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2 A NARRATIVA E SEUS GÊNEROS

2.5 A leitura de gêneros literários narrativos

O ato de ler pressupõe o texto – um tecido, trama, tessitura, encadeamento de palavras – pelo qual se escreve o mundo. Porém não é o mero deciframento que constitui a leitura. Esta acontece a partir do texto, atribuindo-lhe significado, relacionando-o com outros textos significativos, num movimento de inter e intratextualidade. Nesse vai e vem, texto e leitor estabelecem uma relação que pode ser entendida como uma forma de interação. Contudo, nessa relação falta a situação face a face, própria de outras formas de interação social, e o leitor não consegue, algumas vezes, ter a certeza de que sua

compreensão é acertada. No entanto, por mais que esse leitor encontre espaços ou vazios que possam dificultar a compreensão, também encontra pistas, as quais contribuem para que ative a imaginação e que concretize o processo de comunicação.

Segundo Iser e Warning (1989, p.150), no processo de leitura, “o leitor somente obtém satisfação quando põe em jogo sua produtividade, e isso somente ocorre quando o texto oferece a possibilidade de exercitar nossas capacidades”. Quando isso acontece, a leitura se torna prazerosa. O texto só existe na medida em que é lido, de maneira que autor e leitor participam num jogo imaginário. Conforme se vai avançando na leitura, o que já foi lido se instala na lembrança e configura um novo marco para a expectativa do leitor.

O texto é dinâmico e devido a isso, geralmente, não pode oferecer ao leitor o objeto que narra de uma forma completa. Normalmente, existem vazios e indeterminações a serem preenchidos exigindo, desse modo, uma participação ativa do leitor. Segundo Iser (1999), o texto literário tem uma pluralidade de significados, ao longo da história e dentro de alguns limites, que marca a própria narração. No âmbito didático, o aluno opera com sua memória de leituras prévias, em menor ou maior grau, para entrar no mundo da ficção literária. Contudo, cada leitura é diferente, já que cada estudante traz na bagagem seus conhecimentos prévios, que determinarão as estratégias metacognitivas dos comportamentos de leitura, quais sejam: definir o objetivo, identificar segmentos importantes, concentrar a atenção em determinados tópicos, corrigir o rumo (divagação, distração, interrupção), dentre outros. Nesse sentido, pode-se dizer que toda leitura é um ato criativo.

Bakhtin (2011, p.265) considera que “no âmbito da literatura de ficção os diferentes gêneros são diferentes possibilidades para a expressão da individualidade da linguagem31”. Nesse sentido, os gêneros narrativos literários constituem um excelente meio para iniciar os alunos na leitura e na produção escrita de textos. García García (2008, p. 138) afirma que se podem estudar os gêneros para “observar sua macroestrutura e como ponto de partida para entender o gênero em seu contexto”. Para a autora, a aprendizagem do estudante se desenvolve em quatro âmbitos de uso da língua, quais sejam: o pessoal, o público, o profissional e o acadêmico. Por certo, a escolha de determinado gênero depende, diretamente, dos objetivos que se tenha.

31 Para Bakhtin, a linguagem é dialógica por natureza. A individualidade se manifesta nas escolhas dos elementos que compõem os enunciados e que se relaciona com o estilo. Esses elementos, por sua vez, podem estar mais ou menos aptos a expor a individualidade do sujeito. Os gêneros literários são propícios a um estilo individual, como a fábula, por exemplo, que apresenta uma estrutura tipicamente marcada e facilmente reconhecida, envolvendo personagens e uma moral da história.

No presente trabalho, com o objetivo de levar o aluno a produzir uma narrativa pessoal na língua espanhola, a leitura de textos eminentemente narrativos, como por exemplo, as histórias infantis, os contos e as fábulas, proporcionaram, supostamente, o conhecimento da macroestrutura da narrativa, que tornou possível a familiarização com as características próprias dos diferentes gêneros narrativos. Além disso, o estudo desses gêneros possibilitou, aos estudantes, analisar aspectos gramaticais, discursivos e pragmáticos que viriam a permitir-lhes utilizá-los em situação de produção escrita.

