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O teatro do objeto-imagem considerações sobre uma possível dramaturgia

No documento o Ator e Seus Duplos (páginas 173-181)

Objeto-imagem é um objeto natural ou fabricado pelo homem, colocado em cena por seus valores estéticos, isto é, por sua forma, cor, movimento, luminosidade, etc. Não se trata aqui de um jogo metafórico e também não necessariamente assume conotações simbólicas. Pode ser um objeto encontrado ou pode ser criado e confeccionado especialmente para uma determinada cena teatral.

No teatro de objetos há trama, conflito, mas no teatro do objeto-imagem, o que se busca é antes de tudo uma emoção visual. Pessoas e situações reais são transformadas em imagens abstratas, sofrem transposições.

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A representação da figura humana, quando surge, é abstrata ou parcialmente apresentada. Um pé, um olho, a nuca, dependendo do que se pretende ressaltar.

Se o teatro de objetos, apesar de sua concretude, é mais abstrato do que o teatro de bonecos, o teatro do objeto- imagem vai além. O teatro do objeto-imagem é o género teatral que mais afinidades tem com a dança, as artes plásticas, a música. Só que, em cena, o que se busca não é um resultado pictórico, plástico ou musical - um quadro, uma escultura, uma partitura nele, o que mais importa é a emoção do gesto no momento mesmo em que está sendo realizado.

O teatro de bonecos tradicional reflete e imita o homem. O teatro de objetos usa o objeto como metáfora da condição humana, substituindo o humano por figuras inanimadas. O teatro visual ou teatro do objeto-imagem busca apenas emoções estéticas. É um teatro sem tramas nem dramas. Não conta nenhuma historia, não tem começo, meio ou fim. As formas, figuras, imagens apresentadas não têm nenhuma relação com a realidade prática. A não- presença do ator ou a não-apresentação do cotidiano humano toca fundo em nosso inconsciente, mais do que pretende atingir o nosso racional.

A dramaturgia do objeto-imagem baseia-se na imagem e no movimento. A imagem não tem faixa etária, é, portanto, um teatro que atinge qualquer público. As crianças muito pequenas, de 2 a 6 anos, em fase pré-opera- tória, não discernem o particular, aprendem pelo geral. Portanto um teatro visual, sendo como é, um conjunto de elementos (imagens, movimento, luz, sons), ajuda-as a se desenvolver através dos vários elementos artísticos nele colocados. E os adultos são por ele levados ao sonho e à introspecção.

Difícil descrever roteiros de um teatro baseado em imagens, sons, movimento, luz, cujo desfecho não chega a conclusões racionais, despertando apenas emoções estéticas.

Sua dramaturgia tanto nasce de uma idéia, de um pensamento, de uma visão, como pode inspirar-se na leitura de poemas, textos ou na interpretação de um quadro ou escultura. Desenvolve-se também através de processos ou de

experiências práticas, vivenciadas, abstratamente

transformadas.

Mas, qualquer que seja a origem de sua concepção, a sua realização depende sempre muito mais da sensibilidade de um artista plástico do que das qualidades de um ator, pois é uma manifestação mista: teatro unido às artes plásticas.24

O teatro visual da Universidade Católica de Lublin, Polónia, criado e dirigido por Leszek Madzik, é um exemplo desse tipo de manifestação teatral que conjuga teatro com artes plásticas.

Scena Plastyczna começou seus trabalhos no início da década de 1970, um período de grande entusiasmo artístico na Polónia, quando do surgimento de grandes produções e diretores, como Grotowski, Kantor, entre outros. O teatro visual da Universidade de Lublin, a princípio, restringia suas apresentações aos palcos da universidade, mas logo foi alcançando outras plateias e hoje tem renome e uma atuação internacional.25

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Num trabalho de laboratório com atores, porém, pode-se despertar neles esse “novo olhar sobre a cena”, através de exercícios de sensibilização já sugeridos.

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A Universidade de Lublin, ou Katolickiego Uniwersytetu Lubelskiego (KUL), toi fundada eni 1918 e até 1939 desfrutou de grande liberdade. No período da Segunda Guerra Mundial, a Universidade foi desativada, mas, em 1945, as atividades acadêmicas foram retomadas. E considerada hoje uma das cinco melhores universidades da Polónia. Foi na Universi-

A Universidade Católica de Lublin assume um papel de mecenato no que se refere ao teatro visual. Através dela, Leszek Madzik pode tranquilamente criar e experimentar, sem as preocupações próprias de um teatro profissional. Leszek não trabalha só com atores, mas com estudantes de várias áreas. Suas oficinas têm a duração de um ano, terminando sempre com espetáculos experimentais. Seus

participantes propõem temas, trazem material,

confeccionam, criam. Entre as primeiras apresentações assinalamos: Ecce Homo, seu primeiro sucesso (1970), e, a seguir, Natividade (1971); A ceia, (1972); ícarus (1974);

Herbarium (1976); Caminhando (1980); Litoral (1983); A porta (1989/90); Kir (1997).

