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Dança, antropologia e o pioneirismo de Katherine Dunham

CAPÍTULO 2: Corpo em diáspora – Travessias da pesquisa

2.4 Dança, antropologia e o pioneirismo de Katherine Dunham

O movimento de diálogo transversal que propomos não é novo. A bailarina e antropóloga estadunidense Katherine Dunham (1909-2006) foi pioneira nas investigações sobre as danças na diáspora negra, construindo uma técnica de dança baseada em investigações sobre as corporeidades negras na América Central, no continente africano e no Brasil, dialogando principalmente com as culturas corporais do Haiti, em uma proposta de pedagogia que, além do arcabouço técnico, trazia clara atuação política ao debater a ausência negra no campo da dança cênica assim como o racismo institucional em seu país. Em sua trajetória, dança e mudança social caminhavam de mãos dadas. Sua pesquisa estava

68 Sobre o assunto ver Sahlins (1997, p. 18): “Em lugar de celebrar (ou lamentar) a morte da “cultura”, portanto, a antropologia deveria aproveitar a oportunidade para se renovar, descobrindo padrões inéditos de cultura humana. A história dos últimos três ou quatro séculos, em que se formaram outros modos de vida humanos – toda uma outra diversidade cultural –, abre-nos uma perspectiva quase equivalente à descoberta de vida em outro planeta”.

profundamente informada pela experiência de campo e, já naquele tempo, Dunham criticava as corriqueiras distâncias entre sujeito e objeto preconizadas na prática antropológica, privilegiando, ao contrário, o discurso de seus interlocutores.

Katherine Dunham estudou antropologia em Chicago, tendo como mentor Melville J. Hereskovits69, intelectual que influenciou toda uma geração de pesquisadores. Lá, Dunham

abriu seu primeiro estúdio de dança em 1931. Em 1936 recebeu uma bolsa para fazer pesquisa de campo no Haiti, dentro de um terreno de pesquisa ainda em formação – a antropologia da dança. O resultado mais profundo dessa investigação foi a criação da técnica Dunham, marco no campo da dança moderna, muito embora não seja reconhecida como tal, assim como outras pesquisadoras que, tais quais Dunham, tiveram presenças extremamente ativas, mas, entretanto, foram relegadas às margens das áreas de pesquisas. (FROSH, 1999).

O legado de Dunham70 inclui a contribuição no campo da sistematização técnica, assim como na abordagem que pauta sua atuação pedagógica, suas performances e coreografias, que representam positivamente os povos negros e criticam os ideários colonizadores dos corpos na sociedade racista estadunidense. Forma, função, comunicação intercultural, socialização através das artes, autoconhecimento e discernimento eram premissas do trabalho da pesquisadora (DAS, 2014), que , vale lembrar, foi uma das primeiras antropólogas negras da história.

O trabalho de Dunham é pouco referido no campo mais amplo da antropologia, muito embora tenha desenvolvido pesquisas pioneiras e tenha sido parte de um contexto intelectual

69 Mellville J. Herskovitz (1896-1963) foi orientado por Franz Boas (1858-1942), o fundador da antropologia cultural estadunidense, com uma pesquisa sobre as teorias de poder e autoridade na costa leste africana.

70 A trajetória de Katherine Dunham deve ser lida à luz de seu tempo. Assim, mesmo diante de sua perspectiva crítica em relação aos estereótipos e estigmas, primando pela dignidade, alguns de seus espetáculos eram exóticos e eventualmente escorregavam em clichês. Sua técnica continua a ser disseminada sobretudo nos Estados Unidos e anualmente um seminário é organizado – a 34a. Edição ocorreu em julho de 2017 na Washington University, em St. Louis. A experiência prática que tive com a técnica foi através das aulas de Eila Moore e Antonine Hunter, na escola ODC, em São Francisco, Estados Unidos. A técnica agrega uma série de referenciais de consciência de motricidade como a percepção do centro, dos espaços articulares, da respiração; os ordenamentos da coluna para a contração e release; a atenção para a queda e recuperação, assim como referências específicas aos trajetos corporais afro-orientados, como a pesquisa da mobilidade da bacia e das ondulações da coluna. Elementos muito específicos de sua pesquisa de campo também adentram sua pedagogia como a “caminhada Durham”, o “balanço do cavalo”, o balanço do cavalo com rotação de perna e progressões baseadas nas danças tradicionais dos contextos de Cuba, Haiti e Martinica, como o Congo Paillete, Yonvalou do Haiti e Mahi, da Martinica.

