• Nenhum resultado encontrado

A Lei Guizot: liberais e socialistas em defesa do ensino

4 A ANTESSALA DA EDUCAÇÃO NA COMUNA DE PARIS

4.1 DA LEI GUIZOT AO PROGRAMA DA ASSOCIAÇÃO DOS(AS)

4.1.1 A Lei Guizot: liberais e socialistas em defesa do ensino

A partir do trabalho de pesquisa realizado e exposto no primeiro capítulo desta tese, foi possível identificar a mudança da conjuntura histórica com a Insurreição de 1830. A Monarquia de Julho, uma espécie de monarquia constitucional, foi fruto de uma articulação entre a alta burguesia, a aristocracia financeira e a burguesia liberal, que tinham como objetivo inicial afastar as classes dominadas e a Monarquia francesa, os realistas, contudo acabam por recorrer a um antigo monarquista, orleanista, para encabeçar o poder. Contradições à parte, foi uma forma de afastar os mais “radicais” do processo, os trabalhadores e os republicanos radicais que se somaram aos liberais nas lutas de 1830, contra os realistas. Logo, trataram de isolá-los para não correr o risco de o poder mudar de mãos, ainda que isso significasse conceder espaço para os realistas. Já neste momento e refletindo as preocupações de conservar o poder nas mãos “corretas”, os liberais, numa lógica modernizadora, como forma de diferenciação da política realista da restauração, apresentava uma série de preocupações em relação à formação dos trabalhadores frente às novas necessidades do capital industrial. Conservar para modernizar, uma contradição em termos que, do ponto de vista educacional, revelava-se na Lei Guizot.

Parte da burguesia liberal esboçou tentativas para que as massas fossem instruídas. Todavia, segundo George Duveau (1948), estudioso do movimento operário do século XIX, que escreveu La penseé ouvrière sur l’éducation pendant la Seconde

République et le Seconde Empire, a proposta de instrução encontrava um duplo obstáculo:

de um lado, a burguesia conservadora; de outro, camponeses e trabalhadores, que não viam a escola no seu horizonte. A burguesia conservadora se aproximava, e muito, das concepções aristocráticas e atrasadas da monarquia francesa. Para estes, a ignorância dos trabalhadores era uma “salva guarda” dos seus privilégios, um povo instruído “é um povo desordeiro”. Entendendo a desordem como risco à “ordem” dominante, um desejo de ruptura com a atual condição de vida. Além disso, uma parte significativa dos trabalhadores e camponeses acreditava que a instrução, mesmo elementar, poderia levar as crianças a terem ambições impossíveis de satisfazer, dada as condições em que se encontravam. Entendiam que as crianças deveriam ganhar logo algum dinheiro e não perder tempo indo para a escola, culpavam a situação de miséria como imperativo (DUVEAU, 1948).

Nesse período dos anos de 1830-40, surge uma vanguarda dos trabalhadores que não assumia o discurso temeroso em relação à possibilidade de educar os seus filhos. O movimento socialista francês surge neste período e pauta a instrução e a educação para todos como uma bandeira política. Para estes, seria necessário afastar a ignorância e educar os trabalhadores para que lutassem pelos seus direitos. Nesse momento, essa vanguarda já começava a compreender que a burguesia liberal não se diferenciava substancialmente da monarquia realista e que teriam que “brigar” pelos direitos prometidos pela Revolução Francesa. O progresso da indústria provocava medidas favoráveis ao desenvolvimento da educação popular, aqui entendida como educação para o povo. Para os liberais, tratava-se de uma imposição da necessidade objetiva de desenvolvimento das forças produtivas, em que a mão de obra, a força de trabalho, assume centralidade. Contudo, ambos, socialistas e liberais, não entendiam que a Igreja, na figura do clero e na concepção confessional e moral da educação, deveria ser banida.

Em 28 de junho de 1833 foi lançada a primeira carta de ensino primário na França, denominada Lei Guizot. François Guizot foi ministro da instrução pública na época e aprovava a partir desta Carta que toda cidade, município, deveria ter uma escola primária,

assim como remunerar um mestre, que poderia ser laico ou eclesial, sob o comando do prefeito. Todavia, não obrigava a ser gratuito e tampouco, obrigatório o ensino.

