• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1 Arcabouço teórico e caracterização do setor de petróleo

1.4. A constituição da rede de petróleo e gás no Brasil

1.4.2. A liberalização do setor

A liberalização do setor de petróleo brasileiro, ocorrida em 1997, deve ser entendida como circunscrita a uma onda de liberalização de economias em desenvolvimento, que adotavam posturas protecionistas. A essa onda foi somada a restrição de capital experimentada pelos países da América Latina durante os anos 19801, que, associada a outros fatores que não estão no escopo deste trabalho, contribuíram para colocar diversas empresas estatais em uma situação financeira insustentável. Com isso, foi gerada também uma onda de privatizações.

Essa onda inicialmente incluía a Petrobras, entretanto, esse plano foi rechaçado por setores do governo e da sociedade. Em vez disso, o que foi feito foi a venda de 49% das ações da empresa para investidores privados, tanto domésticos como estrangeiros. O governo federal manteve os 51% das ações com direito a voto2 (OLIVEIRA, 2012).

A grande mudança no setor de petróleo e gás nesse período seria o fim do monopólio da Petrobras, de acordo com a Emenda Constitucional 9/1995, que permitiu que empresas internacionais de petróleo começassem a operar no Brasil sob o regime de concessão. Também de acordo com essa emenda, seria criada uma estrutura institucional para regular o setor e gerenciar a concorrência. Essa nova lei só viria a ser promulgada em 1997.

Dois anos depois da Emenda Constitucional, foi emitida a nova "Lei do Petróleo" para regulamentar o setor e garantir sua competitividade. Nessa nova agenda regulatória, os subsídios, importações e controle de preços foram eliminados para atrair mais investimentos estrangeiros e fomentar a concorrência pretendida na exploração, produção, refino e distribuição de petróleo (TROJBICZ, 2017). Com essas mudanças, o governo brasileiro buscava atrair investimentos de IOCs, a fim de explorar mais amplamente a capacidade de produção dos campos de petróleo nacionais (PRIEST, 2016) e ampliar a geração de valor nesse segmento. Com o objetivo de executar a nova lei, a ANP (Agência Nacional de Petróleo) foi criada como órgão regulador (TROJBICZ, 2017).

1

Mais detalhes em Tavares, 1985.

2 O Estatuto da Petrobras indica o número de ações ordinárias com direito a voto e de ações preferenciais sem

Com essa nova regulação, o licenciamento passou a ser realizado via leilões públicos. No primeiro leilão realizado para a concessão dos direitos de exploração dos campos de petróleo nacionais, em 1999, foram licenciados 14 blocos a 11 empresas de 6 países diferentes, como mostrado na tabela 2.

Tabela 2 - Resultado do primeiro leilão público organizado pela ANP B

Bloco Empresa (%)

B

M-C-3 Petrobras (40)/ Agip(40)/ YPF(20)

B M-C-4 Agip(55)/ YPF(45) B M-C-5 Texaco (100) B M-C-6 Petrobras (100) B M- CAL-1 Petrobras (50)/ YPF(50) B M-ES-1 Esso (100) B

M-ES-2 Unocal (40.5)/ Texaco (32)/ YPF (27.5)

B M-

FZA-1

BP (30)/ Esso (25)/ Petrobras (20)/ Shell (12.5)/ British Borneo (12.5) B M- POT-1 Agip (100) B M-S-2 Texaco (100) B

B

M-S-4 Agip (100)

B

M-S-8 Petrobras (50) / Shell (40) / Petrogal (10)

B

M-S-9 Petrobras (45) / BG (30) / YPF (25)

Fonte: ANP, 2017.

Como mostrado na tabela 2, o primeiro leilão foi marcado pela intensa presença da Petrobras, apesar do fim do monopólio, em diversas parcerias com empresas estrangeiras. Essas parcerias com a estatal ocorreram em todos os leilões subsequentes que foram realizados pela ANP. De acordo com Oliveira (2012), embora as IOCs pudessem concorrer sem a associação com a Petrobras, elas preferiam não fazê-lo, especialmente em projetos de alto risco, pois a estatal detinha expertise na exploração offshore e estava familiarizada com o sistema político brasileiro e com a geologia nacional, o que a tornava uma parceira estratégica para a atuação no mercado brasileiro. Consequentemente, mesmo após a liberalização do setor, a Petrobras continuou respondendo por aproximadamente 90% da produção de petróleo brasileiro durante os anos 2000 (ARAGÃO, 2005; ANP, 2017).

