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Ampliar os sensos de imaginação e a eficiência do gesto

CAPÍTULO 3 – Corpo em diáspora: fundamentos para uma proposta metodológica

3.3 Interesses e procedimentos da prática pedagógica

3.3.9 Ampliar os sensos de imaginação e a eficiência do gesto

Concebendo o imaginário como uma esfera primordial do processo de aquisição de conhecimento, trabalhamos constantemente em sala de aula a ideia de que “imaginar é realizar”: na perspectiva física, acionamos as estruturas internas do corpo a partir de uma noção mais profunda de movimento de modo que o pensamento seja incorporado em completude. Na perspectiva simbólica a imaginação é essencial para a liberdade e autonomia já que é a própria ação. Imaginar significa levantar propostas para realidades almejadas. O exercício da imaginação aliado ao da experimentação é também utilizado como disparador para abordar a alteridade sem o corte do etnocentrismo.

Em uma perspectiva prática e concreta, ao construirmos imagens somos capazes de reproduzí-las. Assim, imagens mentais são amplificadas para o restante do corpo, chegando mais perto de uma eficiência do gesto.

Procuramos conduzir a pessoa que dança a uma noção de liberdade com consciência167, a liberdade da descoberta e a possibilidade de entendimento do corpo de

maneira renovada. Busca-se também relacionar o prazer e inspiração provocado pela dança, com uma mobilização consciente entre movimento e sentido, para que não tenhamos nem um corpo expressivo sem consciência e tampouco um corpo automático, sem tônus, graça ou presença.

A ideia de liberdade com consciência merece uma discussão mais detida por ser uma espécie de conceito com o qual nos identificamos enquanto anunciação contrahegemônica negra. A interpretação no senso comum acerca da liberdade das culturas negras está baseada na série de equívocos discutidos anteriormente. Esses mal-entendidos se devem ao fato de que o pensamento social hegemônico ignorou a experiência da liberdade construída a partir de saberes e estratégicas, valorizando-a, ao contrário, na perspectiva do descontrole e da expontaneidade exacerbada. Essas ideias conformam pensamentos e imaginários que são

167 Há uma preocupação patente em construir um discurso sobre liberdade distinto daquele articulado pelo pensamento social normatizado e pelo pensamento neoliberal, pelas histórias das teorias eurocêntricas bem como disseminado nos espaços produtores de conhecimento em dança, que referem constantemente as danças afro-orientadas como “livres” e próximas de algum estado de natureza.

replicados nos mais distintos contextos. O fato é que por todos os fatores já discutidos, as culturas negras não são culturas de repressão do corpo, mas realidades onde o corpo participa como sujeito na composição da pessoa, se é que podemos fazer essa analogia. Nas culturas eurocêntricas fundadas nas premissas da racionalidade cartesiana, o corpo como experiência material é constantemente negado – e isso tem origens remotas no curso da história, mas se verifica facilmente na atualidade.

É relevante notar que grande parte da intelectualidade voltada para as técnicas de dança afro-orientadas historicamente manifestou em suas pedagogias um claro cuidado com a ideia de disciplina. Lembremos, a título de exemplo o rigor de Katherine Durham, Germaine Acogny e Inaicyra Falcão, que, em suas especificidades históricas e contextuais sempre reforçaram a perspectiva da liberdade com consciência. O ponto onde queremos chegar é que a colonialidade de pensamentos gera equívocos e enganos que continuam a ser reproduzidos sem o devido debate. Citamos o discurso de uma importante coreógrafa brasileira radicada na Holanda, profissional reconhecida por sua competente atuação em pesquisa e prática artística, que afirma: “Eu sempre tive a impressão de que [nas danças africanas] você faz qualquer coisa que quiser em alguma música africana”. O depoimento da coreógrafa168 ocorre logo após fazer uma aula de técnica Acogny, ela afirma sentir-se surpresa diante do que experimentou e que, supostamente, teria quebrado sua “impressão” anterior de que nas aulas de danças africanas a pessoa faz o que quer em alguma música africana. O infeliz depoimento da profissional, longe de constituir um caso pessoal, apenas reflete o imaginário normativo preconceituoso que se impõe no mundo da dança pelos motivos anteriormente discutidos e que por se normatizarem passam desapercebido.

