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CAPÍTULO 2: Corpo em diáspora – Travessias da pesquisa

2.8 Corpo, educação e relações culturais

A ideia de educação do corpo que propomos se movimenta em consonância com a perspectiva de Sodré (2012) quando afirma que a educação deve abrir possibilidades para que o grupo articule os bens que lhes são próprios e mobilize-os de maneira potente. Para tanto, afirma o autor, é preciso escapar ao pensamento único imposto pelas perspectivas europeias e nos descolonizar dos monologismos diversificando os modelos a partir de propostas oriundas dos saberes negros e indígenas96.

Na edificação desde trabalho foram-nos muito caros os pensamentos da crítica cultural bell hooks (1959 - ) e do educador Paulo Freire (1921 – 1997) no que discutem sobre o pensamento crítico como propulsor da prática educativa. Nessa perspectiva, ensinar e aprender são processos que se retroalimentam e a educação é informada pelas questões mobilizadas pela professora e estudante ampliando as visões da realidade de ambos os agentes. Para Freire (1980), educar significa empoderar para promover a mudança, de modo

que a conscientização leva a uma consciência crítica que reverbera em posição epistemológica:

Esta tomada de consciência não é ainda a conscientização, porque esta consiste no desenvolvimento crítico da tomada de consciência. A conscientização implica, pois, que ultrapassemos a esfera espontânea de apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera crítica na qual a realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma posição epistemológica.

A conscientização é, neste sentido, um teste de realidade. Quanto mais conscientização, mais se “desvela” a realidade, mais se penetra na essência fenomênica do objeto, frente ao qual nos encontramos para analisá-lo. Por esta mesma razão, a conscientização não consiste em “estar frente à realidade” assumindo uma posição falsamente intelectual. A conscientização não pode existir fora da “práxis”, ou melhor, sem o ato ação – reflexão. Esta unidade dialética constitui, de maneira permanente, o modo de ser ou de transformar o mundo que caracteriza os homens. (FREIRE, 1980, p. 26)

Nossa perspectiva se alinha a uma ideia de pedagogia não enquanto conjunto de normas e ideias fixas sobre ela mesma e sobre os outros, mas sobretudo como reconhecimento do valor da troca, da invenção e como esses fatores nos formam, deformam e transformam. Trata-se de organizar os saberes e ao mesmo tempo reconhecer suas flutuações, sua volatilidade a depender do lugar em que se anuncia. Essa característica de porosidade e circulação não deixa de ser fundamento africanizado, pois a relação e a extroversão97 sempre foram características pulsantes das culturas negras nas Áfricas e nas suas diásporas. Por sobrevivência, gosto ou estratégia elas sempre se relacionaram.

Na Pedagogia do oprimido, Freire (2005) destaca a necessidade de uma ética que impulsione os sujeitos e suas coletividades a confrontarem criativamente as situações de opressão do mundo. Para o autor, a ética estava inevitavelmente conectada à prática educativa. Isso se verifica na obra Pedagogia do Oprimido, bem como no curto período em que toma contato com as realidades coloniais de Cabo Verde e Guiné Bissau, quando insere a

97 Nosso conceito de extroversão relacionado ao campo das culturas africanas tem referências no trabalho de Jean-François Bayart (2000) que na obra Africa in the World: A History of Extraversion, analisa como as conexões externas dos povos africanos trouxeram riquezas abrindo as sociedades para novas ideias revelando a agência africana. Ao mesmo tempo essas relações de comunicação, pautadas pelas desigualdades de sistemas econômicos forjaram relações destrutivas de dependência. A antropóloga britânica Karin Barber (1997, p. 6. Tradução nossa), versando sobre a obra de Bayart, fornece uma caracterização da extroversão africana que nos interessa: “caracterizar as práticas criativas africanas como extrovertidas significa terem habilidade de inscrever e criativamente absorver materiais de fora de maneira a alimentar debates e projetos locais”. No original: “characterises African creative practices as “extraverted”, that is having the ability to “draw in and creatively absorb materials from outside in order to fuel local contests and projects”.

discussão da racialização e da colonização no seu trabalho a partir da obra Cartas a Guiné Bissau. Ao tratarmos as questões afro-orientadas e nos inspirarmos na pedagogia freireana, não perdemos de vista que talvez o confronto com a desigualdade racial só tenha sido de fato conhecido por Freire quando viajou para Cabo Verde e Guiné Bissau e refletiu sobre os poderes opressores que emergiam da colonização e seu projeto de inferiorização racial. A noção de “conscientização” de Freire (1980), enquanto processo de empoderamento que “exige um saber que tem uma profundidade que vai além da busca de informação e inclui o entendimento e a habilidade de agir no aprendizado de maneira a provocar a mudança”, é uma diretriz para pensarmos processos transformativos que afetam professora e dançantes. Nesse aspecto, o ato de ensinar significa entrar profundamente no corpo do conhecimento a partir da consciência crítica. As experiências das aulas exigem que a professora tenha uma espécie de antena parabólica, tornando-se sensível para a diversidade de histórias presentes e seja capaz de gerir o contexto para que todos processem as informações em seus sentidos e formas.

