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Acesso ao processo justo: o devido processo legal no common law e no droit civil

2. ACESSO À JUSTIÇA: DELIMITAÇÃO DO TEMA

2.3 Contribuições teóricas

2.3.2 Acesso ao processo justo: o devido processo legal no common law e no droit civil

O problema com que Comoglio se deparou foi o da necessidade de definir pormenorizadamente os direitos inerentes a um processo justo no bojo das Constituições para que a garantia pudesse ser efetiva e aplicável. Essa questão foi posta a partir da consideração da reserva legal encontrada no texto da Constituição italiana, o qual define a jurisdição como o justo processo regulado em lei, e que problematiza, por conseguinte, a aplicabilidade da norma constitucional. Na busca de uma resposta, ele confere tratamento histórico ao acesso à justiça, assimilando-o à expressão devido processo legal , o que o leva a transferir para o common law o âmago de sua origem.

Assevera que várias expressões são utilizadas para refletir o direito ao processo justo, tanto no common law quanto no droit civil, por vezes chamado de devido processo legal, de justiça procedimental, de legalidade processual, de julgamento justo, de processo equitativo, de acesso à justiça. Ressalta Comoglio, porém, que o relevante é compreender que, expressões sinônimas ou não, há um núcleo comum que as integra, ponto em que assume especial relevância o artigo 6º, parágrafo 1º da Convenção Europeia, na medida em que é o resultado da uniformização das concepções europeias sobre o mínimo que compõe o devido processo legal. Assim, apesar de o dispositivo convencional não apresentar grande grau de detalhamento, aborda os elementos indispensáveis do direito ao processo justo, pontos por vezes omitidos pelas próprias Constituições dos Estados signatários, como esclarece Comoglio (2002, p. 713):

Em cada caso, houve um acordo na confirmação de como a noção de processo justo , já consagrada na convenção internacional de direitos do homem (refiro-me ao artigo 6º da Convenção Europeia de 190 e ao artigo 14 do pacto internacional sobre direitos civis e políticos de 1966) reuniria os princípios e as garantias sobre o processo e no processo.15 (tradução nossa)

Uma regressão histórica o leva a constatar que o devido processo legal sempre teve uma textura aberta, sofrendo uma série de ajustes e adaptações ao longo dos séculos no contexto da common law. Garantia, aliás, na qual não se inclui a necessidade de fixação prévia do juízo competente (juízo natural) ou de prévia determinação legal sobre os procedimentos a serem adotados bastando, nesse sentido, sua estruturação com base nos costumes e na tradição. Confirma, no entanto, haver um núcleo duro na expressão (COMOGLIO, 2002, p. 718):

15 No original In ogni caso, si era d accordo nel ribadire come la nozione di giusto processo compendiasse

principi e garanzie sul (o nel) processo, già consacrate nelle convenzioni internazionali sui diritti umani (mi riferisco all art. della Convenzione europea del e all art del Patto internazionale sui diritti civili e politici del 1966) .

Segundo a tradição cultural anglo-saxã, o caráter fair, justo (do qual deriva a noção de fairness, equidade) é um predicado adjetivo essencial, de natureza modal (ou procedimental), que é próprio do juízo regulado por lei (ou seja, lawfull, legal, conforme a lex terrae), impondo, assim, valor estrutural absoluto e constante no tempo, atinente à justiça das formas e dos comportamentos (ou, se preferir, à justiça em sentido procedimental) por meio da qual atua, em termos necessariamente relativos e historicamente variáveis, a justiça em sentido substancial (tradução nossa).16

Dentre nós, foi Calmon de Passos (1981, p. 83 e ss) que bem explicitou o caráter evolutivo do devido processo legal, primeiramente inscrito no artigo 39 da Magna Carta inglesa, assumindo o sentido de garantia de legalidade. Seguiu-se uma segunda fase, na qual aparece no Bill of Rights como garantia dos direitos fundamentais contra o arbítrio do legislador. Seu sentido processual somente foi consagrado no julgamento do caso Murray, nos Estados Unidos, quando foi definido como garantia de não desrespeito a outras garantias processuais da Constituição e de não contraste com os antigos costumes e formas processuais do common law. No julgamento do caso Hurtado, o devido processo legal passou a admitir que normas processuais inovadoras fossem aplicadas. Somente em uma fase mais recente é que a Suprema Corte norte-americana o batizará como garantia positiva a um processo justo.

