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2. ACESSO À JUSTIÇA: DELIMITAÇÃO DO TEMA

3.2 A jurisdição administrativa e seu sistema recursal

O processo judiciário francês e a ramificação de sua Justiça tem como marca a adoção do sistema de dualidade de jurisdição. Classificar o Processo Civil como ramo do direito público só é possível se tiver como fundamento o fato de o Estado fornecer a prestação jurisdicional. Na França, no entanto, o processo judiciário divide-se em civil e administrativo, e apenas este último é considerado ramo do direito público. Não é, portanto, a partir da jurisdição que se define o caráter público ou privado do processo judiciário, mas de seu destinatário. Por isso, Processo Civil, na França, é tratado como tema de direito privado, já que o Estado não assumirá a condição de parte, o que somente ocorrerá no bojo do contencioso administrativo, que buscamos sintetizar em linhas gerais.

Atualmente, as regras processuais na França repartem-se entre o Código de Processo Penal e o Código de Processo Civil mas, embora não se tenha reservado a nomenclatura, o contencioso administrativo também recebeu um código com regras processuais próprias, denominado Código de Justiça Administrativa. A dualidade da jurisdição é uma característica marcante do direito francês, distinto pelo tratamento essencialmente judicial dos processos administrativos, cujas decisões definitivas, prolatadas por órgãos judiciários permanentes, são revestidas da força de coisa julgada para ambas as partes.

Tem-se, desse modo, a Justiça comum e a Justiça administrativa, cada qual com competência própria. Entretanto, a divisão de competências não é simples, sendo frequentemente fixada pela jurisprudência. Ainda assim, existem critérios que, teoricamente, permitiriam sua repartição objetiva, tal como o critério orgânico, que considera a presença de uma pessoa jurídica de direito público na lide, ou o da missão de serviço público, que leva em consideração a natureza do serviço prestado, ainda que por um particular, para ser definida a competência da Justiça

administrativa. O Tribunal de Conflitos foi criado exclusivamente para solucionar os conflitos positivos e negativos de competência entre a jurisdição administrativa e a jurisdição judiciária. Ele é constituído por um órgão jurisdicional que não pertence nem a uma nem a outra esfera, com membros de ambas as jurisdições (Conselho de Estado e Corte de Cassação).

A Justiça administrativa, em primeira instância, é exercida pelos Tribunais Administrativos, cuja atuação pode ser tanto monocrática quanto colegiada. Em segunda instância, pelas Cortes Administrativas de Apelação. Em última instância, na posição de órgão de cúpula do Poder Judiciário administrativo, pelo Conselho de Estado. A jurisdição administrativa dispõe de ampla competência, mas as principais matérias que geram sua provocação referem-se a questões de Direito Tributário, a situação jurídica dos estrangeiros, aos servidores e agentes públicos e a questões urbanísticas. Foi o que revelou o Centro de Estudos Sociológicos sobre o Direito e as Instituições Penais na análise dos dados da Justiça administrativa relativos a 2004 (2005, p. 21).

As estatísticas divulgadas pelo Ministério da Justiça francês para o ano de 2009 demonstram que, naquele ano, foram ajuizadas 172.195 novas ações perante os Tribunais Administrativos. No mesmo ano, 187.236 ações foram julgadas em primeira instância, tendo sido identificadas 184.623 aguardando uma solução. O tempo médio de permanência de um caso nos Tribunais Administrativos ao longo de 2009 foi de 9 meses e meio, período idêntico ao do ano de 2008. Consideradas ainda as estatísticas de 2009, é possível verificar que 28.059 ações deram entrada para julgamento nas Cortes Administrativas de Apelação, tendo havido o julgamento efetivo de 28.202. O estoque de ações aguardando julgamento em segunda instância foi de 28.814. O tempo médio de tramitação de uma ação administrativa em segunda instância foi de 13,2 meses em 2009, contra 12,7 meses em 2008. Por fim, 9.744 ações foram levadas à análise do Conselho de Estado, que julgou 9.986 ações, mantidas em

estoque 7.916. Foi de 11 meses o tempo médio de espera para julgamento na instância final em 2009, período mais curto que os 13 meses necessários em 2008 (MINISTÈRE DE LA JUSTICE ET DES LIBERTÉS, 2010, p. 32). O gráfico abaixo ilustra com clareza o ritmo de funcionamento da Justiça administrativa:

Fluxo de ações na jurisdição administrativa francesa 2009 0 20.000 40.000 60.000 80.000 100.000 120.000 140.000 160.000 180.000 200.000

1ª instância Cortes administrativas de Apelação

Conselho de Estado

Nº de ações distribuídas Nº de ações julgadas Nº de ações em estoque

Gráfico 1. Fonte: tabela 4.

