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OS LIMITES E AS INSPIRAÇÕES DA COMUNA: PARA ALÉM O

3 ANÁLISE SOCIOLÓGICA DA COMUNA DE PARIS DE 1871

3.3 OS LIMITES E AS INSPIRAÇÕES DA COMUNA: PARA ALÉM O

Para além do debate sobre partido, outras questões foram apresentadas no intuito de tirar as lições necessárias ao fortalecimento da luta de classes dos proletários, a partir da experiência concreta. Apesar de focos diferenciados, questões como a liberdade de imprensa, a organização das eleições pelo sufrágio universal, o problema do nacionalismo francês, a política para os bancos e reféns foram identificados como lacunas significativas.

Para Lissagaray (1995), a permissão da liberdade de imprensa e a fragilidade na construção de um novo conjunto de ideias capazes de representar solidamente o novo projeto social foram os principais problemas da Comuna. Segundo Lissagaray, os jornais de Versalhes espalhavam calúnias e mentiras sobre a Comuna, inclusive, em Paris, propagandeavam essas ideias. O objetivo era convencer a população francesa de que os communards não passavam de usurpadores e antidemocráticos. A primeira nota do

Journal L’Officiel, da Comuna, questionou como poderia haver uma “imprensa tão injusta,

ao ponto de caluniar, injuriar e ultrajar estes cidadãos? Nunca será permitido trabalhar por sua emancipação?” (LISSAGARAY, 1995, p. 105). Lissagaray (1995) traz relatos literais de vários jornais, dentre eles Le Figaro que, “pintavam Paris como o pandemônio de todos os bandoleiros da Europa” (p. 146), espalhando mentiras sobre o processo com o objetivo de desgastar e desconstruir a construção de uma nova democracia, que surgia na Comuna e que não deveria se espalhar. Estes relatos denotaram o quanto era frágil a avaliação do poder do inimigo, a caracterização do mesmo, não sendo estes apenas os versalhenses, mas a classe dominante do mundo todo, como bem citou Marx em A guerra civil na

França (2010). Seria possível pensar em alguma possibilidade de justiça vinda de

orquestrados pela imprensa aponta a frágil compreensão da articulação entre as ideias dominantes e as classes dominantes. Como bem apontou Gramsci (SADER, 2010), o partido da classe trabalhadora deve conhecer bem a realidade, sob a pena de perder a luta.

Lissagaray (1995) critica um certo romantismo, residual, e a frouxidão na condução destes processos, como o acima citado, e, a exemplo da Comissão de Justiça, em que criticou o fato de não condenar os magistrados de Versalhes, que do “alto de uma outra classe” condenava os operários à morte. De acordo com Lissagaray (1995), às comissões de justiça, trabalho e comércio, e educação cabia a tarefa de “divulgar a filosofia da Revolução” (p. 177). Tarefa esta de grande importância tanto para a construção da nova sociedade que estava sendo gestada quanto para a disputa ideológica com as concepções e ideias da sociedade capitalista. Sobre a delegação de Educação, subscreve que a mesma teria a “obrigação de escrever um das mais belas páginas da Comuna” (LISSAGARAY, 1995, p. 188), mas apresentou limites, assim como as outras. Tirou os crucifixos das escolas e fez um apelo a todos que haviam estudado questões educacionais para que colaborassem com a Comuna, de modo mais revolucionário, incluíram o ensino a mulheres como obrigatório, proibiram o empréstimo dos livros, acabando com os privilégios e abriam os museus ao povo. Reafirma Lissagaray (1995) que nada se saberia sobre educação sem as circulares municipais. Apesar de não terem um programa completo, prescreveram que utilizaram o método experimental científico, donde partiriam sempre dos fatos físicos, morais e intelectuais (LISSAGARAY, 1995). Tais elementos serão melhor detalhados no quinto capítulo desta tese. A comissão de trabalho havia sido composta quase que exclusivamente por socialistas revolucionários7. Entretanto, esta tarefa, a de construir as bases para uma nova sociedade através da luta ideológica por via das comissões, foi muito prejudicada diante da necessidade de combater o exército de Versalhes. Para Lissagaray

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Neste momento Lissagaray não define os socialista revolucionários, todavia, ao longo da construção do seu texto, define-os como sendo membros da pequena burguesia, profissionais liberais, que aderiam à causa da Comuna: pequenos burgueses, empregados, professores, contadores, médicos, advogados, jornalistas.

(1995), salvo a delegação do trabalho e comércio, “onde se tentou fazer alguma coisa, as outras delegações fundamentais foram insuficientes” (p. 182).

