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Dançar com a antropologia abordar a cultura pelo movimento

CAPÍTULO 2: Corpo em diáspora – Travessias da pesquisa

2.2 Dançar com a antropologia abordar a cultura pelo movimento

60 Reformas legislativas e institucionais foram promovidas desde os anos 1980, com especial afinco na América Latina, visando ao reconhecimento da alteridade dos povos de origem africana, tentando contemplar a diversidade sócio-cultural que constitui a experiência afrodescendente que ganha reconhecimento em instituições e organizações internacionais como a ONU, movimentos sociais, entre outros. Fruto próprio das dinâmicas de avaliação, o conceito tem sido criticado, apropriado e reinventado de acordo com as situações e demandas de cada local.

A escrita deste texto se movimenta entre as formas de perceber a pesquisa e produção de conhecimento na interface entre antropologia e dança, comprometida com perspectivas que situem o campo e anunciem um pensamento crítico sobre corpo, cultura e pedagogia ancorada na pesquisa etnográfica e na compreensão da dança como promotora e mediadora de modos de ser, significar e arranjar os atores sociais.

Sendo uma pesquisa focada na práxis, consideramos que a teoria não pode ser uma clausura, mas um fundamento que, aliado à prática, fortalece nossas reflexões. Esses entrecruzamentos teóricos de áreas que nem sempre costumam conviver, como a dança e a antropologia, se deu de maneira circular, em um processo de retroalimentação e diálogo com a roda do mundo.

Ao nos valermos da etnografia, atividade construtiva e criativa, tal qual propôs Bronislaw Malinowisky (1935)62, intelectual que popularizou esse gênero de investigação, e ao assumirmos a proposta da autoetnografia enquanto ferramenta metodológica, encaramos a dança como incorporação do conhecimento cultural, reconhecendo o provavelmente óbvio, mas sempre relevante caráter socialmente construído das relações.

Nosso horizonte autoetnográfico reforça a perspectiva de um corpo em relação com o mundo, ao considerar o campo como esfera vivida pela própria pesquisadora enquanto artista da dança e docente. Ressaltamos que o corpo da crítica não se separa da crítica que equaciona sua época e das condições de criação da dança de seu tempo. Assim, as perspectivas da etnografia e da autoetnografia são tomadas como recurso para a prática metodológica que envolve a construção de pedagogia e a pesquisa de contextos afro-orientados. O corpo da pesquisadora em relação com outros serve, portanto, para investigar e entender os universos em pesquisa.

A ideia de participação observante que ora assumimos, oriunda da perspectiva etnográfica, é uma ampliação da noção de observação participante, conceito chave na prática da pesquisa de campo antropológica em que a etnóloga examina a cultura em seu contexto tentando entendê-la na perspectiva “de dentro” – aprendendo as línguas, as danças, as músicas

62 Bronislaw Malinowsky, um dos fundadores da antropologia social, precursor da escola funcionalista e do desenvolvimento do método de investigação através da pesquisa de campo no texto “Coral gardens and their magic” (1935), sustenta o trabalho de campo como uma atividade construtiva ou criativa, já que fatos etnográficos “não existem”, sendo preciso, assim, um “método para a descoberta de fatos invisíveis por meio da inferência construtiva”. A observação participante, segundo Malinowsky, requereria a convivência do pesquisador com o grupo estudado levando a uma “dialética entre a experiência e a interpretação”.

da cultura local, por exemplo, bem como em uma perspectiva “de fora” – descrevendo, observando e analisando.

Essas duas perspectivas, longe de possibilitarem um entendimento total e ideal da cultura abordada, nos dão um grau de proximidade rico e frutífero para a compreensão dos elementos que propusemos investigar63.

Assumimos a multiplicidade de lugares que o corpo da pesquisadora habita quando presente em campo, já que a prática da dança traz em si relações físicas, cognitivas e emotivas que são incorporadas, fazendo da natureza da nossa etnografia algo diferente da etnografia clássica. Assim, não há neutralidade possível, pois a leitura do gesto observado implica na percepção da pesquisadora e sua relação com o contexto pesquisado.

Com a devida responsabilidade, sabemos que o campo oferece evidências, contradições e desafios, chamando para distintas clarificações e dúvidas, tal qual afirma Frosh (1999, p. 264. Tradução nossa):

(...) o pesquisador pode ser um iniciado e um outsider, amigo e estranho, pesquisador educado e novato desinformado, apreciador cultural e analfabeto cultural, convidado curioso e convidado inquisitor, persistente pessoa respeitada ou palhaço sem esperança. Viajar em uma variedade de perspectivas pode ser uma estratégia genuinamente valiosa (a um so tempo inquietante), permitindo que o pesquisador veja e compreenda múltiplos pontos de vista.