Após a nova "Lei do Petróleo", a Petrobras manteve seu foco no segmento upstream, embora a sua maneira de operar tenha sofrido mudanças. Antes, as atividades dos projetos de E&P da empresa eram concentradas pela própria Petrobras, que se encarregava de organizar, negociar e contratar prestadores de serviços especializados e fornecedores. Após a liberalização, a empresa adotou uma nova lógica operacional, com base em contratos EPC (Engenharia, Compras e Construção) (SILVA E FURTADO, 2006). De acordo com esses contratos, a Petrobras contratava um empreiteiro principal, que seria responsável pelo projeto E&P e por contratar outras empresas, negociar os preços e realizar o controle de qualidade. Dessa forma, a Petrobras deixaria de centralizar todas as atividades administrativas envolvidas nos projetos de E&P e poderia concentrar seus esforços em atividades mais centrais e estratégicas como planejamento (SILVA E FURTADO, 2006). Como discutido na seção anterior, esse foi um processo ocorrido na indústria como um todo durante os anos 1990.

Alonso (2004) afirma que não havia empresas brasileiras capazes de operar sob contratos de EPC nesse período (mais recentemente, empresas como Camargo Correa e

Odebrecht3 entraram neste segmento). Desta forma, esses contratos foram estabelecidos com empresas internacionais verticalmente integradas, como Hyundai, Marítima e Mitsubishi (TEIXEIRA E GUERRA, 2003).

Como a Petrobras, mesmo após o fim do monopólio, se manteve como a principal operadora no mercado brasileiro, o fato dela ter adotado contratos EPC como forma de operação é crucial para entender todo o processo de desnacionalização da cadeia petrolífera brasileira. De acordo com Teixeira e Guerra (2003), em muitos casos, as empresas de contratação principal desenvolviam as unidades de produção offshore encomendadas em seus próprios países, com a sua base de fornecedores, e apenas depois as enviavam para o Brasil, não empregando fornecedores brasileiros para a sua fabricação. Essa nova possibilidade de realocação espacial das atividades da cadeia de petróleo e gás implicou em um deslocamento espacial de diversas atividades.

Nesse processo, os fornecedores domésticos acabaram tendo dificuldades em sobreviver. A política de compras da Petrobras, embora visasse à estruturação de uma base de fornecedores diversificada e moderna, não se preocupou em constituir uma estratégia na qual as empresas instaladas localmente usassem o país como plataforma de exportação. Assim, a segunda metade da década de 1990 testemunhou certo descolamento entre o crescimento da atividade de exploração e a cadeia de fornecimento local, já que o Estado abandonou o seu papel de comprador. Isso implicou em uma redução drástica da participação de fornecedores locais em projetos de E&P (SILVA E FURTADO, 2006).

Silva e Furtado (2006) mostram a dimensão dessa mudança: em 1999, das 12 unidades de produção offshore encomendadas pela Petrobras, apenas uma foi construída no Brasil. Isso também pode ser visto se analisarmos a participação de fornecedores nacionais nos três leilões públicos iniciais, promovidos pela ANP. Na primeira rodada, a média da participação dos fornecedores nacionais nos consórcios ganhadores foi de cerca de 25% na exploração e 27% na produção. Na segunda rodada, esse número aumentou para 42% na exploração e 48% na produção. Na terceira rodada, caiu novamente, para 28,4% e 32%, respectivamente. Essa variação pode ser explicada pelo fato de que na primeira e terceira rodadas a proporção de campos offshore a serem licenciadas foi maior do que na segunda (TEIXEIRA E GUERRA, 2003). Comparando esses números com a média de 80% da taxa de compra nacional da Petrobras alcançada durante a década de 1980, quando a política de

3

compras nacionais da Petrobras ainda estava em vigor, esses números são significativamente inferiores.

Portanto, ao mesmo tempo em que a Petrobras se manteve como um ator central na rede nacional e passou a interagir fortemente com IOCs que entraram no mercado nacional, alavancando a geração de valor, foram perdidos elos da cadeia que possibilitavam a geração e captura de valor na cadeia em outros segmentos, além da operação. Contudo, o fim da política de compras por parte da Petrobras permitiu que a empresa atuasse de forma mais eficiente. Logo, se por um lado foram perdidos elos da cadeia, com o enfraquecimento e extinção de muitas empresas fornecedoras, por outro, a Petrobras teve o seu papel de empresa líder alavancado.