Se foi previsto que os indigentes serão acolhidos gratuitamente, esta lei não contém nenhuma cláusula sobre a obrigação escolar, e isso evidência seus limites, ainda que no todo ela responda parcialmente ao chamado do partido do “movimento” e constitua uma primeira etapa do processo de escolarização das crianças na França. Mas, por seu turno, os republicanos mais avançados se colocam, todavia, com muita força na defesa de uma educação pública, obrigatória e gratuita (BATAILLE e CORDILLOT, 2010, p. 10).10

Mesmo com estas limitações, o número de escolas primárias cresceu em toda a França. Segundo Duveau (1948), de 308 municípios existentes, apenas 67 não possuíam escolas comunais, e apesar de a maioria dos municípios terem escolas em seu território, a educação de meninas foi negligenciada. Em grande parte, estas escolas eram coordenadas e dirigidas pelos religiosos, o número de escolas congregacionistas aumentou muito entre os anos 30 e 40. Contudo, foi o que até então existiu de mais progressista e liberal em matéria de ensino na França, ainda que fortemente marcado pela relação Estado-Clero, que não se dissociou ao longo dos anos de 1840.

Os trabalhadores organizados, socialistas na sua grande maioria, influenciados pela doutrina de Saint-Simons, não possuíam um sentimento anticlerical. Exceto por Blanqui e Dezamy, que já nos anos 30 propagandeavam a necessidade da “liberdade de consciência” e, portando, de crença religiosa, no sentido de construir uma defesa em torno do materialismo ateu; mas eram raros os socialistas que partilhavam desta tese. “Muitos socialistas acreditavam em Deus e sonhavam com uma república regida pelos ‘princípios

10

“S’il est prévu que les indigentes seront accueilles gratuitement, cette loi ne comporte aucune clause d’obligation scolaire, et as portée reste de ce fait limitée, même si au total elle répond partiellement aux attentes du parti du “mouvement” et constitue une première étape dans le processus de scolarisation des enfants de France. Mais de leur côte, les républicains les plus avancés ses prononcent désormais avec force pour une éducation publique, obligatoire et gratuite”

evangélicos’” (FROUMOV, 1948, p. 20)11. Um artigo divulgado em 1844 no jornal L’Atelier expressava a posição dos trabalhadores católicos:

Depois de 1830, e durante alguns anos, o medo existente em relação ao clero se mostrava modesto, a velha hostilidade contra o catolicismo desaparecia rapidamente; os livros antirreligiosos que tanto fizeram sucesso durante a Restauração não eram mais procurados e uma feliz reação era operada sobre os espíritos. Mas o poder, que considera uma vantagem a influência do clero, rapidamente é recuperado, começa-se a acreditar que existia um abismo entre esta situação e as revoluções, as reivindicações cresciam com tamanha e louca rapidez, sendo vistas hoje o como ameaças ao poder vigente. (DUVEAU, 1948, p. 29).12

Apesar da posição de defesa da moral cristã, enquanto valor universal, não material, desenvolvem uma crítica à relação deste poder, confessional, com o poder temporal, identificando, como consequência, o abismo existente entre as reivindicações políticas dos trabalhadores existentes e o poder vigente. O risco e a ameaça existentes daqueles que estão no poder se apropriarem dos valores cristãos de maneira oportuna estariam presentes e numa perspectiva crescente. A doutrina de Blanqui e seus seguidores, no que se refere ao ateísmo e ao Estado laico, não conseguiu adentrar as massas e influenciar o conjunto dos trabalhadores nos anos de 1840, todavia, os republicanos radicais, os socialistas e os liberais tinham entre suas reivindicações o direito a educação primária para todos e todas, como veremos presente nos momentos posteriores do Governo Provisório, de julho de 1848, ou mesmo durante a Segunda República, através da Lei Falloux e da Liga dos Educadores Socialistas. Estes, os

11 “Beaucoup de socialistes croyaient en Dieu et souhaitaient une république régie par les ‘principes

évangéliques’”

12

“Après 1830, et pendant quelques années où, tenu dans la crainte, les clergés ses monstra modestes, la veille hostilité contre le catholicisme s’évanouissaient rapidement; les livres antireligieux qui eurent tant de succès sous la Restauration n’étaient plus recherchés et une heureuse réaction s’opérant dans les esprits. Mais le pouvoir, ayant songé à profiter de l’influence du clergé, celui-ci, aussitôt qu’il se vit recherché, commença à croire que l’abime des révolutions était à tout jamais fermé, et ses prétentions croissant avec une rapidité qu’on peut appeler folle, il est venue aujourd’hui à être presque menaçant.”

blanquistas, viriam a lograr êxito posteriormente e influenciar os rumos e as formulações futuras dos trabalhadores franceses em relação à educação. Mas até a Segunda República, o elemento do humanismo cristão se fez presente entre os liberais e os socialistas, todavia, esses últimos defendiam a moral cristã, e não necessariamente o aparato da igreja para a manutenção do poder hegemônico.