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Diáspora, identidade cultural e prática artística

CAPÍTULO 2: Corpo em diáspora – Travessias da pesquisa

2.13 Diáspora, identidade cultural e prática artística

A diáspora negra não era somente nosso mundo próprio, mas de muitas maneiras, o mundo ocidental.

Ta-Nehisi Coates (2015)

O termo diáspora é muito caro à contemporaneidade tendo em vista os deslocamentos em vários mundos a que a humanidade esteve e está sujeita. Etimologicamente se refere à ideia de dispersão e semeadura. Expressão oriunda da língua grega, seu sufixo dia significa à parte e o prefixo spora se refere ao ato de disseminar sementes. Seu uso nas últimas décadas tem sido objeto de múltiplas abordagens e complexidades, mobilizando intelectuais a pensá-la não apenas enquanto entidade delimitada em sentidos, mas como uma espécie de reivindicação de posições que situa a negritude no campo comunitário e identitário. Os vetores múltiplos em seu interior flutuam em significados que passam pela ideia de exílio, pós-colonialismo, migração, sul global e, sobretudo, transpassa a idéia de naturezas multifacetadas. Falar em diáspora implica em pensar não apenas a relação dos povos negros com o chamado “novo mundo”, mas também a própria relação entre eles.

O termo está ligado também à diáspora judaica, conceituada a partir da ideia de dispersão de um povo que, mesmo à distância de sua terra e de sua coletividade cultural, se refaz no exílio, retendo suas especificidades. Daí provém o conceito dito clássico de diáspora, pautado não só pelo caráter forçado da dispersão, mas pela capacidade dos povos referidos manterem uma unidade e uma identidade a despeito do desenraizamento. Essa diáspora clássica analisada por teorias dos anos 1970 e 1980 incluía o movimento de populações judaicas, armênias e gregas, pensadas enquanto agrupamentos cuja capacidade de coesão e unicidade consolidavam-se em motores para o deslocamento. Nesse modelo, as ideias de dispersão, a orientação do imaginário para a terra mãe enquanto valor e identidade e, finalmente, uma tendência em ocorrer a manutenção das fronteiras prevalece113 .

sobre as culturas negras no país, onde o referente cultural africano torna-se apenas tema a ser reproduzido. Cabe, portanto, refletir que, neste caso, não basta gostar, é fundamental conhecer.

113 Em Global Diasporas, Robin Cohen (2008) elabora traçados conceituais do termo, situando-as em uma categorização histórica bem como situando os estudos das diásporas e suas distintas noções e fases nos estudos acadêmicos.

Um segundo modelo, intitulado pela bibliografia especializada como diáspora híbrida, parte da experiência negra no Novo Mundo, que “conforma uma mobilidade que extrapola a simples disposição geográfica e que tem capacidade permanente para a mudança, longe de toda reivindicação comunitária adquirida” (CHIVALLON, 2008, p. 31. Tradução nossa).

É sobre a diáspora negra que tratamos neste trabalho. A diáspora entendida apenas como encontro das diferenças e das alteridades, definida por movimentos de deslocamentos pautados por migrações vistas de maneira generalizada, não dá conta da racialidade que desumanizou e coisificou uma determinada parcela da população do globo. Na diáspora negra a diferença foi racializada e os diferentes desumanizados. O restante da história já sabemos. A partir dessa perspectiva fazemos a reflexão sobre o contemporâneo fundamentada sobretudo pela perspectiva da diáspora africana como dispersão engajada com as origens, destinos, movimentos, transformações e transbordamentos anunciados pela “viagem” das populações negras nas Américas. Sidney Mintz e Richard Price, na obra O Nascimento da cultura afro- americana, datada de 1976, avançando na perspectiva crítica nos estudos sobre a cultura afro americana afirmavam que os reveses do escravismo impunham aos africanos escravizados a necessidade de se reinventarem no novo mundo, imprimindo dinamismos e transformações, abrindo-se para as novas informações e mantendo-se informados pelas orientações cognitivas mais profundas originadas em África.

