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2. ACESSO À JUSTIÇA: DELIMITAÇÃO DO TEMA

3.3 A jurisdição judiciária

3.3.3 A oralidade no Processo Civil francês

Se o uso dos precedentes foi tão bem recebido no bojo da jurisdição administrativa, o mesmo não se pode afirmar quanto às tentativas de agilização da jurisdição judiciária por meio do recurso à oralidade. Embora ambas sejam fortes referências no direito inglês, a melhor adaptação dos precedentes, quando comparada à oralidade, no sistema jurídico francês pode ser explicada por seu

excessivo formalismo. Ao contrário dos precedentes, o processo oral implica uma quebra relevante do protocolo do Poder Judiciário francês.

A oralidade predomina em causas de direito de família, em matéria eleitoral e em caso de vítimas de violência. Também encontra lugar em causas previdenciárias, em matéria trabalhista e nos Tribunais do Comércio, o que se justifica pela regra da dispensa de representação por advogado nesse tipo de conflito. Em se tratando de tutela de menores, até mesmo a interposição do recurso de apelação é oral. Assim mesmo, não se pode afirmar que essa seja uma característica do Processo Civil francês. A resistência à prática tem levado à constante substituição dos atos orais pela apresentação de memoriais escritos.

Com efeito, há alguns poucos momentos processuais em que o Código de Processo Civil abre a possibilidade para arguições orais, e ainda assim de forma facultativa. É o caso, por exemplo, do artigo 792, que faculta a substituição das razões finais escritas por simples conclusões orais, ou do artigo 843, que permite que em causas de valor não superior a quatro mil euros a petição inicial seja substituída por declaração reduzida a termo pelo escrivão. Há, ainda, momentos procedimentais em que o Código impõe a oralidade, como no artigo 853, nas disposições específicas para o tribunal do comércio, determinante de que as partes realizem sua própria defesa, de modo que o advogado somente pode assumi-la se atuar na condição de preposto da empresa. O artigo 441 é especialmente interessante dentro de um Código pouco afeito à flexibilização do formalismo. Seu teor merece transcrição:

Artigo 441

Mesmo nos casos em que a representação por advogado é obrigatória, as partes, assistidas por seu representante, podem apresentar elas próprias observações orais.

A jurisdição tem a faculdade de retirar-lhes a palavra se a paixão ou inexperiência as impedir de discutir a causa com a decência de praxe ou a clareza necessária (tradução nossa).

Como se vê, o Processo Civil francês parece estabelecer um movimento de avanço e de retrocesso no uso da oralidade. O artigo 441 é revelador de tal dinâmica.

Se o uso do mecanismo é introduzido para agilizar o curso do processo, em razão do próprio formalismo, tão caro à processualística francesa, seu uso será desmerecido. As partes até podem aduzir pessoalmente seus argumentos, mas desde que se comportem dentro das expectativas da cultura forense. De modo absolutamente formal, devem exprimir suas razões sobre o conflito instaurado sem deixar transparecer a carga emocional ali envolvida. E devem ser claras, como se advogados fossem, capazes de traduzir a causa para o juízo com a precisão de uma petição escrita,u terão a palavra cassada. O desestímulo à prática é, assim, evidenciado.

Um dos motivos determinantes para a inserção da oralidade no processo era a irrecorribilidade das decisões nas causas de baixo valor e de menor complexidade, com curso nos Tribunais de Instância. É que as partes tendem a aceitar melhor uma decisão quando são ouvidas, o que de certo modo substituía a ausência de recurso. Atualmente, é possível a interposição do recurso de cassação nesses casos, a ser apreciado pela Corte de Cassação, vez que a irrecorribilidade foi considerada afrontante do direito fundamental de acesso ao duplo grau de jurisdição.46 O desaparecimento dos motivos ensejadores da oralidade contribui para que entre o instituto em desuso, o que é quase sempre autorizado por dispositivos legais que apenas facultam sua utilização.

