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A partir de texto escrito para teatro de ator ou a partir de texto literário

No documento o Ator e Seus Duplos (páginas 130-144)

O processo para criação de um roteiro e montagem de espetáculo baseado em texto para atores, ou texto lite-

Cena de Zó da Vaca

Texto para bonecos de Ana Maria Amaral. Montagem de O Casulo, 1981/1985. Foto de Jeferson Costa.

rário, deve ser feito depois de se levar em conta as razões de sua transposição para o teatro de bonecos. E de acordo com o conteúdo, decidir as conveniências do uso de bonecos de luva, vara, sombra, articulados ou ños.

teatro de bonecos possui características que o dis- yS tinguem e, ao mesmo tempo, o aproximam do teatro de ator. Em sua pesquisa de doutorado, Felisberto Sabino da Costa levanta reflexões muito interessantes sobre os procedimentos dramáticos do teatro de animação.

Determinados recursos de interpretação estão mais ligados ao ator. Esses recursos não são factíveis para um boneco e, da

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Cena de Ato sem palavras

Texto para ator de Samuel Becket. Encenado por alunos da ECA/USR 1987. Foto da autora.

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mesma forma, este tem propriedades que lhe são únicas se comparadas com o desempenho do ator. No teatro de bonecos, a comunicação que se estabelece com a platéia é intermediada pelo objeto, ao passo que no teatro de ator não há tal elemento de intermediação. Destarte, temos: no primeiro caso, ator-boneco- platéia; no segundo caso, ator-pla- téia. A inserção de um terceiro elemento na relação ator- platéia implicará num processo diferenciado ao se pensar em escrever para o teatro de animação. O dramaturgo não estará escrevendo para um ator somente, mas para um ator que dará vida a um objeto não animado. Ou melhor, para um boneco - ou outro objeto - que será animado por um ator. O boneco é um vir-a-ser. É a ponte que liga o ator-manipulador ao público.29

John Bell diz ser difícil definir o trabalho do dramaturgo por não ser bem compreendida essa função.30 No que se refere à dramaturgia do teatro de bonecos ou do teatro de máscaras, a tarefa é ainda mais complicada, porque esses teatros utilizam-se de técnicas pouco conhecidas. Mas neles existem elementos importantes ligados à dramaturgia. John Bell ressalta as diferenças que existem entre o teatro de bonecos e o teatro de ator.

No teatro de ator a dramaturgia é uma ligação entre o texto original dramático e sua transferência para o palco, mas há outros aspectos da dramaturgia concernentes à arte da representação, que estão sempre presentes no teatro de bonecos. O primeiro ensaio de uma peça para atores começa pela leitura do texto, já no teatro de bonecos começa-se por experimentar os movimentos próprios de cada personagem, dentro de um determinado espaço. O teatro de ator baseia-se

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Felisberto Sabino da Cosca, Poética do ser e não ser, tese de doutorado (São Paulo: ECA/USP/Departamento de Artes Cênicas, 2001).

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John Bell, professor da New York University, é também dramaturgo do Bread and Puppet Theatre.

principalmente no script, nos diálogos e rubricas. E ainda qu o teatro de bonecos também se utilize de palavras, elas sã' mais usadas em narrativas do que em diálogos, e a improvisa ção é mais importante que a fidelidade ao texto. O teatro d bonecos dá mais ênfase à tradição oral do que aos texto escritos. Está mais próximo da poesia do que da prosa.22

Assim, no teatro de bonecos, nem o texto nem < ator devem suplantar o boneco.

A arte dramática do Oriente situa-se entre ficção fantasia, entre diversão e reflexão espiritual, e o seu obje tivo não é imitar a realidade, mas criar outra atmosfera pois o mais importante é a idéia que existe por trás do qu se diz ou do que se mostra.

Na China, os bonecos, por não serem reais, erar considerados mestres dos atores, que deles tiravam liçõe de interpretação. O boneco vinha sempre ligado à ópen à música, à dança, acompanhando o canto dos atores. Set movimentos eram em ritmo de dança e a voz era usada er tom diferente do natural. O épico aí soma-se ao lírico.

Na índia e em Java, as mil e uma histórias do Ramc

yana e do Mahabharata falam de lutas entre clãs poderc

sos, confrontos entre deuses e demónios entremeados cor reflexões filosóficas sobre o bem e o mal. Esse imaginári fantástico não poderia ser melhor colocado do que atrs vés de personagens não reais, esculpidos em madeira o representados por silhuetas projetadas em sombra.