Na busca por uma discussão razoável do conceito que nomeia nossa pedagogia – Corpo em diáspora – abrimos mão de pensá-lo em sua genealogia ou historicidade mais ampla e optamos por contextualizar autores selecionados que abordaram especificamente a diáspora africana a partir do campo dos estudos culturais. Sendo os conceitos forjados para a produção de sentido e suas histórias e historicidades atreladas à práticas e universos sociais específicos, por vezes em condições ambivalentes e em tensão, definimos um recorte que valoriza um entendimento de diáspora que considera o deslocamento das populações africanas ao redor do mundo, e em nosso caso específico, para as Américas. Assim, compreendendo as distintas experiências históricas na diáspora, não perdemos do horizonte os mapas particulares que se impõem ao Brasil quando pensamos o termo e suas rotas. Ao mesmo tempo, ao inserirmos esta discussão no campo específico da produção de conhecimento em dança, pensamos diáspora como experiência.

Edwards (2004), que aprofundando um sentido historicizado e político para diáspora, aponta que nas últimas décadas o termo ganhou uma conjuntura particular relacionada ao discurso da intelectualidade negra, que gera um tipo específico de trabalho epistemológico

tornando-se praticamente um grito de guerra ou apelo de grupo. O autor localiza no trabalho do historiador George Shepepperson, nos anos 1960, um dos primeiros debates acadêmicos que pauta a noção de diáspora africana em termos paralelos à diáspora judaica relacionada a circuitos transnacionais. Shepepperson afirmava que as forças que levavam as populações africanas para fora, quais fossem a escravidão ou o imperialismo, eram forças similares àquelas que dispersaram as populações judias. A virada, segundo Edwards, para um discurso explícito sobre diáspora no campo dos estudos culturais, vem com a obra There Ain´t no black in the Union Jack (2013), autoria de Paul Gilroy, que usa o termo diáspora para discutir o que define como uma nova cultura de troca cultural.

Esse avanço de interesses a partir dos anos 80 fez ampliar os universos de abordagem, considerando as múltiplas dispersões que ocorreram no globo redefinidas a partir de alternativas aos modelos teóricos que versavam sobre deslocamentos restritos aos termos do exílio, migração ou êxodo. Nesse ínterim, passou-se a pensar a migração para além de um movimento de simples partida, voltando a atenção para suas causas bem como para categorias culturais e de identidade que se tornaram temas urgentes para as ciências sociais. Nesse barco, as discussões e diálogos propostos por Stuart Hall (2003b), Paul Gilroy (1993), James Clifford (1999), Hammons Campos-Pons (2008) e Robin Cohen (1997) possibilitam um interessante arsenal crítico e servem de ponto de partida para a exploração sobre os cruzamentos da diáspora, as identidades culturais e a prática artística.

Esses autores trazem a percepção da diáspora enquanto fenômeno relacionado aos povos negros, mas também a todos envolvidos em seus movimentos e entendidos de maneira plural a partir das conexões então estabelecidas. São perspectivas que se apoiam, sobretudo, na crítica ao essencialismo, à negação da ideia de identidade fixa, bem como se preocupam em não minimizar os efeitos da experiência da escravidão que reverberam na contemporaneidade.

Discutindo a experiência da diáspora pela chave da identidade, o sociólogo jamaicano Stuart Hall (1996), a partir das culturas caribenhas, que, segundo ele, estão impelidas por uma estética diaspórica complexa que impõe a experiência da multiplicidade e que gera questões não apenas para seus sujeitos, mas para as artes e culturas que produzem, afirma:

o sentido atribuído à diáspora é metafórico, não literal, uma vez que a diáspora não nos reporta aquelas tribos dispersas , cuja identidade só pode ser garantida em relação a um torrão pátrio sagrado, ao qual elas devem retornar a todo custo […]. A experiência da diáspora, como aqui pretendo, não é definida por pureza ou essência, mas pelo reconhecimento de uma diversidade e heterogeneidade necessárias; por uma concepção de identidade

que vive com e através, não a despeito da diferença; por hibridação. Identidades de diáspora são as que estão constantemente produzindo-se e reproduzindo-se novas, através da transformação e da diferença.(ibid., p. 75)

Nos processos de identificação transnacionais as culturas migram, se adaptam e se transformam. Assim, parece-nos relevante neste trabalho pensar a ideia de diáspora a partir de uma abordagem de movimento. Movimento que invoca dispersão e descentramento – termos implicados e implicantes da diáspora.

