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A materialidade da imaginação em Bachelard

No documento A imaginação do ator, um voo indizivel (páginas 95-100)

Capítulo I – Bases Conceituais Para Experimentação

1.4 Memória em corpo-ator, um suporte somático e vivo pela

1.4.2 A materialidade da imaginação em Bachelard

Bachelard, filósofo e epistemólogo contemporâneo da psicanálise, abre um campo original de pesquisas e de estudos ao localizar o pensamento, em sua produção, a partir de duas ordens distintas e polarizadas: o diurno – que inclui os conceitos epistemológicos, e o noturno - no qual encontramos um eixo entre a

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Para a prática do tai chi chuan é necessário entender o conceito de espaço em três níveis KUN –SHÜ- SHUM. KUN pode ter equivalência aproximada com vazio não-ausente “o termo vazio é, talvez a tradução mais aproximada do sentido original da palavra. VAZIO em chinês significa existência. O ESPAÇO, no nível da consciência pura é o KUN” (CHENG,1989). SHÜ significa não-concreto ele é um espaço diluído e energético, não pode ser determinado e tem a visão do Abstrato e está relacionado com o simbolismo do Dragão na mitologia chinesa, ou seja, SHÜ é o mistério e o não-distinguível. KHU seria o espaço da união e fusão entre corpo e a consciência SHÜ. E, por fim, SHUM é o espaço físico -o corpo. Na vivência destes espaços podemos exemplificar: KUN propõe: 1) ‘Não-intencionalidade’: realizar os movimentos ‘sem intenção’ visando o estado de clareza mental e emocional e em silêncio interior. 2) A marcialidade: a qual pela visão taoísta é fundamental a serenidade e a transparência interior, não há bem nem mal, é apenas com um espelho que reflete: não existem Eu nem glória. SHÜ propõe: 1.) Movimentos macios.2) A circularidade dos movimentos.3) A continuidade. 4) Arte Marcial: integração consigo e fluência de jogo em continuidade ação constante sem atrasar nem adiantar o tempo de reação. SHUM: 1)Corpo solto: músculos livres aproveitamento do peso e do eixo. 2) Raiz forte: base e enraizamento somático. 3) Arte Marcial: estilo interno que enfatiza o uso de energia no lugar da força bruta.

poesia e a ciência. Ao relacionar o diurno e o noturno, ele diz que se colocarmos a razão e a imaginação sob a luz da razão encontraremos a cisão; mas, se relacionarmos pela via onírica a razão e a imaginação, elas se interpenetram e se tornam complementares.

Bachelard apresenta a poética sob o signo dos quatro elementos: água,

terra, ar e fogo - de Empédolces57 - e psicanalísa-os, não apenas em sua imagem,

mas também na sua materialidade. Para falar da imaginação em Bachelard, iniciaremos a partir do que ele diz das polaridades de luz e de sombra, do seu olhar sobre a natureza humana, que revela a dualidade inter-relacionada diurna e noturna e também sua mutabilidade. Com isso, apresentamos a pedagogia bachelardiana, que engloba as dimensões do sonhar e o do pensar, pela qual o filósofo nos direciona à pluralidade do ser, mais especificamente, ao ‘eu’ interior. É a partir deste posicionamento que ele questiona a tradição ocidental que durante séculos sobrepôs o intelecto às percepções do sentido.

Bachelard valoriza a imagem poética e coloca a imaginação a serviço do pensamento. Por esta imensa contribuição, que desviou o pensamento do ‘lugar- comum’, ele foi considerado durante um bom tempo, sob as leis científicas e acadêmicas de seu período, como um filósofo sem rigor. Encontramos nos seus opostos, o sonho e o científico, ressonâncias do princípio de mutabilidade entre todas as coisas como, por exemplo, a noite tornar-se dia. Deste modo, para ele, o Homem também não se define apenas por seu lado diurno (intelectualidade), mas também pelo movimento constante entre a razão e o sonho – noturno (poesia e devaneio). Tal compreensão nos aponta um valor e um sentido à ambigüidade do ser. E, para explicar melhor esta diferença de atitude entre o posicionamento

57Empédocles de Agrigento filósofo grego pré-socrático – viveu na Sicília (cerca de 490-435 a.C.). Médico, filósofo, profeta e professor. Segundo Aristóteles, fundou a oratória e também a primeira teoria biológica. O autor substitui a busca de um único princípio das coisas pelos quatro elementos: fogo, terra, água e ar. Para ele, a combinação desses quatro elementos é a origem de todas as coisas: mas os dois princípios antagônicos, Amor (atração) e Ódio (repulsa), são os agentes que promovem a união e a desunião dos quatro elementos. Empédocles também atribui a produção dos seres ao acaso, e afirma que, somente os colocados sob situação propícia podem subsistir.

cientifico e o poético, evocamos o seu próprio dizer (...) quando se vive a espontaneidade de uma imagem, a imagem não é preparada pelo pensamento. Esta não tem nada de comum com as imagens que ilustram ou sustentam as idéias científicas. (Bachelard, 2005)

Sofrendo influências de seu tempo, Bachelard (2005) participou de grandes reviravoltas e questionamentos das artes e das ciências58, as quais nos trouxeram novas concepções sobre as categorias de espaço e de tempo. Segundo ele mesmo se apresenta, ele é um filósofo do ‘não’ e é pela negação das teorias tradicionais e pela positividade do ‘erro’ que ele propõe a filosofia do ‘des- aprendizado’.