Nossa perspectiva de inversão da tradicional ideia de observação participativa para participação observante é fruto primeiramente do envolvimento transdisciplinar da pesquisadora com as distintas áreas de produção de conhecimento que norteiam esta tese, e segue também o caminho empreendido por pesquisadoras referência para este trabalho, como Yvonne Daniel (1995), que, lendo a dança como prática cultural, assume a participação observante como conduta para sua pesquisa sobre a rumba cubana, afirmando ser a prática da dança o motor para seu entendimento:

É dançando que se pode entender completamente a dança. Dançando tradições de dança cubana como participante observante, compartilhando comentários sobre a dança cubana e rumba cubana em particular e entrevistando bailarinas cubanas, que acumulei entendimentos básicos sobre a dança cubana. Desta forma, foram evocadas discussões e avaliações, não

63 O modelo de investigação antropológica desejoso de imparcialidade na relação pesquisadora/pesquisado, foi revisto e questionado por uma genealogia de autores, entre eles James Clifford que, na obra The predicament of Culture (1988), aborda criticamente os elementos contingentes da prática etnográfica.

só critérios de dança, mas simultaneamente sobre termos expressivos da vida cubana. Esses métodos, principais suportes de minhas descobertas investigativas verificadas, são resultado de uma abordagem antropológica mais tradicional como uma observadora participante. (Ibid., p. 13. Tradução nossa)

Daniel nos move a pensar que existe uma experiência compartilhada que agrega a experimentação, o encontro com uma realidade alheia e um atravessamento em nossa própria subjetividade, colocando-nos como parte do movimento das coisas.

Cabe ressaltar que nos valemos das ferramentas da antropologia, reconhecendo sua diversidade teórica, sem, entretanto, anunciar uma antropologia da dança – universo teórico metodológico relativamente recente no Brasil, que nasce em meados dos anos 1990 buscando entender a dança relacionada com seus contextos culturais ou abordando-a enquanto caminho para compreender as dinâmicas que estruturam as sociedades. Esse campo de produção de conhecimento, ainda pouco presente nas ciências sociais brasileiras, apesar de sua potente transversalidade, surge nos Estados Unidos nos anos 1980, tendo como antecessores antropólogos da escola culturalista como Franz Boas (1959-1942), Joann Kealiinohomou (1930-2015)64, bem como figuras como Judith Lynn-Hanna (1936 - ) e Adrienne Kaepler (1935 - ), referências nesse campo de pesquisa.65

Consideramos importante referir que a perspectiva etnográfica aqui adotada, em sua dimensão de interação e entendimento intersubjetivo, não se quer relacionada a ideias como objetos, objetividade e tampouco a presumida distância preconizada pela etnografia clássica e que ainda influencia pesquisas de campo contemporâneas. Nesta pesquisa não há uma testemunha passiva ou um objeto distante. Não há um Outro distante em tempo e espaço. Primamos pela possibilidade descritiva e interpretativa, sem a pretensão de anunciar superinterpretações que geram modelos de compreensão, mas atentamos sim para o caráter local das culturas.

64 Joan Kealiinohomoku funda, em 1981, o Cross cultural dance resources. Judith Lynn- Hanna e Adrienne Kaeppler são também representantes desse campo de pesquisa. Anteriores a elas, podemos citar Katherine Durham, Pearl Primes e Gertrude Kurath, que já pensavam a dança no campo da antropologia. Kurath, através da obra Panorama of dance ethnology, de 1960, tinha a proposta de apresentar a abordagem etnográfica da dança como um braço da antropologia. Podemos citar também nomes como Radcliff-Brown (1973), B. Malinowisky (2005) e Evans Pritchard (2009), anteriores às citadas autoras, mas que abordaram a dança a partir da etnografia não com o objetivo de adentrar suas peculiaridades, mas sim, compreender os macrofenômenos nos quais a dança se inseria, situando as práticas de dança nos contextos, histórias e significados e entendendo-a nas encruzilhadas dos sistemas de valores.

65 Cabe referir que também floresceram nos anos 1980 e 1990 estudos no campo da chamada antropologia do corpo. Nesses estudos a noção de emboriment torna-se bastante popular. Autores como Eduardo Viveiros de Castro (1987) e Marylin Strathern (1988) são alguns exemplos.

Empreendemos diálogos e confrontos com teorias e genealogias teóricas que nos influenciam e questionam. Acionar o conhecimento antropológico nos parece importante naquilo que ele propõe ao construir ideias sobre a humanidade, sobretudo a ideia de uma humanidade comum constituída por diferenças e também por recorrer com certa frequência às práticas artísticas para discutir dimensões e escritas dos seres humanos. Embora reconheçamos igualmente que o campo epistemológico da antropologia propõe reflexões específicas a partir dos materiais que produz, pensamos ser possível imaginar cruzamentos.