Embora a dimensão de multiplicidade apontada por Hall nos interesse para pensar a realidade brasileira, é fundamental, operarmos com certo deslocamento contextual considerando que o lócus de pensamento de Hall, qual seja, o das culturas caribenhas e sua diáspora para o Reino Unido, e a perspectiva daí advinda de fusão de diferentes elementos africanos, asiáticos e europeus, traz uma perspectiva de entrelaçamento que deve ser atualizada para a experiência brasileira, onde os universos de produção de sentido das culturas africanas e indígenas se sobrepuseram à influência europeia e onde também há dinâmicas específicas de fluxos migratórios no século XX, tanto externa quanto internamente.

Recuperando a contribuição de Paul Gilroy para o estudo da diáspora, no Atlântico Negro (1993), vemos que a ideia de continuidade cultural propalada por seus contemporâneos foi considerada insuficiente para o autor, que situa a fundação da diáspora no tráfico negreiro114. Como colisão violenta entre tradição e modernidade, na diáspora lida por Gilroy encontramos a contradição do discurso ocidental segundo a qual na escravidão se fundam as ideologias do progresso e da racionalidade. Para o autor, as culturas da diáspora são interculturais, múltiplas, hibridas móveis e polifônicas:

Para mim, a diáspora é uma formação criada por expulsão e violência. Falar de diáspora exige um exercício mental, consistindo na compreensão de que podemos existir em vários lugares ao mesmo tempo. Que o local de existência, de residência, pode ser diferente do local de origem. (ibid., p. 84. Tradução nossa)

Gilroy concebe a consciência formada na diáspora como um complexo sociocultural que conecta África, Américas e Europa, o que, entretanto, não resulta em uniformidade cultural, mas sim no reconhecimento de uma “multiplicidade intercultural”, que, com graus

114 Cabe fazer referência ao fato de que grande parte dos teóricos que tratam a origem da diáspora africana o fazem tendo como ponto de partida o tráfico trans atlântico, entretanto, o tráfico na costa leste, mais antigo, foi responsável por quantidades consideráveis de capturas de povos escravizados. Para discussões sobre esse assunto, ver: Edward Alpers, em The East African Slave Trade (1967); Joseph Harris, em The African Presence in Asia: Consequences of the East African Slave Trade (1971).

maiores ou menores de unidade, possibilita a formação de uma consciência coletiva consubstanciada na ideia de Atlântico Negro.

Esse acúmulo de identidades dinâmicas que se reorganizam115, assim como Gilroy (2013) afirma que a cultura negra é ativamente feita e refeita em There ain’t no black in the union Jack, faz com que cada membro da diáspora aborde e desenvolva suas questões próprias a partir de trajetos específicos e múltiplos.

Aqui tratamos de recriar um corpo afro-atlântico em função da ligação histórica que o Brasil tem com diversos contextos africanos, buscando não uma conexão direta ou o reconhecimento de elementos que persistiram ou resistiram, mas sim encontrando no corpo fundamentos característicos dos conteúdos civilizatórios africanos que inevitavelmente devem se atualizar em solo latino-americano, colocando-se como presença transoceânica116·. Se por um lado concordamos com Gilroy de que o Atlântico Negro é um espaço simbólico de reconquistas de humanidades nossa experiência diaspórica latino americana gera novas possibilidades e interpretações.

Então é na diáspora que encontramos os fluxos e contradições, onde as identidades se acumulam e se reorganizam, fruto próprio do movimento das populações africanas escravizadas nas Américas cuja presença foi crucial para a edificação da modernidade, não apenas na engrenagem econômica mobilizada pelo lucrativo tráfico de escravos, mas sobretudo na geração da modernidade, constituindo-se também em combustível maior da engrenagem mercantilista e seus desdobramentos contemporâneos. Conforme Houston Baker Jr. afirma :

