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A máscara em seu estado-racional

No documento o Ator e Seus Duplos (páginas 50-61)

Estado-racional é o estado de perceber, deduzir, manifestar. Nesse estágio os exercícios vão além da simples reação física. A máscara, depois de perceber o estímulo e reagir corporalmente, vai perscrutá-lo e descobrir do que se trata. Identificando-o, expressa sua reação.

Ao receber um estímulo, a máscara exterioriza-o também através do olhar. Aqui pode ocorrer a triangulação, isto é, um olhar de conluio lançado ao público. Imediatamente segue-se a reação corporal, isto é, o ator se desloca para aproximar-se e verificar melhor a causa da perturbação. Nesse ir em direção ao estímulo, não são necessários mais do que três ou quatro passos e, no total, entre o perceber, ir em direção ao estímulo, conferi-lo e reagir, não deve haver mais do que cinco ou sete movimentos.

Nesse exercício, cada detalhe deve ser analisado. Tudo deve ser feito pausada e lentamente. A mudança do movimento normal para o lento ressalta a intenção da ação; o superlento ressalta o estático; e o estático ressalta a essência.8 O objetivo é descobrir e usar apenas os movimen-

s

Observar a relação entre o rosto de um ator estático e o ator em máscara, entre este e figuras rígidas, entre a máscara e o boneco. Ou, amda, entre bonecos ou máscaras e os símbolos.

tos essenciais. Voltar ao ponto inicial. Dissolver. Repetir a mesma ação e a mesma reação várias vezes. Voltar ao pon' to inicial. Repetir. A cada repetição os movimentos vão sendo enxugados e a ação e intenção da máscara tornam- se claras.

A máscara neutra não toma nunca atitudes precon- cebidas. Age sob estímulos, somente. Os estímulos podem ser físicos (sonoros, visuais, táteis, etc.) ou mentalmente criados.

Estímulos físicos

a) Sonoros

Provocar estímulos concretos. Por exemplo, o toque de uma campainha, uma pedra que cai, uma janela que bate, som de vozes longínquas, etc. No processo dos exer- cicios, quanto mais óbvios e reais os estímulos, mais claro é o foco e mais direta a reação.

b) Estímulos visuais e táteis9

Partir da máscara em seu estado-orgânico, neutro, em repouso. Exercitar a respiração. Pedir que os atores fechem os olhos para que não percebam que objetos vão sendo colocados à sua volta.10 Num certo momento, esses objetos são percebidos pelo tato ou por sons que despertam as máscaras. Assim que a máscara perceber o objeto, deve imediatamente reagir, deixando-se invadir por ele, sendo o objeto, sutilmente refletindo os seus movimentos. O objeto deve ser perscrutado pela máscara como alguma coisa vista e descoberta pela primeira vez. Um ator em máscara, ao ver um objeto, deve sentir-se como que tomado, invadido por ele. E fascinante observar o grupo

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Nesse exercício inicia-se uma percepção mais aguçada dos objetos, o que será retomado no capítulo 4-

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Essa é uma tareia do diretor de oticina.

descobrindo formas, cor, movimentos, textura e sons dos objetos. A cada descoberta a máscara reage, incorporan- do as qualidades que descobre fora de si.

c) A máscara e o objeto

O mesmo que o exercício anterior, só que o ator em máscara não em repouso, mas em pé, de maneira a poder locomover-se para aproximar-se ou tocar os objetos. Partindo de seu estado neutro, percebe objetos à sua volta (cadeiras, escadas, livros, uma sucata de ferro, um tecido leve e transparente, etc.). Nesse trabalho de percepção

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A máscara e o objeto. Primeiros contatos Laboratório 0 ator e seus duplos, 2000. Foto de Berenice Farina Rosa.

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cios objetos, fazer movimentos simples: girar a cabeça, de* ter o olhar, caminhar em direção ao objeto, tocá-lo. Para cada uma dessas ações, descobrir movimentos básicos, nunca mais do que em cinco tempos. Eliminar o supér- fluo. Importante é perceber onde um movimento começa e onde acaba; perceber o espaço, o tempo.

d) Outros estímulos

Repetir os exercícios anteriores, agora com estímulos de luz, calor, vento ou sons de uma melodia ou poema.

A sequência desses exercícios pode ser uma cena coletiva improvisada, em que todas as máscaras do grupo comecem a interagir.11

Estímulos mentalmente criados

a) Máscara penteia-se enquanto se observa num espelho.

b) Máscara procura agulha perdida sobre uma mesa. c) Máscara lê.

d) Chuva bate forte na janela, máscara assusta- se, vai em direção a ela, estende o braço e fecha a janela.

e) Cozinhar: mexer lentamente uma colher dentro de uma panela, parar, provar a comida, continuar.

