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Imagens dramatúrgicas

No documento A imaginação do ator, um voo indizivel (páginas 168-174)

Capítulo II Ações e Reflexões em Experiência

I) Imagens dramatúrgicas

O processo criativo foi desenvolvido a partir dos momentos de improvisações, que foi posterior ao momento de dinâmicas pelo espaço. As dinâmicas pelo espaço tinham como propósito concentrar a atenção das atrizes (Clarissa e Flora) até alcançarem o estado criador. E, em determinado momento dessas dinâmicas acontecia uma inversão e uma descontinuidade de ações.

A inversão está relacionada com a intenção, ou seja, até determinado ponto eu observava que elas estavam, de certo modo, direcionando as

improvisações e utilizando estes direcionamentos de atenção para trabalhar a precisão e as alterações de tempo-ritmo; era um espaço em que a atuação das atrizes oscilava entre a precisão e a espontaneidade; também era um espaço para exercitar o agir lúdico. Estes elementos eram trabalhados até que em um determinado momento a ordem regente era invertida e, quando isso acontecia, as atrizes já tinham sido capturadas por uma outra qualidade de imagens, a que denominamos imagens autônomas e dramatúrgicas, ou seja, as imagens do inconsciente.

Durante estes momentos em que a imaginação imperava, a reorganização corporal e espacial tornava-se mais evidente e mais espontânea e, de fato, em ato, as atrizes respondiam e reagiam àquilo que ‘se apresentava’ como conteúdo imaginário e como materialidade expressiva.

A descontinuidade está relacionada com a transição do momento de dinâmicas pelo espaço para o de improvisações. O que estamos querendo dizer é que, aparente e objetivamente, não havia esta passagem linear e previsível de um momento para o outro. Estas transições para o estado criador aconteciam ou não aconteciam, mas os procedimentos de aproximação eram sempre os mesmos e

este acesso, possivelmente, foi uma aproximação com a camada ‘misteriosa ’ da

criação.

Por isso, não é possível afirmar precisamente o que desencadeava este processo de criação dramatúrgica, não era um acontecimento apenas causal e, de fato, acontecia a descontinuidade com um outro tempo, e pelo agir imaginário.

Mas, podemos, sim, descrever uma parte - a causal - que inclui como o trabalho foi desenvolvido e como estes estados criativos aconteceram; como eles foram observados; e, essencialmente, como se deu o processamento e as configurações criativas.

O momento das dinâmicas pelo espaço colaborava intensamente com as improvisações; servia para concentrar as atrizes sobre o espaço, sobre sua imaginação e sobre si mesmas. Estes procedimentos tinham como propósito trabalhar a psicotécnica em circunstâncias que apresentassem problemas a serem

resolvidos apenas pela improvisação, ou seja, como vivência. Este momento era o espaço de confronto com vários aspectos e com alguns limites também. Era direcionado ao exercício do esforço, da curiosidade e da superação. Às vezes, internamente, estas conquistas, para as atrizes, eram muito difíceis e caras, mesmo que o resultado externo ainda não tivesse sido suficientemente alcançado. É a esta superação sobre si mesmo, como essência mobilizadora do fazer artístico (proposta por Stanislávski como atitude interna indispensável ao ator (não quebrar a linha interna de ação); como o constante movimento da curiosidade, do enfrentamento e da superação, que propusemos nos aproximar e, a partir das inquietações em laboratório, encontrar as próprias convicções criativas.

A concepção das partituras emergiu a partir da concepção de pequenas

células dramatúrgicas77 que foram desenvolvidas e compreendidas pelo tempo de

laboratório. