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A realidade da matéria em Bergson

No documento A imaginação do ator, um voo indizivel (páginas 90-95)

Capítulo I – Bases Conceituais Para Experimentação

1.4 Memória em corpo-ator, um suporte somático e vivo pela

1.4.1 A realidade da matéria em Bergson

Ao apresentar a realidade do espírito e a realidade da matéria, Bergson47 utiliza a memória48 como um exemplo desta relação, que esbarra teoricamente em algumas dificuldades, devido a sua dualidade (élan e matéria bruta). Mas ele vai além, e apresenta a falsidade e a limitação de pensarmos a matéria como a representação que temos dela e, a matéria em questão, é o corpo.

Para Bergson a realidade é duração e consciência e, é nesta perspectiva que ele une a intuição e a experiência. A intuição como a alma da experiência verdadeira e como o ato que nos posiciona dentro das coisas. Ou seja, um movimento vivo da própria duração da realidade.

Bergson apresenta o homem como capaz de superar o domínio da inteligência e de possuir o impulso criador – élan vital, ou seja, o autor apresenta uma ‘evolução criadora’, o impulso uno que cria incessantemente todas as coisas. É deste impulso sobre a matéria bruta que se cria, a partir da novidade e da diferença. Bergson, ainda, apresenta a vida como “pura inderteminação” e evoluir significa aperfeiçoar-se.

Para falar da inter-relação existente entre as imagens, as quais só podem ser percebidas quando os sentidos estão abertos, Bergson evidencia que estas reações seguem leis constantes, organização que ele denomina leis da natureza,nas quais o passado e o futuro devem estar contidos no presente da imagem. Ao revelar o domínio de um tipo de imagem sobre outras, ele diz que, no

47 (1859-1941)

48 A memória, praticamente inseparável da percepção, intercala o passado no presente, condensa também, numa intuição única, momentos múltiplos da duração, e assim, por sua dupla operação, faz com que de fato percebamos a matéria em nós, enquanto de direito a percebemos nela (BERGSON, 2007, 77).

entanto há uma que prevalece sobre as demais na medida em que a conheço não apenas por fora, mediante percepções, mas também de dentro mediante afecções: é meu corpo (BERGSON, 1995, 12). E, é este reconhecimento interno, imaginário e sensível, que nos disponibilizamos a investigar em corpo-ator, o qual reconhecimento, pela nossa compreensão, se aproxima do conceito apresentado por Keleman (1995), o de enraizamento somático.

Por isso que, ao falar sobre a memória e a imaginação em corpo-ator a partir da imagem encarnada, reafirmamos a nossa compreensão da unidade corpo- imagem como imaginação e como memória somática viva. Para Bergson (1999),

(...) nosso corpo não é nada mais que (...) a parte sempre presente a que acaba a todo momento de passar. Sendo ele próprio imagem, esse corpo não pode armazenar imagens, já que faz parte das imagens; por isso é quimérica a tentativa de querer localizar as percepções passadas, ou mesmo presentes, no cérebro: elas não estão nele; é ele que está nelas (BERGSON, 1999, 177).

Ao falar do corpo como um ‘suporte vivo’ e como memória virtual que se

atualiza constantemente no presente - no ponto “S”49 - e também da sobrevivência

das imagens como ação, Bérgson (1999, 89) fala de duas memórias distintas50. Uma, fixada no organismo, elaborada por conjuntos sensórios motores que o hábito organizou, e que por isso é uma memória quase instantânea, à qual o passado serve de base: antes hábito do que memória, ela desempenha nossa experiência passada, mas não evoca sua imagem (Bérgson, 1999, 176). Outra, é a ‘memória verdadeira’, coextensiva à consciência; ela retém e alinha, uns após os outros, todos os nossos estados à medida que eles se reproduzem.

49 No cone da memória de Bérgson (1999), na base P, está a realidade presente; em AB, a memória; e, em SAB, fica o ponto de contato entre percepção, memória e a realidade presente. Com o tempo a distância entre S e AB aumenta, mas o contato com a realidade nunca é um perceber puro, desconectado de AB.