fundante dos estudos etnográficos. Seu mentor, o africanista Melville Herskovitz, à época do campo de Katherine no Haiti publicava sua obra Myth of the Negro Past (1941) que discutia os “africanismos retidos” entre os afro-americanos, propondo que traços culturais africanos seriam recriados ao longo da América. Dunham, num percurso similar, investigava como a dança em seus contextos sociais retinha e reimaginava lugares de memória, consciente, por exemplo, de que as performances caribenhas eram recriações de memórias históricas africanas (OSUMARE, 2010).

Dunham foi pioneira ao pesquisar danças do caribe a partir de um mergulho em seus contextos socioculturais, fazendo confluir antropologia e dança em uma perspectiva à frente de seu tempo, na medida em que a dança não era apenas um vetor para a análise social, mas o motivo principal de sua pesquisa na qual a prática era intrínseca à perspectiva teórica:

O que eu procurava era manter o nível acadêmico. A dança era algo que eu teria que fazer. Eu não tinha escolha. Eu sabia que a dança tinha uma posição de reconhecimento no mundo das artes, mas não tinha nenhuma posição no mundo acadêmico. Até o esporte era considerado mais próximo. (...) Meu problema foi manter uma investigação inteligente e produtiva no círculo acadêmico antropológico que era uma ciência nova, mas muito respeitada. Mas meu desafio naquele tempo foi me manter na posição acadêmica que a antropologia me deu e ao mesmo tempo continuar o forte direcionamento para o movimento. (DUNHAM, 2002, Tradução nossa71) A pesquisadora privilegiava a voz dos informantes em suas etnografias e sua prática artística foi se conformando na fluência da pesquisa de campo, fazendo com que suas visões sobre as diversas comunicações cross-culturais fossem levadas aos palcos.

Percebemos que sua relação com diferentes contextos da diáspora africana a fez imaginar relações culturais e discuti-las em termos de um Atlântico Negro que só seria tomado conceitualmente nos anos 1990 a partir da proposta de Paul Gilroy. Eis aqui mais um pioneirismo.

Nos anos 1960, tempos em que emergiam os movimentos dos direitos civis naquele país, Dunham tensionava com as maneiras como as epistemologias e o sistema político percebiam, julgavam e dominavam os corpos negros em uma sociedade baseada na segregação. O trabalho da coreógrafa evidenciava como a dança poderia se relacionar às questões que atravessam a vida social. Não por acaso, quando a bailarina visitou o Brasil a convite do Teatro Experimental do Negro (TEN), uma série de discussões no campo das relações raciais se acenderam. No período de um mês em que permaneceu no país com sua