No contexto do droit civil, por sua vez, a definição do conteúdo do devido processo legal foi assumida pela escola do jusnaturalismo processual, que se encarregou de estabelecer seu sentido técnico, estrutural e ideológico a partir dos anos 1960, igualmente fundado na legalidade e correção das formas, pouco se

16 No original Secondo le tradizioni culturali anglosassoni, il carattere fair (da cui deriva la nozione di

fairness) è un essenziale predicato qualificativo, di natura modale (o procedurale), che è proprio del giudizio regolato per legge (cioè, lawful, legale, conforme alla lex terrae), così imponendosi quale valore strutturale assoluto e costante nel tempo, attinente alla giustizia delle forme e dei comportamenti (o, se si preferisce, alla giustizia in senso procedurale) con cui si attua, sia pur in termini necessariamente relativi e storicamente variabili, la giustizia in senso sostanziale.

diferenciando do common law. Como valores primários do processo modelo, destacou-se a simplicidade, clareza e celeridade. É Comoglio (2002, p. 714-715) quem esclarece, nesse sentido, que:

Os múltiplos valores, de ordem ideológica e técnica, sobre os quais se funda a justiça processual ou equidade no processo – assim como são progressivamente emersos da evolução histórica dos ordenamentos anglo-americanos de common law – foram fechados em nível constitucional e internacional, a partir da metade do século XX. Essa é, certamente, a matriz ético-cultural do processo justo ou, caso prefira, do processo equitativo e justo , que na acepção mais moderna, desenvolveu-se – na Itália, sobretudo a partir dos anos 60 – por obra daquela importante corrente cultural que, baseada no refinamento das investigações comparadas, deu vida ao chamado

jusnaturalismo processual .17 (tradução nossa)

O posicionamento adotado por Comoglio, assim, é o de que a determinação do alcance do devido processo legal, enquanto direito humano, prescinde de um detalhamento constitucional. Reconhece, no entanto, que as peculiaridades do droit civil, fundado no direito escrito, demandam, no plano infraconstitucional, o estabelecimento de diretrizes mínimas relativas aos componentes essenciais do processo justo. Aduz, nesse sentido, que a reserva legal, caracterizada pela produção de normas processuais necessariamente por meio de lei, deve ter como objetivo reforçar o caráter justo do processo, enfatizados seus principais elementos. O processualista alerta, no entanto, que o processo somente pode ser considerado justo se a lei observar o núcleo comum que compõe, necessariamente, o devido processo legal. Considera, por isso, que devem ser resguardados o contraditório, a simétrica paridade, a independência e

17 No original I molteplici valori, di ordine ideologico e técnico, sui quali si basa la giustizia procedurale o

l equità nel proceso – cosi come sono progressivamente emersi dall evoluzione storica degli ordinamenti angloamericani di common law – si sono affermati a livello costituzionale ed internazionale, verso la meta del secolo XX. Essi sono certamente la matrice ético-culturale del giusto processo o, se si vuole, del processo équo e giusto , nell accezione più moderna, sviluppatasi – in Itália, soprattutto dagli anni 60 – per opera di quella importante corrente culturale che, sulla base di raffinate indagini comparatistiche,m há dato vita al c.d.

imparcialidade do órgão julgador e a razoável duração do processo, todos eles tutelados pelo Tribunal Europeu quando da apreciação da violação ao artigo 6º, parágrafo 1º da Convenção Europeia, o que poderá ser verificado nos julgamentos envolvendo o Reino Unido e a França.

3. O SISTEMA JURISDICIONAL FRANCÊS

A necessidade de um estudo preliminar do acesso à justiça no direito interno da França e do Reino Unido justifica-se por duas razões. A primeira delas reside no cerne da comparação que se pretende realizar entre common law e droit civil, centrado na verificação da existência (ou não) de movimento convergente de problemas de acesso à justiça o que, por certo, pressupõe o conhecimento do sistema processual civil do país. A segunda razão encontra-se em uma das condições de admissibilidade de reclamações junto ao Tribunal Europeu, estabelecida pelo artigo 35 da Convenção Europeia, consistente na exigência de prévio esgotamento das vias internas de recurso:

Artigo 35º - Condições de admissibilidade

1. O tribunal só pode ser solicitado a conhecer de um assunto depois de esgotadas todas as vias de recurso internas, em conformidade com os princípio de direito internacional geralmente reconhecidos e num prazo de seis meses a contar da data da decisão interna definitiva. Evidencia-se, portanto, que para a compreensão adequada dos julgamentos proferidos pela jurisdição europeia, faz-se necessária uma introdução relativamente aprofundada concernente à realidade jurisdicional de cada um dos dois países. É que a verificação do prévio esgotamento dos graus internos de recurso é fator que compõe os julgados que serão estudados. De se ressaltar, ainda, que a percepção comparativa será tanto mais fidedigna quanto mais se aproximar das duas visões que serão dadas de cada um dos Estados estudados: a interna e a internacional. Passamos, portanto, a uma breve retrospectiva histórica do sistema jurisdicional francês.