Ademais, nas especializações da Justiça Comum, parece estar em curso movimento de valorização do recurso à oralidade: o procedimento com dia certo, previsto nos artigos 788 a 792 do Código de Processo Civil especificamente para os processos em curso nos Tribunais de Grande Instância, bem como para o recurso de apelação oriundo de suas decisões. Em tais causas, a representação por advogado é obrigatória. Tem lugar em casos de urgência justificada ou quando a causa está

46 O entendimento do Tribunal Europeu é de que a Convenção Europeia não inclui o duplo grau de jurisdição como elemento do direito ao processo justo.

madura para julgamento, quando o presidente do Tribunal de Grande Instância ou da Corte de Apelação ficam autorizados a designar audiência de imediato ou em data próxima para, após oitiva das razões dos advogados, remeter os autos para conclusão, para pronto julgamento.

A oralidade, aqui, é prerrogativa do advogado, e não das partes. Contudo, diante da autorização velada em alguns artigos do Código de Processo Civil, o procedimento com dia certo passou a ser adotado em causas para as quais o patrocínio de advogado é dispensado,presente a urgência. A oralidade, assim, voltou-se para as partes. Nesse sentido, Croze e Laporte esclarecem (2006, p. 41):

Existe, felizmente, uma passarela entre as tutelas de urgência e o juízo de mérito. Se há urgência, o presidente do tribunal de grande instância, ou o juiz de instância, ou o presidente do tribunal de comércio e ainda o presidente do tribunal paritário rural, provocados para apreciar um pedido de liminar, podem remeter o caso para julgamento de mérito em uma data fixa por ele agendada (artigo 811 do Novo Código de Processo Civil para o tribunal de grande instância, artigo 849-1 para o tribunal de instância, artigo 873-1 para o tribunal do comércio e artigo 896 para o tribunal paritário rural); é uma maneira de resgatar o procedimento com dia certo, que é um procedimento célere que encontra curso perante o tribunal de grande instância (tradução nossa). 47

Quando os autores falam em resgate do procedimento com dia certo, referem-se, em verdade, ao fato de não ter encontrado efetividade na própria jurisdição para a qual foi criado. Com efeito, a doutrina reconhece o caráter excepcional do procedimento, fundado sobre a ideia de concentração dos atos processuais. Além disso, a oralidade começa a ceder lugar aos memoriais, a que não

47 No original Il existe heuresement une passerelle entre la jurisdiction des référés et le juge du fond. S il y a

urgence, le president du tribunal de grande instance, ou le juge d instance, ou le président du tribunal de commerce, et encore le président du tribunal paritaire des baux ruraux, saisi en référé, peut renvoyer l affaire à une data qu il fixe pour qu il soit statué sur le fond NCPC, art. pour le TGI, art. -1 pour le TI, art. 873-1 pour le TC et art. 896 pour le tribunal paritaire des baux ruraux c est une manière de rejoindre la

se opõem os Tribunais de Grande Instância e as Cortes de Apelação. Dessas observações é possível extrair que o processo oral, por meio do procedimento com dia certo, prevalece quando o advogado é dispensável, ou seja, quando não sobra aos juízes outra opção senão ouvir as partes, como acontece nos Tribunais de Instância, Rural e de Comércio. Não sem razão, o procedimento com dia certo tem se fragilizado, justamente, na instância em que a presença do advogado é obrigatória.

Dentre os argumentos comumente levantados contra a oralidade, destaca- se a fragilização do contraditório, já que o embate não se estabeleceria de forma organizada e equitativa. Outro argumento reside nas dificuldades de registro trazidas pelo uso da oralidade, impedindo a verificação posterior fidedigna do ocorrido em audiência. A cultura jurídica estabelecida na relação entre advogado e cliente parece determinar as reservas com que o mecanismo é tratado. O procedimento oral é visualizado, no meio forense, como modo de fragilização da relação de intermediação, ao que retira dos advogados a prerrogativa de justificar suas diligências ao cliente, de comunicar-lhe a apresentação das alegações finais perante o tribunal, enfim, de justificar o custo de seu trabalho. O formalismo processual, na França, está intimamente ligado à alienação das partes envolvidas na produção da justiça.