• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3 – Corpo em diáspora: fundamentos para uma proposta metodológica

3.3 Interesses e procedimentos da prática pedagógica

3.3.3 O corpo em gravidade e os pulsos de vida

Desenhem sempre as asas nos pés: os membros inferiores lançam o voo. Que erro prender às costas essas grandes envergaduras! Na densa escuridão dos músculos inferiores, o êxtase prepara-se, freme e estremece antes de acontecer. A morte chega como um desmoronamento, a gente cai, distende-se a tensão principal das pernas onde se sente a vida.

Serres (2011, p. 225)

Na experiência humana, estar em relação com a gravidade pode ser expresso na maneira como permanecemos em pé, o que anatomicamente compete diferença em relação a outras espécies. Entretanto, longe de nos engajarmos em uma discussão pautada pela evolução das espécies, atentamos para o fato de que a postura em pé determina uma certa relação com o mundo. Estar em pé significa, no limite, estar vivo e com saúde. Não por acaso a ideia de “estar de pé” faz referência a uma relação de sobrevivência, de manutenção da vida, de modo que se relacionar com a gravidade torna-se uma ação de resistência e atenção. Há, portanto, uma estreita relação entre a ação gravitacional e nosso sistema expressivo. A relação de negociação com a gravidade implica na percepção de uma força em duas direções – uma que nos direciona para baixo e outra para cima.

Em nossa pedagogia, o tema da gravidade é acionado em três perspectivas. Primeiramente significando a relação ancestral com a terra e o movimento de transformação que geracionalmente trazemos à vida. Segundo, a consciência propriamente física da gravidade enquanto força magnética inexorável. Daí advém o alerta de que o corpo atuando no contexto da gravidade melhora sua consciência; precisamos então acionar uma série de dispositivos para que essa percepção aconteça de fato, quando, por exemplo, orientamos dançantes a entenderem a pisada não como uma relação com a superfície da terra, mas uma relação de absorção com as camadas mais profundas, com o centro da terra e as transferências de energia. Tenta-se orientar os gestos no sentido da leveza, evitando arrastar os pés, por exemplo, encontrando as forças que geram o movimento e proporcionam equilíbrios.

Percebe-se importância em orientar posições aos joelhos, em conscientizar a bacia enquanto continente que requer atenção e direção para o equilíbrio, assim como o entendimento da função coxofemural, por exemplo, na mobilização dessa bacia. A relação dos pés com o solo em sua estrutura minuciosa de tarso, metatarso e dedos, a construção de seus arcos, a alternância da pisada e sua relação enquanto apoio ativo, tal qual preconizava Klauss Viana (1928 -1992).

Finalmente, a abordagem da força gravitacional e a relação de cada corpo com ela é ampliada na simbologia dos pés com raízes que nos levam ao centro da terra e cujas ramificações podem ser pensadas tanto individual quando coletivamente. Trata-se de uma imagem acionada praticamente em todas as aulas a partir da metáfora apreendida com a mestra Germaine Acogny, que traz em sua pedagogia a figura do baobá, com raízes profundas e galhos extensos, acionando a perspectiva de um corpo profundamente aterrado e, ao mesmo tempo, em constante expansão, com tronco e extensões em crescimento.

A pessoa que dança propõe energia ao solo, apoiando-se, e a transmite pela extensão do seu corpo. Trata-se de atentar para a perspectiva funcional da gravidade, coordenando e negociando a relação do corpo com ela.

A relação com a terra no sentido da troca de energia pode ser vista também como uma perspectiva descolonizada, na medida que propomos que cada dançante sinta seu próprio ritmo interno, perceba sua própria energia e a imponha, por um lado, ao centro da terra, evitando sucumbir, e por outro a transmita ao longo de seu próprio corpo – trata-se de um empoderamento físico quando compreendemos como controlamos o centro a partir do fortalecimento das estruturas tônicas.

Insiste-se na consciência de como a força da gravidade atua sobre nossas estruturas e como é fundamental manter uma disposição postural constante nos diversos planos de ação e

repouso. A ideia é não sucumbir e aterrar. Trazer atenção para como o tronco e demais membros se direcionam ao solo não apenas como reverência, mas como maneira de concentrar as estruturas com foco no core159 para potencializar as energias dos centros que serão distribuídas para as extremidades, ativando, tonificando e preservando as estruturas da coluna (discos e vértebras).