Os dados brutos fornecidos pelas estatísticas acima demonstram que a Justiça administrativa é eficiente em termos quantitativos, na medida em que cada uma de suas instâncias julgam processos em ritmo semelhante ao de recebimento. Se for somado o tempo em que um processo permanece em cada instância, torna-se possível concluir que, tomando-se o ano de 2009 como referência, um processo levaria 33,7 meses para ser completamente solucionado, ainda não incluída sua execução (aproximadamente 2 anos e 10 meses). Em 2008 a demora seria um pouco maior, 35,2 meses, algo em torno de 2 anos e 11 meses. O gráfico abaixo ilustra bem a situação:

Tempo médio de duração geral do processo na jurisdição administrativa francesa (em meses) 1,5 6,5 11,5 16,5 21,5 26,5 31,5 36,5 41,5 2008 2009

Gráfico 2. Fonte: tabela 4. Ministère de la Justice et des libertés. Les chiffres-clés de la Justice. 2010.

Deve-se ressaltar, entretanto, que as estatísticas em referência nada mencionam sobre o tempo de espera dos processos entre cada uma das instâncias e inexiste qualquer ressalva quanto à sua inclusão ou não nos dados fornecidos.

Embora a Justiça administrativa seja dotada de regras processuais próprias responsáveis, em certo grau, por conferir-lhe autonomia em relação à Justiça comum, fato é que os recursos para impugnação de suas decisões são essencialmente os mesmos constantes do Código de Processo Civil. São eles, em síntese, a apelação (classificada como via de reforma), o recurso de cassação (classificado como via de anulação), a oposição e a oposição de terceiros (considerados vias de retratação).

A apelação é o mais geral dos recursos, afeto exclusivamente às partes, sendo cabível contra toda decisão jurisdicional proferida pelos Tribunais

Administrativos em primeira instância. É o que se infere do artigo R. 811-1 do Código de Justiça Administrativa.25 É dirigida, como regra, às Cortes Administrativas de Apelação. Há, porém, longa lista de litígios, enumerados no artigo 222-13 do Código de Justiça Administrativa, não passíveis de apelação. Assim, para adequar-se aos tratados internacionais que estabelecem o duplo grau de jurisdição como direito fundamental, tais decisões serão suscetíveis de impugnação direta perante o Conselho de Estado por meio do recurso de cassação.26 Se houver grave risco de a decisão recorrida causar prejuízo ao interesse público ou a uma das partes, o Presidente da Corte Administrativa de Apelação poderá atribuir-lhe efeito suspensivo (artigo R 533-2). Conclui-se, assim, que a apelação substitui o que seria o agravo de instrumento no Brasil, já que pode ser manejada contra qualquer tipo de ato decisório (exceto nos casos em que o descabimento do recurso estiver expressamente previsto), inclusive com a possibilidade de sua suspensão.

A irrecorribilidade por apelação contra determinadas decisões, por sua vez, permite a agilização da Justiça administrativa. A satisfação do jurisdicionado, em tais casos, é de certa forma prejudicada, na medida em que seu inconformismo é contido pela quase impossibilidade de interpor recurso efetivo diante de uma parte que se encontra, por definição, em situação de vantagem: o Estado. Gaudemet, nesse sentido, já pontuou que se a Administração é um jurisdicionado dos tribunais, ela é um jurisdicionado específico, beneficiário de certas prerrogativas , p. , em tradução

25 Art. R. 811-1 CJA: Toute partie présente dans une instance devant le tribunal administrative ou qui y a été régulièrement appelée, alors même qu elle n aurait produit aucune défense, peut interjeter appel contre toute décision juridictionnelle redue dans cette instance (...). Artigo R 811-1 do Código de Justiça Administrativa: Todas as partes presentes em litígio perante o tribunal administrativo ou que tenha sido regularmente convocada, ainda que não tenha produzido defesa, pode interpor apelação contra toda decisão jurisdicional prolatada naquela instância (...). (tradução nossa).