50Dessas duas memórias, das quais uma imagina e a outra repete, a segunda pode substituir a primeira e freqüentemente até dar a ilusão dela (BERGSON, 1999, 89).

O espaço que queremos focar, todavia, está nos vínculos possíveis entre ambas, já que o corpo-ator é a parte invariavelmente renascente (...), a parte sempre presente (BERGSON, 1999, 177) durante suas ações.

O corpo-ator sofre em seu cotidiano de trabalho constante provocações, estímulos e desafios à sua imaginação, deste modo, aquilo que distinguimos como hábito e como memória pura51, de certo modo se vinculam e se reorganizam, quando em realidade teatral. O hábito, pela sistematização52 de procedimentos formadores que visam despertar o imaginário e elaborar a segunda natureza para agir; por ele é possível criar referências psicotécnicas. Compreensões que se ligam à ‘memória pura’, já que, por ser no exercício constante do imaginário psicofísico que é possível encontrar um caminho à criatividade como ação física, como a resposta inesperada, e que após o seu surgimento necessita ser elaborada até que seja passível de ser recriada.

Assim, nas investigações com as imagens o ator pode perceber que algumas delas podem ser mais claras e, com isso, apontam com mais clareza o seu sentido. Na compreensão e na elaboração deste sentido, o presente pode se atualizar constantemente e, entre essa imagem muito particular, que persiste em meio às outras e que chamo meu corpo, constitui a cada instante, como dizíamos, um corte transversal do universal devir (BERGSON, 1999, 177).

Deste modo, em corpo-ator, estes conceitos como vivência53 e como saber psicotécnico são vitais, eles atuam como conhecimento “atual” e

51 Mas, independente dos serviços que podem prestar por sua associação a uma percepção presente, as imagens armazenadas pela memória espontânea tem ainda um outro uso. Certamente são imagens de sonho; certamente costumam aparecer e desaparecer independentemente de nossa vontade; e é justamente por isso que somos obrigados, para saber realmente uma coisa, para tê-la à nossa disposição, a aprendê-la de cor, ou seja, a substituir a imagem espontânea por um mecanismo motor capaz de supri-la (BERGSON, 1999, 93).

52 Toda imagem-lembrança capaz de interpretar nossa percepção atual insinua-se nela, a ponto de não podermos mais discernir o que é percepção e o que é lembrança.(...) Assim criamos ou reconstruímos a todo instante. Nossa percepção distinta é verdadeiramente comparável a um círculo fechado, onde a imagem-percepção dirigida ao espírito e a imagem-lembrança lançada no espaço correriam uma atrás da outra (BERGSON, 1999, 117).

reconhecimento “do virtual” encarnados, e podem configurar um saber em si mesmo e sobre si mesmo. O saber no ponto “S” do cone de Bergson (1999) é o presente avançando sem cessar, e sem cessar também toca o plano móvel P; é também, o momento no qual se concentra a imagem em corpo-ator, ou seja, o ponto S também pode ser o reconhecimento de um ponto de partida, no presente, e que evoca o virtual (imagem) constantemente. Deste modo, o plano S concentra- se como imagem em corpo fazendo parte do plano P, e: P essa imagem limita-se a receber e a devolver as ações emanadas de todas as imagens de que se compõe o plano (Bergson, 1999, 178). Este ponto vivo de conexão que atua como um ‘suporte’ somático é o impulso organizador que ativa e orienta a reação motora no espaço.

É a partir destes direcionamentos iniciais que apontamos o sentido de memória que estamos propondo, para além das “associações por contigüidade e por similitude”, para os caminhos sensórios motores que podem gerar acessos em corpo-ator, “às lembranças impotentes, ou seja, inconscientes, o meio de se incorporarem, de se materializarem, enfim, de se tornarem presentes”. É esta

memória funcional e viva que tem de ser exercitada e estimulada em corpo-ator54.