O Comércio Transatlântico veio alterar de forma irreversível as ideologias nacionais, a dinâmica das populações, os modos de produção, e as definições vigentes de raça e de resistência. E que é o modernismo senão irreversibilidade? O homem deixou de ser um fim em si mesmo para ser um meio mercadorizado… Um meio, de facto e de direito, para chegar a meios e a fortunas mais amplos. (2006, s/n)

Assim, não podemos separar a experiência diaspórica da complexa rede de exploração fundamentada na suposta inferioridade dos povos africanos. O dinamismo e as multifaces de identidades presentes na diáspora também estão articulados com a dimensão da exploração. A historiadora e ativista Beatriz Nascimento (1989) descreve a ideia da diáspora a partir da perspectiva transatlântica, onde a experiência não se finda no cruzamento mas vai além,

115 É com essa expressão que Nicolau Pares discute a condição diaspórica.

116 Conceito proposto por Robert Farris Thompson na obra An Aesthetic of the Cool (2011).

resultando na perda de referência por parte dos sujeitos oriundos dessa travessia, cujos corpos, imagens e identidades se esfumaçam quando capturados pela engrenagem mercantilista. Em Ori (1989), filme que roteiriza, Nascimento aborda então a busca por visibilidade :

É preciso imagem para recuperar a identidade, tem que tornar-se visível, porque o rosto de um é o reflexo do outro, o corpo de um é o reflexo do outro e em cada um o reflexo de todos os corpos. A invisibilidade está na raiz da perda da identidade (...)

Este parece ser um ponto crucial na discussão sobre identidade nas perspectivas contemporâneas pensando em como as epistemologias atuais, que desconstroem a ideia de identidade e se negam a utilizá-la, por teorizarem a partir da experiência eurocêntrica, não dão conta dessa perspectiva que conforma o pertencimento histórico das populações da diáspora:

A noção de diáspora não só desestabiliza estereótipos de pessoas negras como exóticas, não intelectuais e não civilizadas. Ela também recoloca as hierarquias e dicotomias em que o primitivismo se assenta através de um modelo de influências negras e troca que não está totalmente dependente de qualquer árbitro branco. Ou seja, o primitivismo oposto vê a escuridão apenas em relação à brancura, a diáspora enfatiza as relações dentro da escuridão. (KRAUT, 2008, p. 146. Tradução nossa)

Dos anos 1970 até nossos dias, avançamos na percepção da identidade como pluralidade, mas ainda parece necessário fazer referência a ela sem incorrer em essencialismo, considerando os campos de sentido assimétricos e heterogêneos que inevitavelmente nos atravessam e nos colocam em relação uns com os outros.

A ideia de travessia desenvolvida pelo filósofo Jean-Godefroy Bidima (2002, p. 12) expressa esse caráter de trânsito que acomete as identidades:

A ideia de travessia conjuga, de uma só vez, as possibilidades históricas existentes no tecido social e as tendências e motivacões subjetivas que empurram os atores históricos para um outro lugar. É no cruzamento da objetividade e da subjetividade que alguma coisa de diferente pode advir. A travessia se ocupa dos devires, das excrescências e das exuberâncias, ela diz de quais plurais uma determinada história é feita. Ela não procura nenhuma essência africana, mas, não negligenciando as vicissitudes da história, a travessia reafirma que “este mundo está́ longe de ser um ordo sempiternus rerum, não há nenhum processo sem imperfeições, este mundo não possui nenhuma aptidão em constituir uma decoração fechada; sem cessar se liberam do que ele se tornou irrupções para uma outra possibilidade.

As memórias e identidades desintegradas e indefinidas, fruto do pensamento de uma pós-modernidade que descentra em demasia as narrativas, são interpretadas a partir de lógicas que não levam em consideração as relações de poder que atravessam as experiências das

pessoas negras e suas coletividades. Em diáspora, essas vivências são constantemente atualizadas e ressignificadas movimentando ideias, símbolos e subjetividades. Assim, pensar a diáspora na contemporaneidade nos impõe refletir sobre os encontros, menos do que sobre as distâncias.

Em uma espécie de rede de significados, a diáspora torna-se um processo de múltiplas dimensões onde os povos de descendência africana, enraizados nas modernidades e contemporaneidades, definem suas vidas num processo de ir e vir, recolher e semear.