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3 NARRATIVAS PESSOAIS COMO GÊNERO E SUA ESTRUTURA

3.2 As narrativas pessoais e sua caracterização como gênero textual

As narrativas foram abordadas por muito tempo nas escolas como um gênero literário. A publicação dos estudos de Labov e Waletsky (1967) a respeito da importância de contar histórias, e de narrar experiências pessoais nas conversações do dia a dia, despertaram o interesse da Linguística, e a partir desses estudos houve um número

crescente de publicações. Assim, o modelo de análise de narrativas de Labov e Waletsky (1967), e de Labov (1972) serviu de base para os trabalhos dos autores: Adam (1992), Adam e Lorda (1999), Barthes et al (1972), Pratt (1977), Prince (1983), Polanyi (1979), Tannen (1982), Silveira (2006) entre outros, e representa, na contemporaneidade, uma fonte importante de reflexão a respeito da macroestrutura do texto narrativo.

No tocante às narrativas pessoais, como prática de contar e recontar experiências pessoais, segundo Silveira (2006, p.89), “são formas muito importantes de afloramento da subjetividade e da conscientização sobre as nossas identidades pessoais, culturais, sociais e políticas que são construídas, reconstruídas e ressignificadas ao longo das nossas vidas”. Acreditamos que, os alunos-colaboradores, ao produzir uma narrativa pessoal escrita, buscarão as informações de que necessitam no seu entorno, nos acontecimentos do dia a dia, que podem fazer parte de um passado mais (ou menos) recente. E, assim, a história contada/narrada vai expor, não apenas, as características relacionadas ao ambiente em que vivem: a sua cultura e/ou as suas crenças e tradições, como também o nível linguístico- discursivo inerente a cada um.

No âmbito acadêmico, as narrativas representam um recurso didático importante, tanto para exemplificar quanto para instruir. Por meio delas, pode-se analisar, (re) construir os valores culturais, identificar diferentes formas de expressão ou de relações sociais, variações linguísticas, entre outros dados importantes, que estão presentes nos dados orais, e que são, algumas vezes, repassados à escrita. Todos esses aspectos podem ser encontrados nas produções textuais escritas pelos alunos-colaboradores.

Numa visão didática, utilizar, inicialmente, exemplos de textos em formato de narrativas orais e de narrativas escritas, como estratégia de ensino, para que os estudantes exercitem a escrita, como prática de sala de aula, representa um passo para que venham a construir bons textos narrativos, desde que se encontrem motivados. Com efeito, as narrativas pessoais, ou seja, contar/narrar fatos, ocorrências, causos, episódios que vivenciamos, é uma prática inerente às interações humanas.

Nas narrativas pessoais, algumas estruturas buscam chamar a atenção ou solicitar uma resposta do leitor, ou mesmo certificar-se da participação desse leitor no momento da interação, como por exemplo: você entendeu? Você não acredita o que foi que me aconteceu! E esta foi a melhor parte! Essas falas, que são características da linguagem oral, costumam aparecer, espontaneamente, nas narrativas escritas. Os alunos-colaboradores, algumas vezes, têm dificuldades para identificar estruturas que são próprias da linguagem oral, utilizando-as sem justificativa na escrita. Contudo, as estruturas orais, em alguns

casos, podem aparecer compondo, por exemplo, a fala de um personagem, mostrando a sua força, podendo, assim, vir a enriquecer o texto escrito produzido.

Segundo Cassany (1997, p.101), toda a composição de um texto exige que se tenha um planejamento. A macroestrutura da narrativa mostra que a escrita de um texto narrativo segue um determinado padrão estrutural, que nos leva a pensar, entre outras coisas, sobre qual é o assunto do texto, quais são os personagens, quando acontece ou sucedem os fatos, em que lugar, o que aconteceu e como foi concluída a história.

Pratt (1977, p. 72) afirma que “as narrativas de experiência pessoal pertencem ao nosso modo de falar mais informal, ordinário, cotidiano, conversacional e prosaico. Elas são o que há de mais trivial na conversação trivial”. Contudo, em seu formato escrito, as narrativas pessoais são um gênero complexo e que está sempre aberto a retextualizações, avaliações e (re) significações. Esse gênero textual, por envolver um tipo de interação social, geralmente implica certo envolvimento emocional. Desse modo, essas narrativas são significativas para quem às produz, por isso são extremamente motivadoras para a prática da escrita no ensino de línguas, tanto materna como estrangeira.

Além disso, o gênero textual narrativa pessoal se caracteriza, assim como os demais gêneros da narrativa, pela exposição de “fatos” reais ou imaginários. Desse modo, abrange duas realidades distintas: os eventos e as ações. Estas se caracterizam pela presença de um agente humano, o qual narra fatos ocorridos consigo mesmo, mas que podem envolver pessoas, objetos, animais, coisas, dentre outros. Os eventos costumam ter uma causa que também pode ser real ou imaginária; e a construção da narrativa segue certa estrutura hierárquica, demonstrada por Labov (1972), nas narrativas orais de experiência pessoal pelos elementos (3.4.1) que constituem sua microestrutura, os quais aparecem, também, nas narrativas pessoais escritas.

Assim como nas narrativas orais, também nas narrativas escritas, as relações entre os tempos verbais (3.3.1) tornam-se importantes, especialmente porque é a partir delas que se dá o encadeamento das ações, e a progressão temporal necessária à organização textual, que são características específicas do gênero narrativo. Podem surgir, também, na estrutura interna do gênero narrativa, estruturas ou sequências descritivas (3.3.2.1) e dialogais (3.3.2.2), porém esse tipo de estrutura não costuma ser de uso frequente no gênero textual narrativa pessoal.