Em última instância, em corpo-ator, o saber, a memória, a atenção, a concentração e a imaginação são saberes que têm sua função na ação, ou seja, saber é saber recriar e, aprender, é saber experimentar para que seja possível vivenciar e compreender.

Este fenômeno de resgatar a ação engloba o imaginário, a memória e a imagem, as quais são faculdades que devem se preservar em exercício constante

54 Os outros suportes de memória, além do corpo-ator, como diários, desenhos, fotografias, vídeos, entre outros, têm importância fundamental como registro dos caminhos orientadores do processo e, também, durante o próprio processo para contribuir com a elaboração dos os acessos psicofísicos em corpo-ator, ou seja, eles são igualmente importantes. Os registros das imagens, das

angústias e das revelações proporcionam um outro ponto de vista e oferecem ao ator um retorno, sob uma percepção mais distanciada da imagem, e não menos honesta.

no trabalho do ator e, estas faculdades, têm funções determinantes, tanto nos momentos de improvisação e de adaptação quanto nas atualizações do material conhecido e codificado em corpo. O corpo é o espaço da passagem, ele é a conexão que pode dar coesão entre as ações externas e as internas, ele é o ponto vivo de atualizações destes movimentos contínuos de movimentos recebidos e devolvidos, o traço da união entre as coisas que agem sobre mim e as coisas sobre as quais eu ajo, a sede, enfim, dos fenômenos sensório-motores (BERGSON, 1999, 177).

Para localizar a imaginação que queremos investigar em contexto poético, é preciso ir além da continuidade de tempo em Bergson (1999) e, é preciso evocar a fenomenologia da alma, pela qual, é possível resgatar o primeiro compromisso de uma obra (BACHELARD, 1995, 5).

A imaginação criativa em corpo-ator, quando acontece, impera sobre o ator, e, é esta a inversão proposta a ser investigada em laboratório, a qual pode conduzir o processo da escrita viva como materialidade em corpo-ator. O que queremos dizer é que no trabalho criativo do ator: Numa imagem poética, a alma firma sua presença (BACHELARD, 2005, 6) e, enraizada em corpo, cria outro tempo e dá o sentido da atmosfera criada. Bachelard (2007) diz que: no instante poético o ser sobe ou desce, sem aceitar o tempo do mundo, que reduziria a ambivalência e à antítese, o simultâneo e o sucessivo (BACHELARD, 2007, 101).

Para investigar esta verticalidade da alma criativa, precisaremos partir do enraizamento somático psicotécnico e resgatar o como nos disponibilizamos a investigá-lo55 em laboratório e, também, a partir de onde iniciaremos a jornada. É necessário, além disso, reafirmar a necessidade de exercitar, em treinamento, o

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Pelas investigações em treinamento e, principalmente àquilo que nos disponibilizamos trabalhar por meio deles. Compreensões que incluem o estado de espírito curioso e a alma inquieta, em corpo-ator, como psicotécnica. Saber corporal e sensível que busca como treinamento, antes de qualquer coisa, aceitar as necessidades impostas por cada processo; ou seja, queremos aprender a ouvir o que o corpo tem a dizer em sua dramaturgia poética.

espaço56 interno e vivo em corpo-ator, no qual centralizamos o estudo. Quanto à ontologia dos conteúdos criativos pode ser inconsciente, mas a materialidade tem de ser corporal, psicofísica.

Assim, a memória, a imaginação e o corpo-ator estão indissociáveis e inseridos em um contexto empírico, artístico, poético e, essencialmente, presencial. Esta compreensão nos leva a perceber e a investigar a criação, a singularidade e a materialidade como continentes vivos da imaginação, momento em que o sujeito e a materialidade do objeto se transformam e tudo se passa como se nesse conjunto de imagens que chamo universo, nada se pudesse produzir de realmente novo a não ser por intermédio de certas imagens particulares, cujo modelo me é fornecido por meu corpo (BERGSON, 1995, 12).

No documento A imaginação do ator, um voo indizivel (páginas 90-95)