O pensamento de Inaicyra Falcão dos Santos (1996) na proposta pluricultural de Dança-Arte-Educação nos foi basilar, em sua abordagem das experiências africano-brasileiras na prática pedagógica e na busca por interpelações que dão centralidade aos fazeres e saberes oriundos da diáspora negra. Santos reforça a importância do conhecimento de si através da busca da ancestralidade de cada pessoa, que se liga a movimentos arquetípicos que, se por um lado são inerentes à experiência humana, por outro fazem parte de repertórios desenvolvidos a partir de uma memória corporal ligada à experiência sociocultural individual. Aqui, a consciência se si torna-se vetor para o processo criativo.

Agir tendo em vista a colonialidade do gesto relacionada à prática pedagógica exige descontruir pensamentos e práticas questionando os lugares comuns instituídos como normalidade e profetizados como únicos, dentro de epistemologias legitimadas por saberes euro-orientados. Como discutimos anteriormente, a colonialidade é uma ordem complexa entranhada nas estruturas educacionais. Fissurar as engrenagens que a disseminam parece ser um caminho eficiente para o enfrentamento das matrizes coloniais. Essa desconstrução só é possível se entendemos pedagogia de maneira plural, como prática que questiona os conceitos estabelecidos, como método que conecta solidariedades e se vincula às nossas realidades:

Las pedagogías pensadas así no son externas a las realidades, subjetividades e histórias vividas de los pueblos y de la gente, sino parte integral de sus combates y perseverancias o persistencias, de sus luchas de concientización, afirmación y desalienación, y de sus bre- gas — ante la negación de su humanidad— de ser y hacerse humano. Es en este sentido y frente a estas

condiciones y posibilidades vividas que propongo el enlace de lo pedagógico y lo decolonial. (WALSH, 2013, p. 31)

Esse pensamento pedagógico não se desvencilha de uma perspectiva sobre a cultura enquanto movimento de relação com o real. Sendo múltipla, a cultura caminha em sintonia com os contextos sociais e tempos históricos que lhes dão sentido, tal qual propõe Sodré (1988). Cultura também se vincula às elaborações intelectuais e estéticas dos grupos, pois no pensamento artístico são essas elaborações que levam à criatividade. No pensamento antropológico98 relaciona-se cultura às produções simbólicas e materiais humanas, fruto de interações entre subjetividades e coletividades que conformam modos de sentir, pensar e agir em um constante jogo de identidades e diferenças que extrapolam o biológico.

Nesse campo amplo e pouco consensual da definição de cultura evidenciamos seu dinamismo, pluralidade e a sua distância em relação aos agenciamentos e atributos geneticamente herdados, fazendo dela um processo e não uma ontologia. Entendendo cultura de maneira processual e simbólica, Ferreira Santos (2004) sugere-a como o universo da criação, transmissão, apropriação dos bens simbólicos e suas relações.

Assim, ao abordarmos a ideia de cultura corporal, não ignoramos os diálogos e transformações, fazendo o caminho inverso dos modelos unitários e fechados de pertencimento cultural compreendendo-a muito além dos traçados entre nações, geografias e etnicidades. Sem desconsiderar o quanto esses vetores significam e influenciam nos movimentos culturais, reforçamos o caráter vivo e mutante onde a cultura torna-se uma casa de aproximação, sem ser uma espécie de esfera de salvação redentora e que supostamente transcenderia os dilemas e antagonismos das experiências sociais. Assim, há conflito e tensão nas negociações travadas no seio da cultura, mesmo que sejam dilemas distintos daqueles enfrentados no campo da economia e da política.

A relação corpo/cultura foi crucial no trajeto de desenvolvimento da pesquisa, na medida em que a dança aparece como espaço de produção de pensamento privilegiado para nos entendermos enquanto corpos brasileiros cuja experiência se dá a partir do encontro conflituoso, hierarquizado e violento das matrizes africanas, indígena e européia. Nesse

98 Cientes da amplitude e densidade da discussão teórica ao redor do conceito de cultura e sem pretender examinar as diferenças conceituais já elaboradas no campo mais amplo da teoria social, consideramos importante referenciar que na literatura antropológica inventários e definições sobre cultura foram criadas durante sucessões de escolas de pensamento. Desde Edward B.Tylor, Frantz Boas, Alfred Kroeber e Clyde Kluckhorn, Clifford Geetz, Manuela Carneiro da Cunha há diversas referências nessa empreitada de se inventariar definições para cultura.

ínterim pensamos a interculturalidade e a reflexão sobre a colonialidade como projetos que se complementam.

Sendo a dança expressão de arte e sendo a arte um sistema particular que só se torna possível mediante a participação no sistema geral de formas simbólicas que se chama cultura, tal qual propõe Geertz (1997), nossa abordagem considera norteadora as relações intrínsecas entre manifestações do corpo e da cultura. Geetz (1997), no texto “A arte como sistema cultural”, afirma que qualquer teoria da arte é ao mesmo tempo uma teoria da cultura, já que seus componentes estruturantes não se desligam de questões formais, simbólicas, afetivas e estilísticas definidas por grupos culturais específicos. Parece-nos importante adentrar a significação histórica e cutural dos corpos que dançam, pois estes enunciam perspectivas de mundo.