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A lógica da inclusão e a assunção da pluralidade

CAPÍTULO 2: Corpo em diáspora – Travessias da pesquisa

2.5 A lógica da inclusão e a assunção da pluralidade

O campo acadêmico das ciências humanas, como reflexo de um quadro social mais extenso, até bem pouco tempo se limitou a estudar as culturas negras na perspectiva do objeto e do folclore, abrindo pouco espaço para pensá-las enquanto agenciadoras e substrato fundador da brasilidade. Na área específica da dança não é diferente. Por mais recentes que sejam os cursos de graduação em dança no país, as universidades permanecem como feudos

79 Trata-se aqui das já referidas Isadora Duncan e Martha Graham.

80 A ideia de fresta, como espaços intervalar, fenda ou brecha, foi tomada a partir da proposta de Muniz Sodré, na obra A verdade Seduzida (1983) na qual o autor define as formas culturais criadas pelas populações negras e que se consolidaram como fundantes na realidade social brasileira. Sodré aponta para o valor dos jogos duplos criados por essas populações como estratégias de negociação social, impondo esse jogo de ambiguidades como estratégia frente ao sistema escravocrata. Em nosso trabalho, essa “atuação nas frestas” é agregada em vários sentidos, desde a formação cidadã da pessoa que dança, compreendendo os interstícios que pautam a presença negra no Brasil, até uma percepção prática e concreta do que pode significar essa ocupação esgueirada num espaço específico, rompendo limites, ocupando os espaços imprevistos tanto na concretude de uma sala de aula, quanto nas tramas da vida social. Concebemos também a ideia de fresta como uma fuga do retilineo.

etnocêntricos onde o “não ocidental” tende a ser lido enquanto artesanal e folclórico81. Há que

se problematizar tais perspectivas não só a partir de reivindicações militantes, mas também a partir de uma necessária reinvenção e leitura crítica de seus componentes curriculares em um diálogo coerente com nosso tempo, proporcionando métodos, procedimentos e estéticas que reflitam a realidade cultural dos estudantes e afirmem suas experiências.

As produções afro-orientadas, de maneira geral, não aparecem nas curadorias, balanços históricos, referendos sobre pedagogias ou críticas de dança. Sendo o campo profundamente habitado há décadas por artistas, pedagogos e intelectuais, não há coerência nessa invisibilidade. Reconhecemos que uma abordagem crítica sobre o assunto é bastante recente, sobretudo quando consideramos que o próprio campo da dança enquanto tradição acadêmica é relativamente recente82 se comparado com o surgimento de cursos das áreas de ciências humanas, por exemplo. Os agentes dos estudos do corpo focados na afro-orientação, entretanto, propõem aportes teóricos sobre ancestralidade, diáspora e temas correlatos, teorias e práticas que se colocam afirmativamente questionando seus entornos. A grande questão que se impõe é que dada a segregação do ensino superior, proporcionalmente ainda são poucos os sujeitos de produção de conhecimento comprometidos com abordagens críticas voltadas para afro-orientação, prevalecendo as técnicas historicamente privilegiadas.

Vale reconhecer, entretanto, que nos trinta cursos de graduação em dança no Brasil, percebe-se que a Universidade tem produzido mais porosidade em seus universos de formação e produção de sentido. Suas lacunas teórico-práticas têm sido vagarosamente, talvez mais devagar do que necessitamos, renovadas por aspectos metodológicos, criativos, transdisciplinares que avançam para a renovação83.

O que constatamos nas estruturas pedagógicas estabelecidas pelos centros legitimados de poder é um pensamento que se quer inclusivo em relação às epistemologias afro-orientadas e não necessariamente transformador. Trata-se de adicionar programas especiais dentro de

81 A inserção das técnicas e poéticas oriundas de contextos asiáticos, os quais evitamos chamar de “orientais”, tendo em vista a discussão sobre “orientalismo” discutida por Said (1990), está presente em alguns departamentos de cursos de graduação e parecem fugir a essa lógica do artesanal e folclórico. Não caberia em nossa análise um aprofundamento desse tema, mas, apesar das danças de origem asiática também ocuparem lugares restritos e exotizados, o não ocidental africano é percebido de maneira distinta e desqualificado em maior escala. Para uma breve discussão sobre as disciplinas voltadas para as artes corporais orientais, ver Andraus (2012).

82 O primeiro curso de licenciatura em dança surge em 1956 na Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia. O departamento de Artes da Unicamp cria o curso de dança em 1985.

83 Prova desse avanço tardio, porém relevante, é a criação em 2016 da área de conhecimento “Estudos do corpo com ênfase em danças populares, indígenas e afro-brasileiras” no departamento de dança da Universidade Federal da Bahia.