0 Andar normalmente. De repente, ver um precipício ou uma porta que se fecha, um tijolo que cai, um cachorro que late, etc.

g) Telefone toca, máscara olha para o telefone, estende o braço, pega o gancho atendendo, ninguém fala. Máscara estranha, desliga. Telefone

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Em todos esses exercícios é importante que o grupo possa ver o que está acontecendo. Dividir o grupo e alternar entre os que vêem e os que trabalham.

novamente toca, máscara simplesmente o olha, não atende.

h) Entrar numa estação, ver o trem que chega, atrapalhar-se ao tentar passar pela catraca, olhar atónito diante do trem que fecha suas portas e se afasta da estação.

i) Um grupo de máscaras num ponto de ônibus. Atitude de espera, cansaço. As máscaras olham fixamente na direção de onde se supõe vir o ônibus, ou têm um olhar vago, impreciso; ocasionalmente, algumas máscaras esbarram entre si, levemente se notam, mas voltam a concentrar-se na direção de onde o ônibus deve vir. Finalmente, este chega. As máscaras assumem todas um foco único; percebe-se assim, através delas, a aproximação do ônibus.12

Máscara X máscara + objeto

Nesse exercício, é importante observar o início, ou seja, o ponto neutro inicial. Estar em estado neutro é não pensar e, ao mesmo tempo, colocar-se em estado de alerta, um estado da mais aguçada percepção, pronto para receber e reagir a todo e qualquer estímulo externo. As reações devem ser imediatas e as ações precisas.

No jogo de cena entre duas máscaras existe sempre uma que percebe o estímulo primeiro, reagindo pronta-

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Interessante é trabalhar a ação e reação com máscaras de grupo. Pode ser uma multidão anónima e desintegrada, sem nada em comum; o povo de um determinado local, determinada classe social ou raça, com preocupações e objetivos comuns; um grupo de pessoas num ponto de ônibus, numa tila de mercado, etc. As máscaras de grupo podem ser iguais, uniformizadas ou diferenciadas por sexo, idade, cor.

mente. Nesse caso, a outra máscara, também atenta ao que se passa à sua volta, reage à ação - quase sempre mais óbvia - da primeira. Esse é um exercício de ação e reação.

Duas máscaras em cena acarretam sempre inten- ções diferentes, conflitantes, têm objetivos opostos. A ação que se desenvolve entre elas expressa vontades com trárias.

O conflito cênico coloca princípios básicos, tais como

positivo/negativo, masculino/feminino, ação/reação/

resultado, princípios universais geradores de energia.

As ações devem ser claras. Uma cena com máscaras é como uma escrita. Cada frase deve ser enunciada separadamente e completada antes de se iniciar a próxima. O início e o fim de uma ação, o ritmo dos movimentos e as pausas equivalem a pontos e vírgulas. O fim de um parágrafo, ou seu ponto final, é o retorno da máscara ao ponto neutro, início e fim de toda ação.

No jogo cênico com máscaras é interessante que ocorra a triangulação. Triangulação é quando a intenção, que antecede a ação, é mostrada através de uma troca de olhar entre personagem e público. Uma pequena pausa na qual a intenção dc uma ação é reforçada num diálogo mudo entre o palco e a platéia.13

Depois de exercícios dirigidos, sugere-se que os atores improvisem suas próprias cenas.

O exercício máscara X máscara + objeto pode incluir

também a interferência da platéia. Isto é, o grupo que observa permanece em máscaras para, rapidamente e

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Notar que nesses exercícios, os objetos são usados apenas como estímulos e coirtracenam com as máscaras enquanto objetos, não como personagens.

no momento oportuno, entrar em cena. Não ter mais do que três máscaras de cada vez em cena e, na entrada de uma quarta máscara, uma delas (a que estiver mais apartada do conflito) congela, dissolve-se e retira-se.

Dependendo da qualidade e talento do grupo, situações muito ricas podem surgir. Cada processo ou oficina é uma experiência única, impossível de se repetir. E, como o teatro, deve ser vivenciado.

Nos exercícios com máscara neutra é preciso lembrar que ela em si nada representa ou nada deve representar, pois não deve ter expressão. Mas através déla pódese perceber o tempo, o espaço e o esforço necessários para a execução dos mais simples gestos. Ela ajuda a eliminar movimentos supérfluos. A máscara neutra é como urna página em branco, sobre a qual se pode criar qualquer personagem, expressando aquilo que é comum a todos.

Já a máscara expressiva revela personagens com características próprias, sem que, para isso, o ator precise fazer qualquer coisa.

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s máscaras expressivas apresentam o personagem. Elas podem ser realistas e expressionistas. Realistas são máscaras imitativas, que reproduzem o rosto humano, representando tipos de pessoas. Geralmente são cuidadosamente confeccionadas e muito bem pintadas. As expressionistas têm uma expressão forte, enfatizam os traços, às vezes propositadamente distorcidos. Apresentam mais a emoção do que tipos. Rudes, nelas não importa a

perfeição ou proporção, mas sim a força de expressão. Apre- sentam a realidade exageradamente.