companhia, além das discussões mais internas aos contextos da intelectualidade negra, tornou- se amplamente conhecida a ofensa racista a que foi sujeitada no Hotel Alvorada, na cidade de São Paulo, que negou veementemente a permanência da coreógrafa em suas dependências cancelando sua reserva ao perceber que se tratava de uma pessoa negra72. O fato gerou polêmicas de grande visibilidade na mídia nacional fazendo fervilhar o debate sobre o assunto em meio à intelectualidade qu, e à época, teorizava a especificidade brasileira mestiça e cordial, como Gilberto Freyre, bem como no meio intelectual negro defensor da desconstrução da falácia da igualdade racial, como Abdias do Nascimento, assim como entre jornalistas, militantes e políticos. Tal fervor ocorreu, sobretudo porque a artista, oriunda de uma realidade na qual o racismo tinha contornos expressos e instituídos, não hesitou em publicizar e provocar o debate diante de uma situação que, sabia, não ocorria apenas com ela. É sabida a atitude da artista quando em um intervalo de espetáculo convocou a imprensa e denunciou o Hotel, causando furor na mídia naquele que era ano eleitoral. Em decorrência do fato, desencadeou-se uma série de reações que culminaram na promulgação da Lei Afonso Arinos (Lei no 1.390/1951)73, que considerava as práticas racistas como contravenção penal, proposta pelo então deputado de mesmo nome em 195174.

Fissurando a imagem do Brasil como paraíso racial, Katherine Dunham sacudiu alguns contextos sociais do país. A lei Afonso Arinos, por sua natureza paliativa, tornou-se pouco viável enquanto prática efetiva antirracista, já que exigia que além da denúncia fosse provada a motivação que levava ao preconceito, sendo, portanto, mais um artefato político que criava uma imagem politicamente correta do que propriamente um instrumento de mudança. Mas, de toda forma, serviu como um primeiro instrumento de debate sobre o racismo violento que acometia a sociedade brasileira75.

72 Poucos dias depois o hotel também cancelou a reserva da cantora afro-americana Ellen Irene Diggs. 73 Segundo Martins, “O Deputado Federal da UDN mineira Afonso Arinos, em julho de 1950, apresentou no Congresso Nacional o projeto de lei que transformava o racismo em contravenção penal, motivado pela discriminação sofrida pelo seu motorista particular, negro, que era casado com uma catarinense de descendência alemã e que foi proibido de entrar em uma confeitaria no Rio de Janeiro acompanhando a mulher e os filhos, devido à proibição imposta pelo proprietário. Mas o fato catalisador que acabou gerando uma adesão total ao projeto e sua aprovação no Congresso foi o ocorrido quando Katherine Dunham veio se apresentar no Brasil”. (2003, p. 1)

74 Paulo Melgaço (2007), em seu trabalho sobre a trajetória de Mercedes Batista, relata que Katherine esteve no Brasil em 1950, ano em que ocorreu o 1º Congresso do Negro Brasileiro, organizado por Abdias do Nascimento, Guerreiro Ramos e Edson Carneiro. Dunham teve participação ativa ministrando palestras, aulas e estabelecendo conexões com artistas brasileiros. Foi nesse ínterim que conheceu a bailarina Mercedes Batista, que posteriormente ganhou bolsa de estudos para estudar com Katherine em sua escola em Nova York.

75 Sobre o assunto, Martins (2003, p. 1) afirma: “A Lei Afonso Arinos, de 1951, hoje revogada, sempre foi alvo de muitas críticas porque considerada ineficaz na medida em que tratou o

Interessa-nos aqui o pioneirismo de Dunham76 não apenas no que edificou como sistema e vocabulário de movimento, já que recontextualiza tradições de diversos contextos diaspóricos para uma técnica de dança moderna negro-americana, mas as maneiras como associou educação, diferença e saberes afro-orientados em sua atuação enquanto pedagoga, coreógrafa e antropóloga. Seu trabalho foi importante para as desconstruções de representações opressivas sobre os saberes negros, assim como propulsora de formas descolonizadas de perceber o corpo. Sobre esse pioneirismo, Banks afirma:

A sua pedagogia e o seu trabalho coreográfico confrontaram as representações opressivas dos povos negros e agregou as expressões africanas descolonizadas do corpo. Primeiro, através da arte performática da dança, ela produziu imagens descolonizadas e revisou a história, a vida espiritual e secular africanas. Segundo, através da educação em dança ela usou a dança como um meio para enriquecer a identidade negra. A dança era uma ferramenta educacional para reverter a anatomia ideológica da representação colonial no corpo. (2007, p. 47. Tradução nossa)