Interessa-nos dar ferramentas para que a pessoa que dança canalize seus estados emocionais e não atire seu corpo no espaço, fruto de diversos mal-entendidos, estereótipos e projeções de mentalidades eurocêntricas.

Além de uma catalização simbólica e espiritual, o corpo gera conhecimento. Quando suamos, há uma concretude corpórea e uma geração de prazer – prazer que é também hormonal. Há uma realidade fisiológica de conhecimento geral sobre os efeitos hormonais resultantes da prática de atividade física. Tendo em vista a mobilização que a prática da dança aciona, a produção, por exemplo, de grandes quantidades de endorfina, hormônio que gere a dor e sensação de bem-estar, fazem com que a alegria e geração de vida sejam quase “garantidos” na prática da dança. Há um bem-estar, uma felicidade física, se assim podemos

descrever. Entretanto, essa mobilização hormonal precisa ser compreendida e devidamente gerida, do contrário recai-se ou na louvação entusiástica e acrítica das africanidades ou no desvario sem consciência. Vale também significarmos esse senso de alegria a partir das formas africanizadas de escrita de si, onde alegria não é apenas festiva, mas uma espécie de lógica fundadora. Muniz Sodré (1996), na obra O terreiro e a cidade, traz a noção de que a alegria nas culturas negras é uma categoria metafísica para mostrar uma afinação perfeita com o mundo.

Retomando o assunto inicial de interesse, na perspectiva de atenção às simbologias legadas pelas africanidades, o foco na capacidade de imaginar representa simbolicamente a capacidade de transbordar e anunciar o novo. A imaginação é a capacidade geradora de imagens que nascem no corpo de cada pessoa169 e atua como princípio corporificado, uma espécie de saber metafórico que concretamente reverbera no corpo.

O emprego da ideia de imaginário é por nós entendida como um conjunto de símbolos e conceitos que são utilizadas pelas pessoas e coletividades para significarem o mundo. Edouard Glissant (2011) propõe-no como “a construção simbólica através da qual uma comunidade (racial, nacional, imperial, sexual, etc.) define a si mesma”. Em um campo mais específico de pesquisa, qual seja, os estudos do imaginário, encontramos a definição proposta por Marcos Ferreira Santos:

O imaginário é fruto de um processo contínuo de trocas entre o que é próprio da espécie humana, de sua subjetividade, e o que está em seu entorno, sejam as relações sociais, sejam os aspectos geográficos, históricos, ideológicos ou cósmicos. (SANTOS, 2012. p. 77)

Assim, em nossa coletividade as pessoas acionam imaginários acerca da brasilidade fundamentada nas formas africanizadas de escrita de si, bem como acionam suas subjetividades, trazendo pertencimentos gerados no grupo, com o grupo assim como trazidos para o grupo.

Finalmente, esse fundamento de imaginar e realizar está alicerçado em uma ideia de formação de sujeitos a partir daquilo que descobrem como potência em si através do diálogo com novas experiências. Tendo como premissa a busca de um conhecimento de si e da relação com o mundo, cada pessoa absorverá as informações tendo em vista a relação que estabelece entre a sua história e aquelas informações técnicas e poéticas compartilhadas em

169 A perspectiva da imaginação será importante também na discussão que levantaremos mais adiante no capítulo que aborda a técnica da coreógrafa Germaine Acogny.

aula. Cabe a cada pessoa, aprofundar, retificar ou re-interpretar o que seu corpo viveu para seguir adiante, já que o conhecimento é dinâmico e exige constante reorganização das ideias. O contato com o Corpo em diáspora implica, muitas vezes, em “desaprender” ou confrontar de maneira crítica os aprendizados anteriores sobre corpo através de outras técnicas de dança e receber as novas informações. Atentar para o imaginário possibilita, no limite, renovar nossos movimentos cientes de que para imaginar tem que corporificar.