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1.5 A regulação social e mercantil e a predominância sobre a regulação central

1.5.1 A “livre escolha” como processo de regulação social e mercantil

Este processo de regulação tem sido defendido na comunicação social já há vários anos e no XV Governo Constitucional (PSD57-PP58) ganhou mais força devido às medidas de privatização por este defendidas; no entanto, na

área da educação as alterações foram menores, mas na comunicação social este tema foi grandemente divulgado59 (cf.

Barroso, 2003, p. 80), tendo permanecido até hoje a expressão “cheque-ensino”60 como símbolo das políticas de

mercantilização da educação.

A “livre-escolha” tem surgido no contexto nacional como solução das más prestações do sistema educativo, o qual não está imune à ação dos professores como classe profissional que condicionarão os progressos deste ao

56 Um único professor para cada aluno com um programa por ambos construído; ver a este propósito A Organização Pedagógica e a Administração dos Liceus (1836-1960) por

João Barroso (1995).

57 PSD – Partido Social Democrata. 58 PP – Partido Popular.

59 Digo divulgado e não discutido por maioritariamente só ser apresentada uma visão sobre o tema e não ter existido uma verdadeira discussão pública do tema, tal como refere

João Barroso (2003, p. 79-86)

60 “Os cheques-ensino consistem num sistema de financiamento público da educação em que os pais (encarregados de educação) receberiam do governo um certificado para ser

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defenderem os seus interesses; no entanto, como já foi referido anteriormente, esta liberdade de escolha está amarrada às condições da família em poderem escolher e exercer efetivamente essa escolha (cf. Ball, 1995).

Essa escolha está a ser fortemente motivada “(…) por políticas públicas que promovem a publicação dos resultados escolares e a elaboração formal de listas ordenadas de escolas em função da média dos resultados dos respetivos alunos, no pressuposto de que se expressa desse modo uma ordenação da ‘qualidade’ da educação proporcionada.” (Natércio Afonso, 2003, p. 62), sem que seja feito um verdadeiro debate quanto à educação ser “um ‘bem comum’ – público, ou um ‘bem de consumo’ – privado?61” (Barroso, 2003, p. 89).

Os defensores da liberdade de escolha da escola, por parte da família, defendem que é um direito parental, e que a gestão centralizada é ineficiente e subordinada a interesses corporativos, mas que com esta possibilidade de opção a qualidade educativa das escolas melhorará, por outro lado os opositores defendem que esta medida aumentará a estratificação social e étnica, as escolas serão induzidas a mecanismos de escolha e põe em causa o direito à educação de todos os cidadãos (cf. Barroso, 2003, p. 91-92). Também a este respeito Henry M. Levin (2003, p. 113-114) refere que “Os defensores argumentam que as famílias necessitam de mais escolhas e que os cheques- ensino proporcionarão competição e uma melhor eficácia e produtividade escolar na gestão dos dinheiros públicos. Os detratores argumentam que os cheques-ensino produzirão, antes de mais, lucros empresariais e custos de marketing que poderiam ser usados para prestar melhores serviços educacionais, conduzirão ao aumento de desigualdades nos resultados educativos e tornarão mais fraca a experiência educacional comum necessária à democracia.”.

Nas apresentações feitas pelos dois autores podemos verificar que os defensores do cheque-ensino apresentam como razões maiores a liberdade de escolha dos cidadãos e a produtividade a que as escolas estarão sujeitas, do lado dos opositores temos como principais motivações a falta de equidade e coesão social.

João Barroso (2003, p. 94-102) apresenta algumas conclusões das duas medidas aplicadas nos Estados Unidos da América, as “charter schools62” e os “vouchers63”; destas experiências verifica-se que: não há melhorias

significativas nos resultados académicos, os alunos de ensino especial ou com pais pouco escolarizados não conseguem ser aceites por estas escolas, promove uma homogeneização racial e étnica das escolas, desconhece-se os efeitos na socialização cívica e os pais demonstram grande satisfação pelas escolhas de escolas que realizaram. Assim, apesar das medidas não estarem a produzir os efeitos pretendidos que levaram à sua implementação, os pais estão agradados com a possibilidade de escolherem a escola dos filhos, mesmo que isso não altere a possibilidade de sucesso.

61 Ver a este propósito João Barroso (2003, p. 86-94) em que expõe muito concretamente as lógicas da escolha da escola num debate que ainda está por fazer na sociedade

portuguesa.

62 São escolas públicas entregues a gestão privada após a realização de um contrato de autonomia em vigor durante alguns anos que no final pode ser revisto ou revogado,

conforme os resultados.