Os contos, por exemplo, especialmente os breves ou curtos, como são chamados, têm como objetivo conduzir o leitor para além do dito, para a descoberta do sentido do não dito. Neles, a ação, ao contrário dos textos narrativos construídos por uma estrutura clássica ou mais longa, torna-se ainda mais reduzida. Surgem os monólogos e a exploração de um tempo interior ou psicológico. A linguagem, algumas vezes, pode chocar pela rudeza ou pela denúncia do que não se quer ver. A construção dramática tradicional, comum nas narrativas longas, que exigia um desenvolvimento, um clímax e um desenlace, desaparece. Contudo, demanda-se a participação do leitor na observação e percepção dos aspectos constitutivos da narrativa.

Piglia (2001, p.27), referindo-se a uma forma reduzida do conto, considera que este “se constrói para fazer aparecer artificialmente algo que estava oculto. Reproduz a busca sempre renovada de uma experiência única que nos permita ver, sob a superfície opaca da vida, uma verdade secreta.” Assim, as qualidades que lhe são atribuídas são a concisão e a brevidade, isto é, se estrutura com uma linguagem densa com a máxima economia de palavras. Contudo, sua dimensão aparece no sentido de profundidade, especialmente, quando o conto projeta uma situação humana. Adam (1997) define a estrutura do conto considerando a ação, o tempo e a sequência narrativa.

Assim, no conto, a estrutura é essencialmente objetiva, horizontal e narrada em primeira ou terceira pessoa; as metáforas devem ser compreendidas, de forma imediata, pelo leitor; o diálogo é um componente importante com predominância do diálogo direto, que permite uma comunicação imediata entre o leitor e a narrativa; quanto à narração, esta deve aparecer de maneira proporcional ao diálogo; a trama deve ser linear e objetiva; os eventos devem ser cronológicos, de maneira a fazer com que o leitor veja os fatos que se sucedem de forma contínua ou semelhante à vida real. Por fim, o conto deve surpreender o leitor.

Já a fábula, segundo Smolka (1995), é um texto predominantemente narrativo que descende do conto. Assim como nos contos breves, nas fábulas – textos vivos que

permanecem populares depois de decorridos vários séculos – observa-se uma estrutura narrativa elaborada. Em sua origem, era um texto oral contado às pessoas em situações informais do dia a dia. Narrando situações vividas por animais, mas que aludem a situações humanas, a fábula tem por objetivo transmitir certa moralidade. Desde a sua origem até os dias atuais, passou por várias fases: do oral ao texto escrito, do verso para a prosa e vice- versa, da época clássica à contemporaneidade.

Além disso, Sousa (2003, p.3) considera que a fábula tem o “objetivo de explicar comportamentos e situações da vida prática cotidiana, chegando mesmo a sugerir soluções, principalmente no campo da convivência social”. É um texto que trabalha tipicamente com atitudes, comportamentos, condutas e valores do ser humano. Ao abordá-los, relaciona-se diretamente com a sociedade, com o contexto e com a cultura.

Ainda segundo Sousa (2003), foi Esopo, lendário fabulista grego, quem primeiro utilizou a fábula para criticar, divertir, moralizar e ensinar; e através dele teve o reconhecimento como um gênero específico. Vários autores usaram-na também em seus estudos e pesquisas em diferentes áreas do conhecimento (SERAFINE, 2004; PONTES, 2008; ARANTES, 2006 e 2008; VILELA, 2002, dentre outros). Para Coelho (1982), a fábula, ao mesmo tempo em que diverte e instiga aos leitores, busca educá-los. Isso a inscreve, desse modo, na área pedagógica. Na SD (Cap. 4, tópico 4.3) que compõe o presente trabalho de pesquisa, a fábula foi utilizada como gênero textual narrativo com finalidade didática voltada, principalmente, para a leitura e produção textual em língua espanhola. Serviu, também, como uma ferramenta para promover a reflexão e o desenvolvimento do conhecimento individual, por meio do enriquecimento linguístico e cultural. Buscamos, na fábula, verificar como se organiza a estrutura composicional desse gênero textual, e como os significados são construídos por intermédio dessa estrutura.

Collie e Slater (1992, p.3) afirmam que todo texto literário é valioso material autêntico, já que seu sentido não é estático. É capaz de atravessar as fronteiras do tempo e do espaço, de dialogar com culturas de países diferentes, em diferentes épocas. Por suas características e variados estilos de escrita, os textos literários favorecem uma leitura prazerosa, contribuindo, assim, com essa habilidade; proporcionam base para a expansão de vocabulário; possibilitam discussões orais já que envolvem emoções, e favorecem a produção textual, na medida em que promovem o aumento da motivação. Incitam, também, o pensamento crítico e criativo, contribuindo para o conhecimento de mundo, e para a consciência da existência de conflitos humanos. No âmbito didático, demonstram

aos aprendizes a importância da forma na aquisição de objetivos comunicativos específicos.

Chagas (2007, p.371) considera que as narrativas literárias possuem elementos potencializadores, como, por exemplo, “o desenvolvimento da imaginação criadora, a palavra poética, metafórica, entre outros aspectos”. Em outras palavras, a autora reafirma o uso dos gêneros narrativos literários em situações didáticas dizendo que:

As narrativas literárias são as que potencializam os aspectos e os saltos qualitativos que permitem ir além do plano da cotidianidade, ampliando e estendendo as diversas possibilidades do uso da palavra e o desenvolvimento da capacidade criadora (imaginação e fantasia), entre outras questões. (CHAGAS, 2007, p.371)

Nessa perspectiva, as ideias da autora são corroboradas em Bakhtin/Volochinov (1988, p.123) no sentido de que através das narrativas, a língua se manifesta pelo “fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua”, já que não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas.

Schneuwly e Dolz (2004, p.23) ressaltam que os gêneros textuais, por suas características, podem servir de base de orientação para uma ação discursiva. Na escola, eles são um instrumento de ensino/aprendizagem. Define-se a escolha de um gênero de acordo com o que se necessita dizer, pois eles têm “certa estrutura definida por sua função”, e um plano comunicacional cujo elemento é o estilo. Assim, por meio de gêneros, o aluno será capaz de construir novos conhecimentos, novos saberes socialmente elaborados, que dentro de uma perspectiva sociointeracionista darão forma à atividade de linguagem. Esses autores consideram que os gêneros, em geral, podem ser transformados em gêneros escolares, por meio de situações comunicativas que reproduzam práticas de linguagem vivenciadas num contexto real.

Essas práticas de linguagem oportunizam, desse modo, ao alunado, o domínio de um dado gênero. Assim, por exemplo, a exposição dos alunos aos gêneros narrativos quais sejam: os contos, as fábulas ou as histórias infantis, fará com que acessem as características próprias de cada um deles. Vale recordar que com os formalistas russos, a interpretação deixa de ser o único meio de análise dos textos ficcionais, e iniciam-se os estudos da estrutura da forma narrativa.

Nesse sentido, o acesso e posterior apropriação das características dos gêneros narrativos representam subsídios importantes para as atividades práticas de produção

textual escrita, na medida em que contribuem, inicialmente, para o desenvolvimento da capacidade linguístico-discursiva, que é responsável pelo domínio das estruturas e funções gramaticais dentro de determinado gênero, considerando-se os mecanismos de textualização e os enunciativos; e também, para o aperfeiçoamento de outras capacidades, como por exemplo, a de relatar e de narrar acontecimentos, gerando como resultado o desenvolvimento da própria habilidade da escrita.

Assim, no presente Capítulo, discorremos a respeito dos vocábulos: narrativa e narração, e abordamos estudos relacionados à estrutura dos gêneros da narrativa; mostramos semelhanças estruturais entre narrativas literárias e narrativas pessoais; e evidenciamos a importância da leitura, e de se conhecer a linguagem que caracteriza os gêneros textuais literários narrativos, que utilizamos como exemplos ou modelos na SD. Já no Capítulo 3, a seguir, abordaremos de maneira específica, as narrativas pessoais como gênero textual e sua estrutura.