Também no Japão, a partir dos séculos XII e XII monges budistas, ao som do bi<wa, contavam lendas - í lendas do Heiki e do Joruri - sempre ilustradas por bont

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John Bell, “Draraacurgy and che Theatve of Masks and Puppets”, e LMDA Review, 1 (3), Nova York, 1998-99.

eos.23 Os temas também eram disputas de poder, entre - meadas com historias de amor entre princesas e guerreiros que, no final, desvendavam-se como encarnações de deuses. Nos séculos XVII-XVIII, com o grande dramaturgo Uemura Chikamatsu (1653-1724), o teatro de bonecos alcança alto nível artístico e dramático, tornando-se muito popular. Sua produção divide-se em dois grupos: peças históricas e contos burgueses. As históricas apresentam a mitologia fantástica japonesa, falam de carmas e são cheias de enredos cruéis. Mas o grande impacto de suas peças está nos contos burgueses, em que, pela primeira vez, os dramas cotidianos do homem (e da mulher) são apresentados com severas críticas ao sistema patriarcal feroz e ao feudalismo da época.24 Os principios básicos de sua dramaturgia incluíam: a qualidade visual e emocional do personagem, qualidades vocais do narrador e muita ênfase no ritmo das palavras. Ou seja, havia uma perfeita combinação entre o drama, o ritmo da linguagem e o visual (bonecos). O tipo de boneco usado em suas peças era o boneco de luva, muito ágil, com movimento de olhos e sobrancelhas, articulações'nos dedos, tendo como fundo cenários móveis.25 Os manipuladores, de incrível destreza, eram mudos, sendo as falas dos personagens dadas pelo narrador. Havia uma mistura de épico e lírico: os fatos eram apresentados pelo narrador, seguidos de canto lírico, havendo reflexões sobre os mesmos. Considerado entre os maiores da dramaturgia universal, Chikamatsu, que antes escrevia para atores, num determinado momento

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O biwa é um mstrumeiuo de cordas, depois substituído pelo shamisen.

24

O teatro Kabuki surge no século XVII com marcantes influências do teatro de bonecos.

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O Bunraku é uma técnica de manipulação que surgiu bem mais tarde, no século XIX.

preferia o teatro de bonecos pela maior liberdade de ex- pressão que com eles desfrutava.

No Ocidente, depois do apogeu da civilização grega e da decadência do seu teatro, surgem nas ruas os mimos, que continuam em Roma, perpetuando-se num teatro popular, e que atravessam toda a Idade Média.

Com o cristianismo, o teatro se divide entre o religioso e o profano. O teatro religioso versa sobre histórias da Bíblia, misturando-se aos ritos da Igreja Católica (a própria missa apresenta elementos dramáticos). E um teatro religioso imposto pelo poder oficial, diferente do misticismo oriental, dando margem a versões profanas. Quadros vivos montados com imagens de santos-de-roca vão inspirar a construção de marionetes; os retábulos transformam-se em pequenos palcos e assim percorrem as feiras. O teatro profano toma duas vertentes: poético e satírico. O profano-póetico está presente nas baladas, quase sempre ilustradas com bonecos.31 32 As baladas são monólogos dramáticos, às vezes com diálogos, poemas que falam de amor e de batalhas. O profano-satírico são versões populares dos episódios bíblicos, trata com irreverência histórias da Paixão de Cristo, da Arca de Noé, a criação do mundo, a vida de santos.22

A sátira vai se afirmar como um importante gênero do teatro de bonecos, principalmente a partir da Renascença.

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Temos Li Romans du bon roi Alixandre, escrito em 1338; Chansons de

geste, poemas heroicos apreseirtados nos retábulos, conforme nos

descreve Cervantes; Chamem de Roland; Aucassin et Nicolette, etc.

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Michel de Ghelderode reconstituiu alguns desses espetáculos. Um texto delicioso, “O mistério de Nosso Senhor Jesus Cristo”, foi publicado por Hermilo Borba Filho em seu livro Fisionomia e espírito do mamulengo (São Paulo: Edusp, 1966).