Leszek Madzik coloca em cena visões construídas com luz, som, cores, objetos e, incidentalmente, atores - elementos esses tratados, todos, num mesmo nível. Em seu teatro o ator é um símbolo, é um objeto em movimento, não atua individualmente, pois pertence a uma composição na qual cada elemento colabora em pequenas e precisas doses. Fala através de símbolos, sendo os mais constantes a penumbra, a luz, a água e a terra. Uma característica sua é o enquadramento de imagens - figuras inesperadas que surgem através de janelas, buracos, portas semi-abertas. A água está presente em quase todos os seus espetáculos. Outros de seus objetos-símbolos muito usados são pernas artificiais, torso humano, fragmentos de

dade de Lublin que se criou, em 1952, o primeiro grupo de teatro estu- daiitil da Polónia, que teve importante atuação ira vida cultural e acadêmica do país. No período de dominação comunista, quando não era permitida a apresentação de dramas religiosos ou metafísicos, peças de Claudel, Eliot, Chesterton e outros dramaturgos poloneses foram sempre enceiradas. A montagem de uma peça de Mickiewca, dramaturgo polonês, causou então grande celeuma, chegairdo a provocar, em 1955, repressão administrativa nas atividades acadêmicas.

corpo vivo, movidos sob ritmo e música. Madzik procura mostrar os objetos sob todos os seus possíveis ângulos, inclusive seu interior, descobrindo as suas diferentes possibilidades e sempre surpreendendo, como se os visse- mos pela primeira vez. Segundo Leszek, os objetos nos remetem ao passado.

As coisas materiais congregam associações emocionais, por isso guardamos ou destruímos as que despertam em nós memórias. Os objetos ficam impregnados das energias daqueles que deles se utilizaram, de tal forma que nem o tempo consegue destruí-las. [...] confio mais nos objetos do que nas pessoas [...] as pessoas mentem mas os objetos, não.26

Sobre seu trabalho, assim se expressa o crítico polonês Zbigniew Taranienko: “Leszek Madzik cria um diálogo entre a sensualidade da matéria e a pura espiritualidade, entre escuridão e morte, claridade e vida, entre a essência das idéias e a experiência. Toca o limite que existe entre o sensual e o sagrado”.27

Como que tentando definir o que é profano e o que é sagrado, Leszek Madzik mostra vida na matéria e descobre-se que ela está cheia de espiritualidade.

O boneco, para ele, interessa por ser a cópia do humano, representa um tempo estagnado, é símbolo de vida e morte.

Constantemente pergunta o que é a vida e a morte. “A expressão artística é relativa à personalidade do artista e do mundo que o rodeia.” 28

26 L. Madzik, “I Think in Irnages”, em Teatr, junho de 1983.

27 Zbigniew Taraiiienko, “Leszek Madzik’s Visual Theatre Technique”, em I

Meetings of Vision & Irnage Theatre, Katowice, 1986.

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A arte polonesa inspira-se na situação negativa do homem. Pensar e falar sobre a morte é reñetir sobre urna realidade humana. Mesmo que esse seja um tema difícil, o homem o aceita porque é um tema que o atinge profunda- mente. Não é, segundo Madzik, um tema triste. A morte não é fim, nem agonia, é êxtase. E a verdade do homem. Seu teatro reflete assim a alma polonesa, cheia de religiosidade e sofrimento. É através do sofrimento que os poloneses percebem o valor da vida humana, uma obsessão que, na Polónia, é resultado da vivência com a Igreja Católica, e também influência das opressões políticas que o país por muitos anos viveu, seja sob o domínio comunista russo, seja sob o domínio alemão, seja ainda durante o império Austro- Húngaro. Nesses períodos, a Igreja era a única resistência possível e foi através dela que a identidade cultural, as tradições e até mesmo a língua se mantiveram.29

Em seus espetáculos, vida e morte se confrontam num plano metafísico.

Scena Plastyczna não conta nenhuma história, mas o público recebe uma carga emocional e estética inesquecível. Por exemplo, Wrota (1980). O espetáculo é apresentado em três planos: começa no teto, passa em seguida para o plano do palco (separado do público por arames e fios) e termina no chão. Os espectadores, ao se levantarem de seus lugares, percebem que sob os seus pés, por baixo de um espesso vidro, figuras se movem - e não são bonecos nem objetos, mas pessoas, ou partes delas. O público é assim de tal forma circundado, que chega a perder as suas referências espaciais. A estranheza da perspectiva criada em cena provoca uma sensação de perda de equilí-

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A liberdade, na Polónia, é uma experiência recente.

brio, como se o espaço, de repente, deixasse de ser físico. Mas suas imagens, por mais impressionantes que sejam, não inspiram temor, ao contrario, são suaves e têm um efeito calmante. Levam-nos ao nosso interior, ao nosso

inconsciente. Existe nelas um drama cheio de

espiritualidade.

Pode parecer um paradoxo dizer que o teatro visual, ou Scena Plastyczna em particular, não é para ser visto, mas para ser sentido, pois nele existe uma atmosfera emocional muito grande que envolve o público desde o início, através de um ritual de entrada.

Um a um, em silêncio, o público penetra uma suposta sala, em total escuridão. Por longos minutos há um momento de suspense e espera, sendo pouco o que se vê devido à pouca luminosidade, enquanto o olhar se fixa sobre sombras de objetos não identificáveis, imagens rígidas e

imóveis (humanas? materiais?) que, de repente,

desaparecem ou imperceptivelmente mudam de expressão, sob acordes sutis que se misturam aos murmúrios e sons abafados das pessoas entrando e acomodando-se, formando um aglomerado de experiências em que o pensamento, em quietude percebido, se corporifica e se torna um elemento a mais. O espetáculo transcorre sem que se perceba o seu início, dura numa outra dimensão de tempo.

Scena Plastyczna é uma manifestação cênica mais próxima da performance, no sentido de ser a expressão de um indivíduo, ou seja, do autor/diretor, e seus atores ou

performers não devem modificar os seus conceitos.

Principalmente, é um teatro que, por não utilizar a palavra mas seu silêncio, tolocado em alternâncias de sons e música, é muito eloqúente. “As palavras tornam as cenas dramáticas muito concretas. E, à medida que o

ator se cala, ele se distancia do palco e se expande.”30 O silêncio, diz Leszek Madzik, é urna forma de comunica' ção com Deus.

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W. Chudy, Theatre of Non Verbal Truth (Lublin: KUL, 1990).

No documento o Ator e Seus Duplos (páginas 173-181)