26 Fenômeno semelhante acontece nos Juizados Especiais brasileiros, cujas sentenças, insuscetíveis de apelação, podem ser objeto direto de Recurso Extraordinário perante o Supremo Tribunal Federal.

nossa).O prazo para a interposição do recurso é de dois meses e também é cabível o recurso adesivo em apelação.

A oposição é um recurso do réu, dirigido ao próprio juízo prolator da decisão, sendo cabível apenas perante as Cortes Administrativas de Apelação ou perante o Conselho de Estado. Trata-se de recurso bastante rigoroso, somente cabível quando a decisão é prolatada sem sua citação. Rouault, nesse sentido, observa que as oposições são raras, quase nunca são recebidas e com ainda menor frequência implicam a alteração do mérito da sentença 27 (2010, p. 246, em tradução nossa). O prazo para que seja manejada é de dois meses.

A oposição de terceiros também é dirigida ao próprio juízo prolator da decisão, quando o terceiro sofre as consequências da sentença sem que tenha sido chamado a integrar a lide. O recurso por ele interposto, se procedente, possibilita ao juízo prolatar nova sentença, mediante anulação da anterior. Não há previsão expressa do referido recurso, que ainda assim é amplamente admitido por uma questão principiológica.28 O prazo para sua interposição é de dois meses, nos termos do artigo R832-2 do Código de Justiça Administrativa.

O recurso de cassação é aquele dirigido ao Conselho de Estado, tendo como objeto a anulação de sentença ou de decisão interlocutória. Sua análise cinge-se a questões de direito e deve ser interposto no prazo de dois meses. Dois outros recursos são cabíveis perante o Conselho de Estado, o recurso de revista e o recurso para retificação de erro material. O recurso de revista somente é cabível em algumas especializações da Justiça administrativa e deve ter por fundamento a existência de

27 No original Les oppositions sont rares, rarement jugées récevables et aboutissent encore plus rarement au

fond .

28 ROUAULT (2010,p. 246- esclarece que a oposição de terceiros é admitida, mesmo sem previsão, perante as instâncias administrativas. Trata-se mesmo de uma regra geral aplicável às jurisdições especiais. tradução nossa .

provas falsas ou a retenção, por uma das partes, de peça decisiva para a solução do caso. Também pode ser utilizada essa via para impugnação de vício na composição do Conselho de Estado ou outros vícios de forma relativos à decisão. Seu objetivo é fornecer elementos novos que permitam a anulação do julgamento anterior, com prolação de novo acórdão. O recurso de retificação de erro material, por fim, assemelha-se aos embargos de declaração, embora menos extenso, pois pode ter por objeto apenas a correção de erros materiais identificados na decisão.

Quanto ao recurso por excesso de poder, é imprescindível lembrar que, apesar do nome, não se trata de recurso propriamente dito, mas de ação anulatória. Trata-se de construção da jurisprudência do Conselho de Estado, cujo objeto é a anulação de decisões administrativas prolatadas em violação a uma regra de direito. É bastante restrito, uma vez que as decisões judiciais não são aceitas como objeto do recurso por excesso de poder, já que isso implicaria inaceitável intromissão da jurisdição administrativa na jurisdição judiciária. Também merece destaque a exceção de ilegalidade, que tem por objeto questionar a validade de ato administrativo normativo no bojo de processo administrativo judicial já em curso, conforme preleciona Rouault (2010, p. 142):

Mesmo definitivo, um ato administrativo normativo pode ser contestado através da exceção de ilegalidade, quer ele seja ilegal ab

initio quer ele tenha se tornado ilegal em razão de uma mudança das

circunstâncias de direito ou de fato. A exceção de ilegalidade de um ato normativo é perpétua, ela pode ser arguida perante o juízo a qualquer momento com o apoio de um recurso formado contra uma decisão tomada sob este fundamento (tradução nossa).29

