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A pessoa, o indivíduo e a premissa da coletividade

CAPÍTULO 3 – Corpo em diáspora: fundamentos para uma proposta metodológica

3.3 Interesses e procedimentos da prática pedagógica

3.3.6 A pessoa, o indivíduo e a premissa da coletividade

Os encontros nas aulas são regidos para a construção de sensos de pertencimento e solidariedade sem que isso seja uma louvação embasbacada da coletividade. Pensamos nesse lugar de pertencimento que fortalece a noção de pessoa, enquanto construção processual entremeada por forças complementares e, por vezes, antagônicas. Sendo uma categoria que ganha significantes a partir dos contextos que habita, o indivíduo sente-se pessoa quando

imbuído desses significantes diversos que podem ser nomes, indumentárias164, domínio de gestuais:

O lugar é fundamental na construção da pessoa e da comunidade. A pessoa é contruída pela própria comunidade, ela tem seus traços pessoais, na sua forma de organizar as suas influências, tem a sua trajetória, mas o seu pertencimento é uma comunidade. É diferente da ideia de indivíduo (indiviso, aquele que não se divide), na tradição mais ocidental. A pessoa é o contrário, é aquilo que é compartilhado, é o que se compartilha na mesa da amizade, que é o que constitui a comunidade. E essa a perspectiva que dialoga com a tradição ameríndia e com a africana. (SANTOS, 2012, p. 25)

Referimos essa noção de coletividade enquanto fundamento africanizado que, longe de constituir-se apenas enquanto traço cultural, é estratégia criada pelas populações escravizadas e que se tornou um elemento de resistência: o espírito associativo (MOURA, 1988, p. 111)165 Duas esferas são privilegiadas nas aulas: a percepção das subjetividades, onde a história/trajetória individual é valorizada, fazendo do aprendizado um fluxo de ensinamentos sobre o corpo que dança, o mundo e a consciência coletiva, de participação e afetação contínua. Sem perder de vistas que as subjetividades são desenhadas pelos encontros, a dimensão coletiva, muito cara às culturas afro-atlânticas, são o pressuposto que desconstrói a premissa eurocêntrica do indivíduo e faz-nos atentar para a construção da pessoa.

Na experiência negro-africana a perspectiva da coletividade tem força naquilo que recupera da humanidade destituída pela memória do passado cativo através das celebrações, rituais e festejos onde cada pessoa está ligada a projetos de mundo que fortalecem seus percursos e os sentidos no universo. Assim, não é só a pessoa quem dança, mas o grupo – que cria e transforma continuamente o espaço/tempo.

164 Sobre o pertencimento a uma coletividade através do significante da indumentária, considero interessante relatar um fato: em 2003 frequentei um curso sobre diáspora negra na Universidade de Maryland, EUA. A cidade, vizinha da capital, Washington, não tinha grandes atrativos para mim além do campus universitário, de modo que quase todos os dias eu pegava o metrô e me dirigia a capital – para circular pelos bairros e espaços de cultura afro-americana, como a Howard University, a Sankofa produtora de vídeos, a US Street, lojas de tecidos e a escola de dança onde funcionava o Kankoran West African Dance. Este último, significou minha introdução no universo das danças da África do Oeste. Ocorreu que em minha primeira aula, cheguei paramentada com uma suposta “roupa de dança” – calça de lycra, camiseta e só. O aquecimento já etava começando quando uma moça aproximou-se e me deu um tecido para que eu amarrasse na cintura. De fato, todas as bailarinas estavam paramentadas com tecidos. O que mais tarde fui compreender ser um significante de pertencimento ao grupo e àquela prática cultural.

165 Sobre o espírito associativo, Moura (1988, p. 111) afirma: “A fim de preservar as suas crenças, conseguir momentos de lazer, de refuncionalizar seus valores, traços e padrões das culturas africanas, obter alforrias, dinheiro, sepultura ou resistir aberta e radicalmente ao regime escravista, ele organizou inúmeros grupos ou se incorporou a alguns já existentes”.

