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CAPÍTULO 2: Corpo em diáspora – Travessias da pesquisa

2.10 Alteridades em trânsito

Assumimos uma percepção de identidade cultural entendida como entidade em trânsito ou processo em andamento, balisadas pelas reflexões do sociólogo jamaicano Stuart Hall (1993). No ensaio “Cultural identity and diaspora”, o autor afirma:

Neste caso, ao invés de pensar em identidade como um fato dado, que as novas práticas culturais então representam, devemos pensar, em vez disso, na identidade como uma "produção", que nunca está completa, está sempre em processo, e sempre consitui-se desde dentro e não desde fora da representação. (Ibid.1993, p. 392. Tradução nossa)

Ao compreender a transitoriedade das identidades, admitimos ser importante não recair nas percepções pulverizadas e deslocadas da identidade cultural – uma tendência muito própria da pós-modernidade que decreta a fragmentação absoluta dos sujeitos concebendo instâncias como classe, raça e nacionalidade como fenômenos híbridos e indefinidos, supostamente impossíveis de serem discutidos de maneira palpável. Se por um lado as identidades não devem ser tomadas como pertencimentos sólidos e imutáveis, há identificações e escolhas definidas individual e/ou coletivamente.

Situada na discussão identitária, a proposta Corpo em Diáspora pretende desconstruir o essencialismo que aprisionou as identidades negras a lugares de pertencimento fechados e pouco plurais e abrir possibilidades de entendimentos sobre as comunicações que podemos tecer entre os universos afro-orientados e outros contextos culturais. Percebemos que essas noções essencialistas perpassam o imaginário social e tornam-se estratégias de controle paternalista quando assentadas nas instituições de educação. Lá a etnicidade torna-se circunstancial e, muitas vezes, oportunista, fruto próprio da citada lógica multiculturalista acrítica.

Corpo em Diáspora não é uma discussão sobre uma “dança para negros”, mas uma linguagem múltipla, alicerçada por epistemologias e cosmologias negras. Nela não há fronteiras rígidas de pertencimentos, pois primamos por uma mobilidade do lugar de enunciação. Assim, existe a perspectiva crítica acerca de uma história que negou à pessoa negra primeiramente sua humanidade, quando convertida em máquina produtiva, e no limite negou sua capacidade de produzir conhecimento. Aqui, a dança está inevitavelmente

atravessada pela política tornando-se o que Desmond (1994, p. 34) chama de “prática social onde identidades são acionadas”.

Mas este, que não é um trabalho de denúncia e sim de anunciação de propostas, tenta reverter os estigmas tanto pluralizando o direcionamento da proposta para todos os corpos, quanto apresentando epistemologias oriundas das matrizes civilizatórias de perspectiva africana que, por constituírem a brasilidade, devem ser entendidas em profundidade e apropriadas eticamente. Essa preocupação ética se faz imprescindível em virtude da facilidade com que tais propostas de educação corporal a partir de referenciais negros, a depender do espaço social por onde circulam, ganham contornos receptivos exotificados e podem, eventualmente, esbarrar em uma simples apropriação da pessoa não negra pela estética negra. E isso diz respeito a uma noção mais geral de identidade construída equivocadamente segundo a qual acredita-se que pessoas negras são dotadas de capacidades específicas e as pessoas não negras são ontologicamente desprovidas das mesmas. Este assunto exige um pequeno parênteses.

Ao abordarmos essa identidade brasileira que nega seu componente negro e não percebe os fluxos, relações e contradições, não perdemos de vistas o quanto se reifica, porém sem consequências desumanizadoras e aniquiladoras, a corporeidade construída em bases eurocêntricas que ora denominamos branca. A percepção de si, baseada nos valores eurocêntricos iluministas que fundam as noções de indivíduo e racionalidade, informam profundamente os padrões e comportamentos corporais e justificam supostas capacidades, limitações e habilidades inatas que são incorporadas no imaginário social. Assim, consideramos sintomático o equívoco de que pessoas brancas não são capazes de se apropriarem com profundidade das corporeidades negras. Ao priorizarmos uma prática consciente desses revezes, oferecemos aos dançantes ferramentas para que, ao dançar façam suas escolhas, priorizando a relação consciente e comprometida com a prática.

Retornando ao que assinalamos como herança da eurocentricidade no corpo, devemos lembrar que a racionalidade iluminista desconecta as pessoas de seus corpos enquanto espaços de conhecimento, ao mesmo tempo em que reforça determinadas ideias e comportamentos. Isso está diretamente relacionado com a ideia de colonialidade do gesto, já que esses padrões de comportamento impactam na maneira como movemos nossos corpos. Por que, por exemplo, enquanto cultura corporal, nos relacionamos tão mal com as áreas próximas da pelve e abdômen? Vemos que a rigidez provocada pelas formas eurocêntricas de escritas de si reverberam tanto no significado mais geral do corpo quanto no distanciamento com determinadas motricidades, como a da região pélvica. Como é importante perceber a fluidez

da coluna e a bacia? Como é importante ter a ciência do aterramento e da distribuição do pensamento por todo o corpo e não somente no cérebro, como faz crer a herança eurocêntrica? Pensar na identidade fluída do corpo em diáspora significa incorporar esse desafio de questionar o que nos leva a nos perceber como diferentes e o quanto isso limita nossa capacidade de compreender desde dentro.

O corpo não pode ser reduzido à mera fisicalidade orgânica, mas sim compreendido a partir de suas articulações com perspectivas de mundo e, portanto, construtos socioculturais determinados. Parece-nos pouco crível pensar corpo sem gênero, raça ou classe, fatores que atravessam e modificam a dança. Junto ao desafio de quebrar dualidades enfrentamos também a dimensão da fragmentação extrema das identidades. A busca por um equilíbrio entre as propostas pode constituir-se em um caminho para o reconhecimento de nossas múltiplas identidades e formas de existir. Acreditamos, portanto, que a pedagogia é um campo privilegiado de discussão sobre identidade e diferença.