Analisado o sistema recursal no âmbito da Justiça administrativa, em muito semelhante àquele previsto para a Justiça judiciária, a conclusão lógica que se

29 No original Même définitif, un acte administratif réglementaire peut être contesté par le biais de l exception

d illégalité, qu il soit illégal ab initio ou le soit devenu du fait d un changement dans les circonstances de droit ou de fait. L exception d illégalité d un règlement est perpétuelle, elle peut être soulevée devant le juge à tout moment à l appui d un recours formé contre une décision prise sur son fondement

apresenta é a de que sejam bastante semelhantes. Porém, não é exatamente o que ocorre. Se a Justiça judiciária encarna o sistema jurídico tipicamente francês, a jurisdição administrativa, que mantém a forma predominantemente escrita, por vezes se aproxima do sistema jurídico inglês, tamanha a importância dos precedentes do Conselho de Estado para o resultado dos julgamentos. Legeais chega mesmo a afirmar que o aumento gradual da importância da jurisprudência no ordenamento jurídico da França vem despertando a atenção do Direito Comparado, fato este que é predominante na jurisdição administrativa (2005, p. 35).

O papel do Conselho de Estado na construção do Direito Administrativo no país é evidenciado pelo fato de reunir no poder jurisdicional importante atribuição consultiva do governo e exarar pareceres sobre projetos de lei. Como resultado, emerge para o Conselho um terceiro poder, não institucionalizado, que faz de sua jurisprudência uma referência para o primeiro e segundo graus de jurisdição administrativa, decorrência natural da influência que exerce sobre a produção das próprias leis e decretos aplicáveis aos casos que serão submetidos a julgamento. Segundo Legeais (2005, p. 64):

O Conselho de Estado tem um papel relevante no direito francês. Não se deve subestimar seu papel no desenvolvimento dos textos (lei e decretos). Mas ele surge, principalmente, enquanto autoridade que criou o direito administrativo francês e que continua a regular sua evolução. Ele intervém no contencioso, seja para controlar a legalidade das decisões prolatadas pelas cortes administrativas de apelação e pelos tribunais administrativos seja para conhecer de certos recursos por excesso de poder (recurso contra um decreto ilegal, por exemplo). (Tradução nossa). 30

30 No original: Le Conseil d État joue um role majeur em droit français. Il ne faut pas sous-estimer son role

pour la mise au point des textes (lois et décrets). Mais il apparaît surtout comme l autorité qui a crée le droit administrative français et qui continue à en réguler l évolution. Il intervient au contentieux, soit pour le ccontrôle de légalité des décisions rendues par les cours administratives d appel ou les tribunaux administratifs, soit pour connaître de certains recours em excès de pouvoir (recours contre um décret illégal par exemple .

Constata-se, assim, que o sentido inverso ao verificado por Glenn (1993, p. 574) também vem se operando, e fato é que o droit civil vem recebendo influências fortes do common law que se manifestam, como não poderia deixar de ser, no processo.31 Nesse sentido, David promoveu o falseamento do argumento de que os países da família romano-germânica não reconheceriam na jurisprudência uma fonte do Direito, demonstrando a falta de diálogo entre o ensino universitário e a prática jurídica quando se trata do droit civil. Segundo David (2002, p. 148)

Este comportamento não é senão uma indicação do divórcio que existe, nestes países, entre a Escola e o Tribunal; de modo algum significa que as decisões judiciárias não sejam uma fonte de direito. Mais que às fórmulas dos autores e mais que à consideração das obras de doutrina, é necessário, para ter a visão justa da questão, atentar para outro fator que é a existência e o desenvolvimento das compilações ou repositórios de jurisprudência. Estas compilações ou repositórios não são escritos para uso dos historiadores do direito ou dos sociólogos, nem para o prazer de seus leitores.

Inexiste norma que determine a vinculação das instâncias inferiores aos precedentes do Conselho de Estado. Ainda assim, o poder de suas manifestações judiciais, que é meramente persuasivo, é muito mais forte que o produzido pela Corte de Cassação na jurisdição judiciária. Como decorrência, a jurisdição administrativa estrutura-se em torno dos precedentes do Conselho, que em contrapartida apara o Direito Administrativo e fornece elementos criativos para a sua interpretação.