivo, de modo a evitar que a violência se instale. Não se pode, entretanto, descartar até o caráter preventivo da ação de repressão e punição dos culpados, pois, esses são meios de dissuadir a prática de novos delitos.

Muitos autores no Brasil e em outras partes do mundo têm chamado a atenção para o fato de que a ação policial é insuficiente para processar uma parte significativa dos conflitos verificados na sociedade. Apontam ainda para sua ineficácia como inibidora da insegurança e para a incongruência entre os investimentos feitos nesse sistema e os resultados alcançados. Desse modo, apesar da importância das agências policiais em todo o processo, elas não podem ser vistas como as únicas encarregadas da segurança pública, mas esta precisa abranger outras políticas de intervenção social que interfiram diretamente nos fatores e contextos sociais causadores de insegurança. Não obstante essa realidade, a ênfase continua sendo dada às ações na área repressiva.

Marcelo Zacchi (2002), a partir de sua experiência, aponta alguns obstáculos que se apresentam no caminho da implementação de uma nova concepção de segurança pública. O primeiro deles é a ausência, dentro do aparato estatal, de um espaço dedicado especificamente às políticas de segurança pública. O que ocorre é que, em cada governo, um setor diferente fica responsável pelo problema, o que leva a uma descontinuidade e fragmentação do trabalho iniciado anteriormente.

Outro obstáculo apontado são as resistências corporativas e a falta de cultura de cooperação multiagencial. Como já foi apontado, o desenvolvimento eficaz das políticas de

segurança pública necessita da cooperação entre setores governamentais e destes, com a sociedade civil. Infelizmente a burocracia e compartimentalização de setores estatais acabam condenando muitos programas na área da segurança pública a lentidão, incompletude, fragmentação e, muitas vezes, não efetivação.

Temos ainda como óbice à implementação das políticas de segurança pública a carência de metodologias consolidadas e de fontes de dados para o diagnóstico e planejamento de ações em âmbito local. As ações de enfrentamento à insegurança estão diretamente relacionadas à possibilidade do desenvolvimento de ações localizadas que reduzam o custo e o prazo de implementação dessas ações. Para ações localizadas é preciso conhecer os territórios a partir de dados sobre os mesmos, principalmente quanto às condições socioeconômicas. Ocorre que esses dados não existem ou são precários. Por outro lado, as metodologias para implementação das ações ainda estão se consolidando, o que dificulta o trabalho a ser desenvolvido.

Existe ainda a dificuldade em mobilizar a comunidade para a participação em programas voltados à segurança pública. Essa dificuldade leva, muitas vezes, a uma inadequação da ação desenvolvida com as demandas da comunidade, prejudicando a implementação de outras políticas articuladas com a de segurança pública. A participação da comunidade e a sintonia entre suas necessidades e os programas a serem desenvolvidos vão estar diretamente relacionados ao sucesso das ações a serem implementadas.

Uma política de segurança pública, portanto, para garantir o usufruto do direito à segurança pela população e enfrentar uma importante expressão da insegurança que é a violência, não poderá fazê-lo com uma visão restrita de segurança, que se limite à garantia da integridade física ou do patrimônio do cidadão. Como já foi visto, a violência tem múltiplas determinações, sendo uma delas a questão social, que só poderá ser enfrentada com políticas públicas das diversas áreas de atuação do Estado. A insegurança emana principalmente na desigualdade social intrínseca ao modo de produção capitalista. A ausência de garantia de emprego, trabalho, educação, saúde, entre outros direitos, já leva, por si só, à insegurança e indiretamente determinam o aparecimento da violência que vem aumentar o sentimento de insegurança da população, principalmente dos mais pobres.

A visão ampliada de segurança pública demanda, por conseguinte, uma articulação entre as diversas políticas governamentais, que só poderá ser atingida pela obediência ao princípio da intersetorialidade. É o trabalho intersetorializado que vai permitir à política de segurança expandir suas fronteiras e articular-se com as demais políticas públicas, de modo a atingir seus objetivos de forma mais eficaz.