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2. ACESSO À JUSTIÇA: DELIMITAÇÃO DO TEMA

2.3 Contribuições teóricas

2.3.1 O acesso à ordem jurídica justa

À concepção de acesso à justiça esposada por Watanabe já em 1998 liga-se intimamente a noção de consubstancialidade, embora esta seja menos ampla. Na raiz de seus estudos encontra-se a ideia de que o acesso à justiça não se pode resumir ao acesso seco aos órgãos jurisdicionais. Deve, antes de tudo, ser conectado com o contexto social, econômico e político do país, vinculado aos anseios dos destinatários do direito e, portanto, que reflita o projeto encetado na Constituição. É assim que o processo se revela como mecanismo importante de participação popular, o que evidencia, como pontuado por Pinho (2002, p.3), sua estreita relação com a viabilidade política do Estado Democrático de Direito .

A jurisprudência europeia, nos julgamentos relativos ao artigo 6º, parágrafo 1º da Convenção Europeia, não aborda a questão do acesso à justiça sob o

ângulo dos evidentes fins democráticos do acesso. Segue, assim, uma linha técnica de fundamentação muito ligada à subsunção das violações a direitos humanos ao texto expresso. Assim mesmo, essa relação existe e é evidente pois, como se sabe, a abertura do tratado de adesão à Convenção Europeia foi restringida aos Estados europeus democráticos. E é norteado por essa relação com a democracia que, para Watanabe, acesso à justiça é sinônimo de acesso à ordem jurídica justa.

É provável que a noção por ele trazida seja mais ampla que a de consubstancialidade somente por uma questão de contexto. O Tribunal Europeu, no exercício da jurisdição em matéria do acesso à jurisdição, dentro das limitações do próprio artigo 6º, parágrafo 1º da Convenção Europeia, não precisou lidar com a questão do acesso, no direito interno, a formas alternativas de resolução de conflitos13, que se incluem na perspectiva de Watanabe como uma vertente não jurisdicional da ordem jurídica justa. Ao propugnar o desenvolvimento de mecanismos não tradicionais e informais de resolução de conflitos, paralelos ao Poder Judiciário, fornecidos pela comunidade ou pelo próprio Estado, o jurista apresenta uma preocupação, também, com as outras faces da efetivação do direito que não o processo.

Além disso, propõe o desenvolvimento de outros aspectos aptos a assegurar o acesso à ordem jurídica justa, como o fornecimento de informações jurídicas à população e a realização de pesquisas que permitam traçar as estratégias de adequação entre a ordem jurídica e a realidade. Sustenta, assim, seguindo a linha

13 Ressalte-se, porém, que a conciliação integra a realidade do Tribunal Europeu, na medida em que é encarregado de propô-la às partes a qualquer momento. No entanto, a garantia de acesso à justiça insculpida no artigo 6º, parágrafo 1º da Convenção Europeia não inclui o acesso aos meios alternativos de resolução de conflitos, de modo que sua disponibilização, pelos Estados signatários, no âmbito de seu direito interno, não é uma questão que chega a ser levada à apreciação da Corte.

de Cappelletti14, a necessidade de uma reforma estrutural, como meio mais eficiente de distribuição de justiça. A respeito do estado de crise da justiça, motivado pela deficiente integração entre prática forense e realidade, Watanabi assevera o seguinte (1988, p. 132):

Esse estado de coisas tem gerado algumas consequências importantes, como a) incremento assustador de conflitos de interesses, muitos dos quais de configuração coletiva pela afetação, a um só tempo, da esfera de interesses de um grande número de pessoas, b) impossibilidade de conhecimento da existência de um direito, mormente por parte da camada mais humilde da população e c) impossibilidade de avaliação crítica do sistema jurídico do País, somente factível através de pesquisa permanente feita por especialistas de várias áreas e orientados à aferição da adequação entre a ordem jurídica e a realidade socioeconômica a que se destina. Todos esses aspectos e outros mais, como o concernente à correta preordenação dos instrumentos processuais, devem ser corretamente enfrentados para que o ideal de acesso à Justiça, com a abrangência acima mencionada, possa ser plenamente atingido.

Para que haja acesso à ordem jurídica justa no processo judicial, é necessária uma tríade de integração, em que o ordenamento jurídico extraia direitos substanciais comprometidos com a realidade de seus destinatários; em que sejam concatenados os mecanismos processuais com os princípios consagrados por essa ordem jurídica comprometida; e em que esses mesmos mecanismos processuais sejam diretamente valorados pelos atores e órgãos da justiça a partir da realidade dos jurisdicionados. Em sua conclusão, Watanabe conceitua o acesso à justiça e traça os elementos necessários à integração (1988, p. 135):

a) o direito de acesso à Justiça é, fundamentalmente, direito de acesso à ordem jurídica justa;

b) são dados elementares desse direito: (1) o direito à informação e perfeito conhecimento do direito substancial e à organização de pesquisa permanente a cargo de especialistas e orientada à aferição

constante da adequação entre a ordem jurídica e a realidade socioeconômica do País; (2) direito de acesso à Justiça adequadamente organizada e formada por juízes inseridos na realidade social e comprometidos com o objetivo de realização da ordem jurídica justa; (3) direito à preordenação dos instrumentos processuais capazes de promover a efetiva tutela de direitos; (4) direito à remoção de todos os obstáculos que se anteponham ao acesso efetivo à Justiça com tais características.

Outro aspecto importante dessa integração, que gera efeitos diretos no âmbito da jurisdição, é precisamente a remoção dos obstáculos ao acesso efetivo à justiça. Nesse sentido, assume especial importância a assistência judiciária de qualidade, a presença de órgãos jurisdicionais próximos a comunidades carentes, o fornecimento de informações jurídicas que permitam a tomada de decisão sobre a judicialização do caso. Da integração, por sua vez, decorre a queda da barreira entre direito substancial e processual, não no sentido imanentista, mas no de interdependência, em que a afirmação do direito não se desvincula do meio que o faz valer, tal como na teoria da consubstanciação.