A sátira, com suas afiadas e sutis investidas, representa o espírito crítico da Renascença. Ela visa à transformação da sociedade, pois nada melhor para desmoralizar o poder do que rir dele. Os tipos que surgem são anti-heróis que representam o homem comum, o povo. Os mimos agora são bufões, espertos e ladinos, “bobos”, ou excepcionais que, entre danças, deboches e violências, passam suas verdades.28

Da Turquia chega Karaghoz a Veneza, influenciando a estrutura da Commedia dell’Arte.29 Pulcio Anello, famoso ator, cria o personagem Pulcinella. E Pulcinella, na França, vira Polichinelle, na Inglaterra é Punchinella, depois Punch, viaja por toda Europa, e, por onde passa, inventa novas histórias e recebe diferentes nomes: Kasper, Guignol, Petrouschka, D. Cristóbal e Roberto; no Brasil é Brighella, Babau, João Redondo ou Tiridá. Todos, heróis e vilões nacionais, representantes do povo, críticos, justiceiros. Nada os detém na luta contra a ordem e a moral estabelecidas. Nesse teatro de bonecos popular, em meio a muita ação e pancadaria, a palavra domina, sem texto escrito. Em todas as culturas perpetua-se por tradição oral.

Mas o teatro de bonecos na Europa dos séculos XVIII e XIX não é apenas reflexo da expressão espontânea do povo, é também um teatro de artistas e literatos, apresentando-se em cafés e salões da corte, com produções ricas,

28 “Bobos artificiais”, ou palhaços, são outros descendentes dos mimos, que

trabalhavam em duplas. O primeiro mimo, esperto e inteligente, comandava o seguiido mimo, retardado e sempre passivo às ordens de seu companheiro.

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Com a queda de Covistantinopla, muito de seus artistas e intelectuais mudaram-se para Veneza, tato que dá base a uma das teorias sobre as origens da Commedia dell’Arte, a teoria de Hermann Reich, para quem as farsas atelanas morreram na Idade Média, mas a mímica pura toi preservada no Oriente Médio através do teatro de sombras da Turquia, e grande foi a influência do teatro de bonecos ira Commedia dell’Arte.

de grande aprimoramento técnico, cenografia, figurinos, apresentando um repertório de textos clássicos ou espe- cialmente escritos para ele. De acordo com Roger Daniel Bensky, a dramaturgia do teatro de bonecos erudito dessa época apresenta ora caricaturas da sociedade, ora um aspecto poético-fantasista. A sátira predomina, seja procurando corrigir a realidade, seja negando-a, fantasiando-a ou deformando-a. Assim, a sátira reafirma-se como desejo de transformação da sociedade.30 Ainda segundo Bensky, a sátira simples visa corrigir a realidade, apresen- tando-a por meio de exageros; assim é A ponte quebrada, de Dominique Séraphin (1747-1800), um clássico do teatro de sombras, que, através de situações muito simplificadas e tipos bem esquematizados (o burguês e um menino do povo), apresenta um quadro da sociedade de então. Já as sátiras fantasistas pretendem provocar mudanças pela negação da realidade; exemplo dado por Bensky é a peça Le marriage de Béttinette, de Lemercier de Neuville (1830-1918) .31

Com o Romantismo, o grotesco passa a ser o elemento deflagrador. Em Jouets et mystères, de Maurice Sand, o

grotesco apresenta-se em fantasias poéticas, as

transformações aí ocorrem através de situações não reais. Já Ménage de Caroline, de Ghelderore, apresenta um grotesco lúgubre. Mas o melhor exemplo é Ubu rei, de Alfred Jarry, que estreou em Rennes, em 1886, como teatro de bonecos. As suas características guignolescas foram depois

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R. D. Bensky, Structures textuelles de la marionnette de langue française (Paris: Nizet, 1969).

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Neuville refletia em suas peças suas idéias (contra a política do Segundo Império e contra a falsa moral da época). Durante um ano dirigiu o famoso teatro Erotikon, cujos espetáculos acabavam em orgias. Gustave Doré trabalhava com ele, esculpindo as cabeças dos seus personageirs.

repassadas para a montagem com atores, na qual as transformações são mostradas por uma total desestruturação do real, pelo absurdo, pelo exagero.

A dualidade do boneco - religioso/profano, satíri- co/poético, espírito/matéria - tem sido uma constante na história do teatro. Mais recentemente, ora atrai os simbolistas por seu aspecto poético e pelas feições rígidas de seus personagens, que lembram a imobilidade da morte; ora o mecanicismo de seus corpos artificiais chama a atenção dos futuristas; ou as suas possibilidades de distorção e implausibilidades encaixam-se às concepções surrealistas. Com certeza, o boneco é a figura ideal para substituir ou contracenar com o “ator marionetizado” do teatro contemporâneo. No teatro não tradicional, são tantas as opções compatíveis que a sua dramaturgia ampliou-se, sendo difícil agora definir padrões, ou limitá-la com alguns exemplos.

O teatro de bonecos manifesta-se hoje num esquema maior, denominado teatro de animação, abrindo caminhos para uma nova teatralidade.