Bachelard apresenta a imagem poética como um surgimento, um começo absoluto e, assim, ele a respeita no ‘ser próprio da imagem’, na sua própria singularidade, no instante poético e metafísico da sua criação. Este pensamento nos impede de olhar, psicologicamente, a expressividade poética fora da sua própria materialidade poética e, isso, em nossa compreensão, é um direcionamento estético e uma organização de linguagem.

Encontramos, no pensamento de Bachelard um Homem em que a

vivência da experiência acontece no confronto com a materialidade do mundo, e que tem de ultrapassar a realidade determinada. Esta ultrapassagem pode nos aproximar da experiência como vivência em corpo-ator e, esta aproximação se confirma ainda mais, para ele, na tomada de consciência: o sujeito que imagina é independente do sujeito que contempla. Ao compreendermos isso, chegamos ao conceito de fenômeno como um surgimento próprio da imaginação.

Conforme Bachelard, existem dois tipo de imaginação: a formal e a material. A formal é a atitude contemplativa e passiva, enquanto que a material é a vivência do encontro – o do Homem com a materialidade, ou seja, é materializar o imaginário.

Cabe ainda afirmar que, para ele, o trabalho é o processo transformador que pode ser o inversor da realidade e, o amor à matéria é vivido como o próprio mistério da matéria, como um mito da matéria e, também, como um tormento; ou seja, a imaginação engloba a resistência ao mundo59.

Em A psicanálise do fogo (2008) Bachelard fala sobre a exploração da materialidade e a ativação da imaginação. Ele adverte que o ferreiro tempera o ferro na água fria e que a luz brinca e ri na superfície das coisas, mas só o calor penetra... Onde o olho não chega, onde a mão não entra, insinua-se o calor (BACHELARD, 2008).

Nesta outra visão da materialidade, que alimenta e que nutre a vida, compreendemos a lei do devaneio, ou seja, é na dualidade que está a substanciabilidade da matéria. A dualidade também é a célula mãe da estrutura dramática e é, ainda, a estrutura do mito morte-vida. Pela dualidade também chegaremos ao narrador porque, para Bachelard, o mundo não é a continuidade física da realidade, mas, sim, a linguagem poética que se revela pela sua própria continuidade. Este pensamento do filósofo é muito revolucionário.

Assim, por meio desta reformulação, se torna possível distinguir o objeto do seu narrador. Tal compreensão pode se aproximar da compreensão cênica de narrador e também do testemunho do ator sobre seu papel, ou ainda, do movimento contínuo entre contemplação e ação... continuamente.

Em A Poética do Espaço, ao falar da fenomenologia que quer viver as imagens na função de habitar, Bachelard (2005) nos diz que não nos entreguemos às seduções das belezas exteriores, porque ela incomoda a meditação da intimidade. Especificamente no capítulo A concha, ao propor a fenomenologia da concha habitada, ele afirma ao leitor que: A melhor marca da admiração é o exagero. Já que o habitante da concha espanta, a imaginação logo fará saírem da

59 Sobre esta resistência Meyerhold diz: Toda arte é construída sobre a auto-limitação. A arte é sempre e antes de tudo uma luta

concha seres espantosos, seres mais espantosos que a realidade. Ele evoca o álbum Le moyen age fantastique não apenas como imagem, mas em sua materialidade: (...) veremos reproduções de gemas antigas em que ‘os animais mais inesperados (...) saem de uma concha como da caixa de um prestidigitador’

(BALTRUSAITIS apud BACHELARD, 2005, 119). A partir da evocação acima

Bachelard nos leva a pensar na inutilidade da comparação com uma caixa de mágicas se nos colocarmos no próprio eixo das imagens e diz

quem aceita os pequenos espantos prepara-se para imaginar os grandes. Na ordem imaginária, torna-se normal que o elefante, o animal imenso, saia da concha de um caracol. Será, excepcional, entretanto, que lhe peçamos, no estilo da imaginação, para entrar nela. (...) nunca na imaginação entrar e sair são imagens simétricas. (...) Tudo é dialética no ser que sai de uma concha. E, como ele não sai inteiro, o que sai contradiz o que fica fechado (BACHELARD, 2005, 120).

Ainda, neste mesmo capítulo, o autor estuda outras obras e apresenta a estranha mistura de seres: no ser que sai de sua concha sugere os devaneios de ser misto. Não é somente o ser “meio carne meio peixe”. É o ser meio morto e meio vivo e, nos grandes excessos, metade pedra metade homem e, com isso, revela a reviravolta que imaginação faz na realidade, e ele vai além, trata-se do contrário do devaneio petrificante. O homem nasce da pedra (BACHELARD, 2005, 120).

Deste modo, pensamos que ele quer reviver a ação, na sua ‘observação primeira’ quando diz:

entretanto se pudéssemos restaurar na própria observação uma ingenuidade total, isto é, reviver realmente a observação inicial, reativaríamos esse complexo de medo e curiosidade que acompanha toda ação inicial sobre o mundo (BACHELARD, 2005, 122).

Ler sobre reviver a ‘observação primeira’ da imagem, nos faz sentir muito próximos das recriações pelas quais o ator procura e investiga

incansavelmente o como se revificar. É só por este refazer que o ator pode concretizar a forma e torná-la, mais uma vez, verdadeiramente poética.

Encontramos forte correspondência nesta expressão como o estado interno capaz de reorganizar um sentido para o ator agir, um estado que Copeau (s/d) chama de doação ou de ‘monstruoso’.

No documento A imaginação do ator, um voo indizivel (páginas 95-100)