estruturas pautadas pelas lógicas de produção de conhecimento eurocêntrico com pretensões universais. Os programas dos departamentos de dança, por exemplo, quando colocam as linguagens afro-orientadas em cursos de extensão ou no máximo como disciplinas optativas, legando-as às periferias das propostas ou como mero apêndices, incorrem exatamente nessa perspectiva. A mudança estrutural acontecerá quando o conjunto dos currículos for pensado para essa pluralidade, quando educadores especializados nas estéticas e poéticas afro- orientadas adentrarem essas instituições e quando um corpo discente questionador demandar movimentos para essas mudanças. Percebemos que há fios sendo tecidos nesse sentido para reconhecimento das estéticas e poéticas afro-orientadas enquanto fator dinâmico da cultura brasileira e reconhecemos que a desconsideração dessas realidades impede que elaboremos categorias e perspectivas mais amplas que sejam alternativas às visões europeias e que nos permitam investigar nossa própria realidade corporal, percebendo desde dentro. Ao discutir a necessidade de encontrarmos entendimentos a partir de “cosmovisões negras”, Wilson Barbosa (1994, p. 32) usa a ideia da ginga como metáfora para essa habitação segura do próprio corpo: “A ginga não é superior, é apenas a porta da minha casa, e eu desejo – veja-se a alegoria – adentrar a minha casa, como você adentra a sua”. Acreditamos ser necessário que o Brasil reconheça de maneira ampla e arejada sua casa densa de africanidades e acomode as propostas afro-orientadas em diálogos horizontais com as disciplinas estabelecidas e legitimadas. Trata-se de propor uma nova configuração do saber. Esses caminhos de transformação das estruturas de produção de conhecimento serão impulsionados por perspectivas pedagógicas capazes de abarcarem a diversidade e a relação, estabelecendo disciplinas fundadas em experiências, cosmovisões das ditas culturas outras, de maneira simétrica, horizontal ou em intersecção. Isso implica em perceber e incorporar de fato as culturas ditas outras sem que sejam agregadas em noções como “espaços específicos” dentro das estruturas hegemônicas, como dito um modelo bastante difundido nas propostas acadêmicas ou nas políticas públicas para a cultura, o que transparece uma compreensão equivocada e incompleta sobre o que possa ser a experiência da diversidade na diferença.

A ausência das referências não hegemônicas limita o campo de exploração do estudante brasileiro e afeta, de maneira distinta, estudantes negros e não negros. Em um país onde mais da metade da população é composta por afro-brasileiros, as propostas desenvolvidas em sala de aula não contemplam tal diversidade, o que se torna complexo quando tentamos abordar o corpo brasileiro a partir de sua profunda intersecção com tais culturas corporais. Isso é deveras sério porque contraditoriamente, a ideia da corporalidade negra sempre foi propalada no imaginário nacional – o brasileiro tem um swing, tem um

tempero especial – mas preponderantemente absorvida no nível da otherness, conforme vimos no capítulo anterior. Essa percepção sempre veio à reboque da habilidade inata e não da cultural e tecnicamente apreendida. Estudantes aprendem essas corporeidades a partir de dimensões folclorizadas, de maneira superficial em abordagens que reforçam sobremaneira a ludicidade e o ritual84, sem adentrar em camadas mais densas das técnicas e estéticas.

Frequentemente aborda-se estética negra na perspectiva do hereditário, segundo a qual muitas vezes acredita-se que estudantes negros devam se identificar com suas “raízes”. De que raízes estamos falando? Se de fato a ideia de raiz for uma apreensão profunda de fundamentos que nos constituem e que nos colocam em movimento, daí sim teríamos um caminho possível para todos, independentemente de seu pertencimento racial. Carecemos de perspectivas críticas nas abordagens pedagógicas dos perfis curriculares elaborados no Brasil para a formação de pessoas que percebam as amplitudes dos saberes oriundos da diáspora africana e sejam capazes de se entender desde dentro, contrapondo o corpo objeto ao corpo vivido.

Não podemos entender o Brasil sem antes compreender a presença africanizada aqui estabelecida. Acreditamos que esse pensamento crítico deve tocar em epistemologias, bem como em uma formação sobre relações raciais que afete discentes e docentes trazendo à luz as lógicas sistêmicas de hierarquia das diferenças. No processo desta pesquisa construímos um corpo de conhecimento que confronta a longa história de pesquisa em dança num país que em raros momentos creditou valor e reconhecimento a artistas negros e suas elaborações dentro de uma dita história da dança brasileira. Trata-se, portanto de questionar a ordem de prioridades estabelecida e definida pelo sistema de produção de conhecimento legitimado. Esta empreitada, ao contrário do que pode parecer, não é uma reivindicação militante85 – como algo restrito a determinado grupo social – e se o for, compreenderemos militância como comprometimento e responsabilidade intelectual.

Discutimos, portanto, as relações entre pedagogia de dança e os processos de descolonização concretizados em teoria, método e prática pedagógica no sentido de desequilibrar o modus operandi da produção de pensamento em dança no Brasil. Daí perguntamos: quais seriam nossas possibilidades de repensar os modelos europeus

84 Neste caso, não desmerecemos o fundamento do ritual enquanto agenciador potente de formas associativas e criativas.

85 Em um campo mais amplo de discussão sobre militância identitária, vale reforçar que longe de defendermos uma ideia de “lugar de fala”, que frequentemente mostra-se escorregadia quando reforça especificismos e determina regimes de poder essencializados, acreditamos ser importante refletir sobre os mecanismos que fazem com que alguns discursos tenaham credibilidades e outros sejam relegados ao puramente militante.

totalizadores, normatizadores e supostamente universais? Quais diálogos epistemológicos podemos fazer no sentido de abrir espaços para ideias, vozes e conceitos oriundos dos espaços apartados dos centros de poder? Responder a essas perguntas implica em considerar que a descolonização exige profundas transformações nas estruturas de saber e ser, ligadas às instituições, aos relacionamentos comunitários e ao próprio self.