Schneuwly e Dolz (2004, p.61) consideram que o gênero textual “é utilizado como meio de articulação entre as práticas sociais e os objetos escolares, mais particularmente no domínio do ensino da produção de textos orais e escritos”. Esta visão

evidencia que um trabalho específico, num contexto didático de ensino de espanhol como língua estrangeira, com o uso da narrativa pessoal como gênero textual, pode garantir que a língua seja compreendida como prática social; e o texto formado por sequências, as quais são definidas tendo em vista os parâmetros da situação (ADAM, 1992; BRONCKART, 1994; SCHNEUWLY e DOLZ, 2004; KOCH, 2006a, dentre outros).

Nesta perspectiva, entendemos que as práticas sociais são um lugar em que, o individual e o social de cada pessoa, se manifestam através da linguagem, por meio de estratégias como: produzir, compreender, interpretar e/ou memorizar enunciados escritos. Isso implica as mais diversas capacidades do individuo, tais como a capacidade de ação; a capacidade discursiva; e a capacidade linguístico-discursiva. Polanyi (1982, p. 51) corrobora afirmando que existe um “inter-relacionamento entre pessoas que contam histórias no dia a dia, seus interlocutores, e o texto que é produzido”. Isso funciona como um constituinte das práticas sociais nas quais os indivíduos se encontram inseridos. Afirma Polanyi (1979, p. 210) que “contar histórias é um ato social”, já que compartilhamos experiências e eventos uns com os outros.

3.2.1 A narrativa pessoal como gênero textual na escola

A escrita, tanto em língua materna (LM) quanto em língua estrangeira (LE), é uma habilidade que envolve, como já vimos (Cap.1), grande complexidade. A principal característica da narrativa de experiência pessoal, como escreve Labov (1972, p. 355) é que “os locutores se consagram inteiramente a reconstruir, viver e reviver acontecimentos do passado”. Na escrita, a produção de uma narrativa pessoal não se dá da mesma forma como se processa na produção oral. O aluno-colaborador produzirá levando em consideração as características do gênero e designará quem será o interlocutor. Por mais que esse interlocutor não responda, isso não impede o desenvolvimento da narrativa.

Para Weinrich (1968, p.7), “também se narra fora da literatura. O narrar é um comportamento característico do homem. Podemos comportar-nos frente ao mundo narrando-o”. Contudo, ao produzirmos uma narrativa escrita, as proposições tem que ser consistentes, senão a história parecerá incoerente, o narrador não merecerá credibilidade, e a mensagem será difícil de ser alcançada.

Bastos (2001, p.8) afirma que apesar de ouvirmos e contarmos histórias desde que éramos pequenos, o fato tem sido ignorado pela escola e também pelos livros didáticos, de maneira geral. Narrar uma história que nos aconteceu confere à narrativa pessoal, entre

outras finalidades, o estatuto de um gênero textual básico que pode ser usado, de maneira significativa, num processo de ensino-aprendizagem da habilidade da escrita, no ensino de línguas. Essa visão instigou-nos a utilização da narrativa pessoal como gênero textual facilitador para o desenvolvimento da habilidade da escrita em espanhol. Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p.82) afirmam que “é possível ensinar a escrever textos [...] em situações públicas escolares e extraescolares”. Contudo, os autores alertam que para que uma proposta de escrita, realizada em um ambiente escolar, tenha sentido, múltiplas ocasiões devem ser oferecidas aos alunos.

Nesse sentido, o uso do gênero textual narrativa pessoal favorece a criação de contextos para a produção textual escrita, na medida em que o cérebro humano (Cap.1 tópico 1.5.1.1) funciona a base de histórias, sendo, assim, um dispositivo da narrativa. A atividade narrativa, verbal ou não verbal, é importante porque desenvolve o pensamento lógico; desenvolve o senso crítico; permite a elaboração de hipóteses e regras acerca dos mecanismos da linguagem; veicula o conhecimento; dá oportunidade de verbalização; e leva ao desenvolvimento da linguagem. O estudo do gênero constitui-se, desse modo, uma referência fundamental para a sua própria construção, tornando-o, assim, um objeto de ensino-aprendizagem, além de, como afirmam Schneuwly e Dolz (2004), servir como um instrumento de comunicação em uma determinada situação.

As narrativas pessoais representam, nesse sentido, um gênero usado não somente como instrumento ou ferramenta de comunicação, mas, ao mesmo tempo, constituem-se como um objeto de ensino-aprendizagem (KOCH, 2006a, p.56). Prince (1983), ao referir- se à competência narrativa, considera-a como a capacidade que todo ser humano tem de compreender e produzir narrativas. Robinson (1981, p. 1) afirma que “contar histórias sobre experiências pessoais é uma parte proeminente do discurso diário, e competência em tal narração é uma habilidade essencial para os membros de qualquer comunidade discursiva”. Essa afirmativa vem a corroborar a importância do uso desse gênero textual num contexto didático de ensino.

Nessa perspectiva, no tocante ao ensino de uma LE, cabe ao professor incentivar e oportunizar ao aluno o exercício da escrita por meio de narrativas. Já dizia Roland Barthes (1972, p.21 e 1999, p.8) que ninguém pode produzir uma narrativa, sem se referir a um sistema implícito de unidades e de regras. E que se deve buscar a estrutura da narrativa nela mesma. Essa afirmação serve para corroborar e evidenciar o uso do gênero textual narrativa pessoal, como objeto a ser utilizado no ensino-aprendizagem de uma LE.