Além de não censurar a imprensa burguesa e liberal, e a insuficiência do trabalho nas comissões em garantir a consolidação de uma nova filosofia ou ainda ideologia socialista, Lissagaray (1995) constatou que os decretos produzidos, as usurpações de poder e a frouxidão das deliberações serviram de pretexto para a fração radical-liberal eleita na Comuna. A própria eleição foi identificada por Lissagaray (1995) como uma questão a ser reconsiderada. De fato, as eleições de 26 de março mostraram o quanto o povo de Paris apoiava a Comuna, contudo, seu processo de organização e a eleição de uma pequena fração de liberais fez com que a Comuna perdesse tempo com um certo legalismo burguês – do sufrágio universal – em vez de se armar contra Versalhes e expropriar o Banco da França. Não que uma coisa excluía a outra em princípio, entretanto, excluiu, pois se tratava de uma concepção de construção de um novo poder ainda sobre influência do debate democrático burguês.8 De modo concreto, enquanto organizavam as eleições, segundo Marx (2003c), retardou a possiblidade de avançar sobre Versalhes e ocupá-la, abrindo flancos para um contra-ataque.

O esforço da legalidade subsumiu a necessidade em dar um golpe definitivo no governo de Versalhes. Se, por um lado, as eleições eram uma forma de legitimar o poder operário, por outro, evidenciavam a fragilidade da direção revolucionária neste processo, elementos que indicam as razões da semana sangrenta, uma vez que a ditadura do proletariado, através do Comitê Central, dava condições legais e democráticas, no que se refere ao desejo da maioria, de tomar as decisões necessárias para enfraquecer o poder da burguesia deposta. Entretanto, Trotsky (2002) afirma que a “Comuna foi a negação viva da democracia formal, porque, em seu desenvolvimento, ela assinou a ditadura da Paris operária...” (p. 166)

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Segundo P. Luquet (1968), para os blanquistas, as massas eram incultas, e por isso o governo não seria derrubado por um processo de conscientização dos trabalhadores, mas, sim, por uma conspiração. Não haveria um programa para a revolução econômica, esta deveria estar subordinada à revolução política. Isso explicaria a demora em controlar o Banco da França como tática deste processo de transição.

Marx e Engels (1986) corroboram a tese de Lissagaray, apontando os elementos de fragilidade de uma leitura mais estratégica do processo. A política do sufrágio universal assim como a não censura dos jornais burgueses ou o fato de não ter tomado para si o Banco da França se tornaram obstáculos importantes à vitória e à consolidação da Comuna. A questão financeira e o não controle dos recursos e da riqueza da França, fez com que Versalhes soubesse utilizá-lo com maestria ao necessitar utilizá-lo contra os communards. A seção francesa da internacional (AIT) foi dirigida pelos proudhonianos, isso explicaria parte do problema, pois, às vésperas da Comuna, não possuíam um programa definido com metas, objetivos, reivindicações e clareza de medidas radicais frente à necessidade estratégica de ruptura com o sistema capitalista9. Todavia, o número de blanquistas na França e dos seguidores de Blanqui era bastante significativo, como veremos mais adiante, no quarto capítulo.

As lacunas encontradas no programa econômico, a exemplo do Banco da França, que não foi expropriado, violentamente, pelos communards, já haviam sido apresentadas nos textos de Marx e Engels, a exemplo do Manifesto Comunista (2010), no qual aparece a necessidade de “centralização dos créditos na mão do Estado por meio de um banco nacional com capital do Estado e monopólio” (MARX e ENGELS, 2010, p. 58). Ainda que não houvesse uma reflexão sobre o papel do Estado, na mão dos proletários organizados, só possível pela experiência da Comuna, havia clara indicação sob a necessidade de ter o monopólio dos bancos. Entretanto, estas teorias ainda não haviam se enraizado em parte da classe trabalhadora, dirigente da Comuna de Paris, ainda estavam demasiadamente centralizadas da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), não fazendo ainda parte da consciência coletiva dos trabalhadores.

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Para além da inexistência de um programa, o tempo utilizado, cerca de dez dias para a realização pelo sufrágio universal da eleição dos membros da Comuna fez com que alguns burgueses tivessem sido eleitos, mesmo que depois tenham abandonado os postos. Para ele, durante a organização das eleições, o Comitê Central não tomou nenhuma atitude por respeito ao sufrágio e acabou por não tocar nos bilhões do Banco da França e nem na propriedade privada, mesmo num momento em que, segundo Luquet, o exército revolucionário achava-se desprovido de tudo. Ainda, referenciando-se em Luquet, não houve uma limitação em relação à liberdade de imprensa, o que foi apontado também por Lissagaray, facilitando a tempestade de calúnias espalhada por Versalhes.