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Assim, não temos motivações pedagógicas ou sociais que sustentem esta medida uma vez que “(…) um número significativo de dados empíricos que mostram existirem nítidos efeitos de estratificação e segregação provocados pela ‘escolha da escola’ pelos pais dos alunos.” No entanto, “Por outro lado, dispomos igualmente de evidência empírica sobre a existência dos mesmos mecanismos de segregação escolar e social nos sistemas de ensino onde não funciona a ‘livre escolha’.” (Barroso, 2003, pp. 102-103).

Podemos assim afirmar que a “livre-escolha” é uma opção política e ideológica que em nada obtém sustentação empírica; no entanto, as famílias das classes médias e médias altas têm feito alguma pressão para que esta medida seja implementada, parecendo ter mais a lucrar que as famílias mais vulneráveis económica e socialmente. “Assim, para lá das intenções políticas, a instituição de uma liberdade de escolha por parte das famílias parece alargar a margem de manobra destas para desenvolver estratégias de diferenciação.” (Diogo, 2008, p. 29), facto que, apesar disso, acontece mesmo quando essa liberdade não existe.

Vejamos o caso português64 em que a escolha da escola está vinculada à oferta educativa ou à escola da

proximidade da residência ou emprego do encarregado de educação65, em que esta regulação “(…) vai sendo

‘subvertida’ por formas de regulação mais autónomas, produzidas no contexto situacional.”, motivadas pelo “(…) jogo da procura social e das estratégias das famílias, em particular da classe média, que desejam escolher escolas ou itinerários escolares com maiores possibilidades de sucesso e mobilidade social.” (Barroso & Viseu, 2006, p. 140). Quando as famílias não utilizam estratégias de manipulação de moradas ou seleção de percursos escolares, deve-se muitas das vezes ao facto de a escola que lhes é atribuída já apresentar as características por si desejadas, e aí os processos de regulação são exercidos pela escola, controlando o fluxo de alunos externos à área de ação da escola, e muitas das vezes por pressão dos próprios pais.

Efetivamente, não podemos ser conclusivos quanto às consequências da “livre-escolha”; no entanto, esta não nos parece garantir a igualdade de oportunidades de que as sociedades modernas precisam para se suplantarem no esforço de escolarização dos mais desfavorecidos social, económica e culturalmente. Na verdade, parece-nos muito clara a ideia de que “Na ausência de uma qualquer forma de garantia da igualdade de oportunidades, o estatuto económico e social seria simplesmente transmitido de geração em geração, com classes sociais rígidas e com poucas oportunidades de mobilidade.” (Levin, 2003, p. 117).

A “livre-escolha” parece ser sim, a garantia de uma elitização em meios bem definidos e delimitados em paralelo com a criação de guetos nas periferias destes. Consegue-se então garantir a excelência, mas à custa da cristalização dos restantes. A busca da qualidade dos serviços, neste caso da educação, não pode assentar na

64 Refira-se que a este respeito o atual XIX Governo Constitucional liberalizou as matrículas, permitindo às famílias a escolha da escola, e o novo estatuto estabelecido com o

ensino privado será os alicerces do cheque-ensino pois pretende pagar por aluno que frequente estas instituições e não por turma como acontecia até então.

65 Ana Diogo também faz referência a esta situação, decorrendo da atualização do tema por parte de outros autores, “Mais recentemente a pressão no sentido de instituir a livre

escolha do estabelecimento escolar por parte das famílias em Portugal, acompanhando uma tendência atual generalizada, a nível internacional, de desenvolvimento de mercados escolares, pode ser vista, também (embora não exclusivamente), como mais uma faceta do referido movimento de diferenciação dos percursos escolares.” (2008, p. 28).

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melhoria dos resultados de excelência sem que sejam pesadas as consequências no aprofundamento das desigualdades sociais e um consequente abaixamento do nível de escolaridade de toda a população.

Tomamos também como garantido que “(…) o aprofundamento das desigualdades sociais reforça estratégias familiares das classes médias orientadas para a seleção dos percursos escolares que permitam vantagens competitivas no mercado de trabalho.” (Natércio Afonso, 2003, p. 60). A procura de estratégias de diferenciação quando estas classes têm mais poder negocial com a escola e no recurso a suplementos educativos poderá provocar uma desigualdade social com tendência para a cristalização. Então, só uma regulação central, quanto à liberdade de escolha, parece poder desfazer algumas destas desigualdades, não permitindo uma homogeneização das populações escolares por etnia ou estrato social e económico. João Barroso vai ainda mais longe quando afirma que “A solução passa (…) por um reforço da dimensão cívica e comunitária da escola pública, restabelecendo um equilíbrio entre a função reguladora de Estado, a participação dos cidadãos e o profissionalismo dos professores, na construção de um ‘bem comum local’ que é a educação das crianças e dos jovens.” (Barroso, 2003, p. 106).

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