A Coisa - Vibrações/Luz do Objeto-imagem

Criação coletiva, direção de Ana Maria Amaral. Montagem de O Casulo, 1989-1990.

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o (Mío c o itm

O objeto

'jiT ni objeto pode ser natural ou construido pelo ho- mem. O objeto natural existe independentemente do homem, tal qual sua função. Os objetos naturais podem ser minerais ou vegetais. Minerais: areia, terra, pedra, ferro, conchas, etc. Vegetais: árvores, madeira, frutas, flores, folhas.

Os objetos construídos pelo homem existem em re- lação a ele, isto é, existem para servido e só podem ser definidos dentro de seu universo. Matéria pura, forma, idéia realizada, pensamento solidificado, quaisquer que sejam as definições que arrisquemos, o objeto é sempre relativo às mãos do homem, ao seu ambiente, ao grupo ou à sociedade que o criou.33

Os objetos construídos pelo homem podem ser classificados de acordo com as suas funções originais, isto é, de acordo com as funções para as quais foram construídos.

Segundo Jean Baudrillard, os objetos podem ser industriais, artesanais, antigos ou contemporâneos, em uso e em desuso, únicos, em série, mitológicos, fetichistas, etc.34 Já Erwin Panofsky classifica-os apenas em práticos e estéticos.35 Os práticos são subdivididos de acordo com suas funções ou “intenções”.36

E, conforme seus “intuitos”, podem ser ferramentas, aparelhos ou veículos de comunica-

33

Ver Aiia Maria Amaral, Teatro de formas animadas (São Paulo: Edusp, 1992), parte III, capítulo 2.

34

Ver J. Baudrillard, Le système des objets (Paris: Gallimard, 1968).

35

E. Panotsky, O significado nas artes visuais (São Paulo: Perspectiva, 1979).

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ção. Os estéticos são também simples ferramentas ou sim- pies veículos de comunicação.

Os objetos podem ainda ser classificados por seus conteúdos, isto é, de acordo com os seus valores culturais e sociais, podendo assim ser agressivos ou sedutores, posi- tivos ou negativos, morais ou imorais, ativos ou passivos, masculinos ou femininos. Esses valores tornam-se mais complexos conforme a cor, a forma, a textura, o peso e o tamanho.

Existe ainda o enfoque psicológico, pessoal, parecendo a uns bonitos e bons, a outros, feios e maus.

Importante é a relação dos objetos entre si, isto é, o tipo de relação que mantêm: físico-espacial, formal, mecânica, de ligação, de exclusão, etc.

A relação físico-espacial entre os objetos pode ser por justaposição ou por contato, isto é, podem estar justapostos ou levemente em contato. Por exemplo, peças de encaixe, cúpula e pé de abajur, duas partes de uma caixa de fósforo, rolha de garrafa, cordão de sapato e sapato. A relação por contato ocorre quando há uma ligação espacial entre recipientes e conteúdos: as argolas e o pau de cortina que as sustenta, bola e raquete, cortina e janela, giz e lousa.

As características formais determinam outros tipos de relação: caixas quadradas, caixas ovais, objetos pontiagudos, objetos do mesmo tamanho ou de tamanhos opostos, semelhantes ou não, em série, ou mesmo vários objetos de tamanhos opostos estão juntos por determinação das suas semelhanças. No mesmo rol, e dependentes entre si, são os objetos feitos em série, os duplicados ou os complementares: pés direito e esquerdo de um par de sapatos, bolas de bilhar, vários pares de sapato de um mesmo

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tamanho, vela e castiçal. Importantes também são as re- lações mecânicas de controle, transporte ou exclusão: as peças do motor de um carro, rodas e direção; casco de um barco e vela; objetos confrontando-se e sujeitando-se ao poderio de certas peças automáticas, forçando -os a em tradas e saídas, etc.

Ligação existe entre os anéis de uma corrente, um pacote e seus barbantes, pontes, escadas, fios telefónicos. A relação de exclusão acontece entre um objeto e uma porta que repentinamente se fecha, uma barreira que sur- ge impedindo sua locomoção ou um pano que cai, ocul- tando- o.

Alguns objetos, ao mesmo tempo que têm trans- parências, proporcionam reflexos: água, espelhos, vidros, vidraças. Outros sugerem transposições, são passagem: portas, portais, janelas, pontes.

Naturais, ou construídos pelo homem, os objetos encerram em si um universo infinito de significados.

No documento o Ator e Seus Duplos (páginas 130-144)