Essa dimensão fortalece as identidades a partir das corporeidades quando a pessoa que dança percebe que faz, constrói, aprende junto, sem que isso implique em subtração de sua subjetividade. Reforça-se a consciência da participação em um movimento coletivo, que importa para muitas pessoas.

A compreensão da potência da coletividade, por vezes percebida de forma equivocada nas práticas pedagógicas e artísticas afro-orientadas, é conduzida para desconstruir noções como “aula evento”166 ou entretenimento, e comunicá-la enquanto fomento e significância

para as existências de cada participante. Ao sugerirmos em algumas das propostas de espacialidade das aulas o parear lado a lado, por exemplo, o ato de dançar lado a lado não é simplesmente funcional ou mera reprodução de modelos, mas uma maneira eficiente de engajar a participação da pessoa no todo, sentindo-se (re) construída por esse ambiente.

Há um trânsito contínuo entre a subjetividade e o coletivo, criando, conduzindo e mobilizando a criatividade. Esse pertencimento ao coletivo compreendido de maneira mais ampliada retoma a vinculação ao social e seus elementos de organização. Ao dançarmos juntos mobilizamos tanto o aprendizado quanto a capacidade de uma sintonia fina que, frequentemente, associamos à experiência da cidadania. Aqui desconstrói-se a lógica ocidental do individualismo, substituída pela noção de individualidade, que também existe e que se torna importante quando as tradições e suas normas de conduta precisam ser relidas para permitir à pessoa um espaço de respiro. A atuação da pedagoga implica em favorecer a percepção das potencialidades de cada pessoa e sua contribuição para a fruição do coletivo.

A convivência coletiva também leva a uma experiência holística que religa a pessoa aos pertencimentos humanos mais fundamentais – que são de alianças e, por que não, de discordâncias também, envolvendo a pessoa que dança em uma rede de relações vital com combinações, dilatações, tensões e cruzamentos que conduzem a energia. Essa experiência é comumente compreendida de maneira equivocada a partir de um determinismo religioso. O que desejamos é um nível de conexão onde reconstruímos relações perdidas na vida citadina, urbana e nos reconectamos em engendramentos criativos.

Esse pertencimento é mobilizado também por maneiras específicas de canalizar energias que reverberam em ações ritualizadas e transformativas, criando um astral coletivo que atravessa inevitavelmente a dança. A dança executada coletivamente impõe esse tipo de

166 Não nos referimos aqui à noção de evento como acontecimento único que agrega tempo e espaço, mas sim ao evento como acontecimento pontuado por expectativas de mercado e que causam um frenesi fugaz.

relação que demonstra também como as estruturas comunitárias estruturadas no círculo reanimam o potencial do grupo e trazem vigor a ele reverberando em expressões com sentido e beleza.

Figura 11 - Aula Corpo em Diáspora. Sala Crisantempo. Crédito - Vitor Vieira (2016).

Percebemos que a dimensão da coletividade não é dada, mas construída. Eis um grande desafio porque não se trata apenas de um coletivo comum, mas sim uma partilha de referências e de exercícios de desvínculo das perspectivas individualistas de abordagem do corpo. Considerando a multiplicidade de perfis raciais, econômicos e de gênero, construir esse coletivo em uma escola de dança da zona oeste, com encontros apenas uma vez por semana, em uma cidade frenética como SP é deveras complexo. Não creio que conseguí atingir esse lugar de fato, mas laços de coletividade são permanentemente criados e recriados.

Há, por fim, uma dimensão pedagógica do coletivo. É na observação do corpo da outra, do parceiro, que muitas vezes entendemos nossos próprios movimentos, dificuldades e itinerários. Essa identificação não se dá simplesmente na base da imitação ou do exemplo, mas é instigada pelo senso de pertencimento e solidariedade, fazendo com que cada dançante compreenda seus mundos a partir da interação. Assim, uma voz não se sobrepõe a outra, mas estas se amplificam mutuamente.

3.3.7 Motores do movimento e mobilização de energia: princípios de unidade e