Aprendemos também como deslocar a energia ao solo e exigir que ela retorne ao corpo – por isso é imprescindível a pulsação, o bounce160. Vale aqui um pequeno parêntese sobre a condição determinante do pulso como instância encadeadora e mantenedora do movimento e uma das maiores dificuldades que percebemos em pessoas educadas nas formas euro-orientadas de escrita de si. O pulso, quando compreendido como uma noção de tempo que pode ser acionada pela música, tanto traz a percepção do ciclo de duração do movimento quanto torna-se um elemento para que possamos manter o movimento presente, atento e bem distribuído. De maneira geral, os dançantes têm dificuldade de equilibrar essa pulsação, de se apropriarem dela e tomá-la em proveito do seu próprio movimento. Compreender o pulso e jogar com ele é uma destreza que se adquire com treinamento e disciplina. Ao contrário do que o senso comum sobre as danças afro-orientadas impôs como interpretação, esse corpo integral em movimento não é um corpo no qual as partes se movem indisciplinadamente, mas uma sapiência minuciosa e só um envolvimento desde dentro é capaz de trazer essa compreensão com propriedade.

Essa compreensão do significado do solo, física e simbolicamente é crucial em muitas danças afro-orientadas. Mesmo em saltos ou movimentos aéreos, peculiares nas danças da África do Oeste, por exemplo, existe uma relação fundamental com o solo. É essa relação que garante o pulso. Aborda-se com frequência seu conteúdo simbólico, deveras valioso, mas a compreensão para quem dança advém, sobretudo, dessa relação ativa que deve ser ensinada como princípio físico. A observação de diversas aulas, sobretudo as de danças do oeste africano lecionadas por mestres das danças da África do Oeste, foram reveladoras dessa realidade:

Os dançantes tendem a manter o corpo ereto e largar o movimento nas extremidades. Parecem separar o corpo em partes bem delimitadas. Quando deslocam a atenção para os pés, esquecem do resto. Demonstram grande tensão na região do pescoço e bacia. Muitas

159 O core é o centro do corpo. Compõem-se de toda a porção muscular do abdômen, os paravertebrais e glúteos. Sao estruturas que auxiliam na estabilização e distribuição de forças. Um conjunto de músculos que auxiliam no equilíbrio e adequação postural do tronco.

160 Emprestamos o termo das culturas urbanas negras da América do Norte, onde o termo se refere a pulso, batida, imbuída de estilo e progressividade.

vezes parecem executar os movimentos como numa aula de ginástica aeróbica. Esse comportamento corporal é mais evidente nas dançantes iniciantes. Há uma dificuldade gritante em fazer fluir a pulsação ao longo do corpo, engajando as extremidades de maneira consciente. (Notas do diário de campo, em aula de dança da Guiné no Centre Momboye, Paris, agosto de 2014).

Nessa aula de dança da Guiné pude perceber perfeitamente como a noção do centro expandido é crucial para que a pessoa seja capaz de entender as outras complexidades dessas danças, em que predomina a cabeça orientando o quadril que, por sua vez, segue os pés. O tronco em suspensão, mobiliza os braços. Claro que, ensinada nos moldes tradicionais, a noção de centro, peso, gravidade e afins é transmitida de outra maneira, em geral a partir da observação do movimento. Entretanto, em nossa maneira de apreender e transmitir o fundamento daquele gesto, e não a dança tradicional propriamente dita, impõe-nos essa perspectiva mais ampla.

A postura voltada ao solo, enfatizando mais a descida do que a subida, é um marco diferencial das estéticas africanas quando relacionadas às europeias. Lembremos, por exemplo, do valor etéreo e esvoaçante do balé clássico, um contraponto à essa perspectiva do solo. Entretanto, tornou-se fundamental em nosso caminho pedagógico significar de maneira concreta as implicações físicas dessa relação diferencial para encontrar a unidade dos membros e a articulação deles no movimento. Ao mesmo tempo, o centro da terra e o centro do corpo, ou os centros do corpo, exigem um “centrar”, enquanto verbo, que simbolicamente orienta para a concentração subjetiva e para a mobilização ao pertencimento em comunidade.