Em sua indignação cega, a Comuna não enxergava os verdadeiros reféns, que saltavam aos olhos: o Banco, o registro de propriedades: o Tesouro, a Caixa de Depósito e Penhores e, com isso, tinham em seu poder os genitais de Versalhes. (LISSAGARAY, 1995: 156)

A política de refém, também negada pelos communards, foi duramente criticada por diversos autores, dentre eles Trotsky. O fato de Thiers e outros dirigentes da burguesia não terem sido perseguidos quando os trabalhadores parisienses tomaram o poder, foi identificado como sendo um problema. Todavia, só não foi mais grave por ter deixado de visualizar os reféns centrais, que não poderiam ter sido subjugados. Os bancos e o capital financeiro. Toda ideologia tem sua base material e necessita de recursos para sua consolidação. Para Lissagaray (1995), assim como para Marx (2003c), não tocar no Banco da França era um princípio para os communards. Arrecadavam dinheiro através da solidariedade internacional e entre os próprios membros da Comuna para tocar as comissões e as tarefas necessárias.

Enquanto a Comuna obtinha apenas o suficiente para não morrer, o Banco da França aceitava 257,63 milhões de francos em letras de câmbio emitidos contra ele por Versalhes para combater Paris. (LISSAGARAY, 1991, p. 178)

Trotsky (2002), em debate com Kautsky, para além de corroborar com as teses acima, aponta mais um elemento capaz de identificar as lacunas dos communards, o nacionalismo francês. Segundo ele, o nacionalismo francês conseguiu suplantar parte do germe internacionalista existente da luta de classes que estava se consolidando nas consciências. O patriotismo francês conseguiu dominar boa parte dos dirigentes da Comuna, o que dificultou a inserção da Internacional dos Trabalhadores para além da seção francesa, como já mencionado.

Questões como a liberdade e imprensa, as eleições que foram organizadas, a política de reféns, a fragilidade política e organizativa das comissões, a não expropriação do Banco da França aparecem como elementos da discussão sobre o que Lissagaray chamou de “frouxidão” nas deliberações. Tratou-se de uma falta de clareza das táticas engendradas para a estratégia em curso – que era o governo dos trabalhadores, ou, ainda, a ditadura dos trabalhadores. Todavia, independentemente dos limites, a Comuna provou a possibilidade de conquista (construção-destruição) do poder pelos trabalhadores, sendo estes limites elementos a serem estudados para os processos futuros. Nesse sentido, e com esse espírito, Trotsky defendeu a tese de que a Comuna influenciou a tomada do poder pelos trabalhadores da Rússia em 1917. Para ele, a heroica Comuna e sua queda deram condições para a dedução dos erros e acertos desta experiência histórica, para que estes já não se repetissem.

Veneramos a lembrança da Comuna a despeito de sua experiência demasiadamente restrita, da falta de preparação de seus militantes, da confusão do seu programa, da ausência da unidade entre os seus dirigentes, da indecisão dos seus projetos, dos problemas excessivos na execução e dos desastres espantosos que deles fatalmente resultou. Saudamos na Comuna – segundo uma expressão de Lavrov – a aurora, ainda pálida, da primeira república proletária. (TROTSKY, 2002, p. 151).

Para Trotsky (2002), a despeito desta experiência restrita e da falta de preparação dos seus militantes, da ausência de um programa e de unidade entre os dirigentes, o que podemos entender como a ausência de um partido capaz de aglutinar e compor uma unidade da classe, a Comuna teria sido a “aurora, ainda que bem pálida, da Primeira República Proletária” (p. 151). Ou seja, no debate sobre a Comuna ser o crepúsculo das insurreições republicanas, tese esta já flexibilizada pelo seu grande defensor Rougerie (2001), versus a tese da aurora da Revolução de 1917, Trostky talvez seja o autor que melhor define, de maneira mais sútil, ao mesmo tempo que altamente rigorosa, o que se

configurou a Comuna de Paris – ou seja, a aurora, ainda que bem pálida, da primeira república proletária. Pálida diante da inexistência de um partido, de uma classe operaria “filha do seu tempo”, da inexistência de um programa estratégico, mas que todavia foi capaz de apontar o caminho, os elementos de ruptura radical com o Estado burguês capitalista.

3.4 O PROCESSO PEDAGÓGICO DA COMUNA DE PARIS: AS LIÇÕES IMPORTANTES