Ao questionarmos sobre quais culturas corporais são abordadas nos currículos de formação em dança das universidades públicas, interessou-nos interrogar as hegemonias77 estéticas e teóricas que circundam a produção de conhecimento em dança no país fazendo com que técnicas de danças oriundas sobretudo da Europa e Estados Unidos fossem majoritárias.78 A técnica Dunham, mesmo oriunda de contextos do norte, embora saibamos

que não se trata de um norte hegemônico, raramente é referenciada no campo dos estudos de dança no Brasil. Daí perguntarmos quão comprometidas com a diversidade crítica estão as instituições de ensino superior, considerando que mirar a pluralidade significa possibilitar o surgimento de pensamentos emancipadores e criativos. Lembremos que a pesquisa de campo

racismo e a discriminação como mera contravenção penal, tendo tipificado apenas os atos de recusa, oposição ou negação de acesso, deixando de lado uma série de outros atos discriminatórios, deficiências que foram corrigidas pela Lei 7.716/89 e suas atualizações posteriores. Contudo, como destaca o juiz de direito Amaury Silva, autor do livro Crimes de Racismo, “ […] A Lei Afonso Arinos representa um rompimento com o vácuo legislativo de repressão às práticas raciais, introduzindo ineditamente no ordenamento jurídico brasileiro um diploma legal com tal proposição. Mesmo com sua deficiência técnica, é símbolo de avanços necessários, lentos e ascendentes, que nem sequer podem ainda ser tidos como plenos ou aperfeiçoados nos dias de hoje […]”.

76 Dunham compõe uma genealogia de pensadoras da dança afro-americana juntamente com outros protagonistas que, em tempos e contextos distintos, abordaram a identidade cultural e o engajamento político a partir da dança. Pearl Primus e Alvin Ailey são alguns deles.

77 Compreendemos hegemonia a partir de Gramsci (1978) como um mapa das várias maneiras onde práticas de domínio são estabelecidas nas diversas camadas das instituições e na vida cotidiana. 78 Entre elas o balé clássico, a dança moderna e técnicas contemporâneas. As técnicas que saem dessas orientações e abordam algum lugar não dominante acabam sendo outras linguagens eurocentradas com viés mais libertário, como as técnicas somáticas. As abordagens fora dos espaços culturais eurocêntricos são sobretudo as linguagens chamadas de “orientais”.

como prática metodológica para criação em danca, em suas diversas abordagens, tem estado presente nas produções acadêmicas de dança.

Não se trata de negar importância a esses conteúdos oriundos de contextos euro- orientados, mas sim contextualizar criticamente e refletir sobre o que isso teria a ver com a história brasileira. Quando a historiografia da dança brasileira conduz seu percurso mirando exclusivamente aquela trajetória de contextos do norte global, torna-se incoerente com suas realidades próprias e no limite, nega aquilo que outros possíveis universos de dança estavam concebendo. Para nós, cujos referenciais se entrelaçam com a história europeia, mas não se submetem a ela, a “descida ao solo” enquanto negação à estética clássica demandada pelas pioneiras da escola moderna hegemônica79, por exemplo, é redundante, pois nos pensamentos

afro-orientados o solo, sendo lugar da força gravitacional, da ancestralidade e da mobilidade subversiva, é referência para organizar o corpo, mover os símbolos e criar frestas80 desde tempos remotos.

É um exercício desafiador reivindicar a visibilidade e reconhecimento das danças afro- orientadas sem que essa reivindicação fique restrita a um chamado exclusivamente político ou para a cessão de espaços específicos. O pensamento contemporâneo brasileiro ainda tem dificuldades em compreender a pluralidade de propostas presentes nas linguagens negras e sua capacidade de estar interseccionada com as questões da atualidade.