Dando seqiiência aos nossos exercícios, colocar à disposição do grupo vários tipos de máscaras. Notar que não se trata aqui de buscar máscaras para personagens predeterminados, mas sim descobrir e criar personagens a partir de máscaras dadas.14 E, diante de um elenco variado, os atores devem fazer sua opção por atração, empatia, curiosidade, estranheza, preferência de tipos, níveis de linguagem, etc. Escolhida a máscara, observá-la antes de vesti- la. Depois, em máscara, o ator pode observar-se no espelho, procurando interiorizá-la. Acrescentar alguma indumentária mas, no início, antes de se definirem os personagens, usar túnicas simples, luvas, cobrir ou deixar soltos os cabelos, enfim, usar artifícios que eliminem o corpo do ator para que a máscara ressalte. Os figurinos devem vir numa etapa posterior, quando os personagens estiverem mais definidos.

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Esses exercícios são feitos a partir de máscaras prontas. Se os atores puderem passar também pelo processo de criação e confecção de máscaras neutras ou expressivas, todo o processo passa a ser muito mais rico. “Modelar, fabricar e depois animar são etapas para conhecer-se a si mesmo e ao outro”, em O. Asían (org.), Le masque, du rite au théâtre (Paris: CNRS, 1985).

Descobrindo personagens

Laboratório 0 ator e seus duplos, 2000. Foto de Berenice Farina Rosa.

Sobre o personagem, perguntar-se: qual seria o seu elemento mais determinante, o fogo (que transforma, queima, sobe) ?; a terra (com suas características de solidez, permanência)?; a água (que tudo invade, destrói, lava, purifica)?; o ar (o etéreo que paira)? Perguntar-se também qual o animal que lhe é mais próximo; qual o seu sexo; idade; onde habita; com quem; quais os seus gestos mais peculiares; qual sua postura em repouso; o que almeja; quais os seus objetivos em geral e num momento transitório. Descobrir também qual é o seu objeto- símbolo,13 e, ao descobri-lo, improvisar com ele um jogo de contracena.

Essa pesquisa deve ser feita pelo grupo através de improvisações livres e no tempo que for necessário. No início, é um trabalho individual, isolado. Mas, à medida que cada ator passe a ter claro o personagem que emergiu de sua máscara, espontaneamente começam a surgir interações muito interessantes entre eles.10 11

Nos exercícios com máscara expressiva, o primeiro impacto é o mais importante, pois é o momento em que a máscara é vista, vê. Num primeiro instante ela se apresenta tal como é, um objeto inerte, para depois passar a sensação de que é viva. E vista, também vê. Respira. Sua imagem deve ser coerente com sua postura. O que ela representa deve ser percebido de forma total, nos traços da máscara, na postura corporal do ator, em seus gestos, na maneira de andar, olhar, reagir.

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Objecos-símbolos seriam aqui como marcas de determinados tipos. Por exemplo, a máquina fotográfica para um fotógrafo ou para alguém que quer registrar imagens; uma bengala para alguém com dificuldade de andar; um revólver; um crucifixo; um relógio; cordas; garrafas; etc.

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Impressionante como cada ator cria o seu personagem, apesar das características próprias de cada um. A mesma máscara usada por diferentes atores pode se transformar em personagens totalmente diversos.

Numa contracena de máscaras é importante que se vejam as diferenças entre os personagens, pois elas se re- afirmam pelo contraste.

O trabalho em máscara é diferente do trabalho da mímica, pois uma coisa é o rosto vivo de um mímico e, outra, é a máscara. Na mímica o ator se expressa através de seu rosto e de seu corpo; já o ator em máscara deve concentrar nela toda sua expressão.

A mímica conta uma história, já a máscara mostra sensações. O trabalho com máscaras não considera fato- res psicológicos. Um ator em máscara está muito mais pró- ximo da animalidade do que da racionalidade. Ele está a

0 ator em máscara

Laboratório 0 ator e seus duplos, 2000. Foto de Berenice Farina Rosa.

serviço da máscara, isto é, seu corpo é apenas um suporte. Mas, assim como a mímica exige do ator um treinamento especial, também o ator, para trabalhar com máscara, precisa de treino, precisa tomar conhecimento de suas regras, ritmo, pausas, intenções. Improvisações só desva- lorizam a máscara e comprometem a qualidade da cena.

A partir dos exercícios em máscara neutra e das improvisações com as máscaras expressivas, concluímos que a máscara ajuda a distinguir o que é teatro e o que é vida, pois através déla o ator percebe o seu eu separado do personagem. Sair de si e entrar no personagem é um

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No documento o Ator e Seus Duplos (páginas 50-61)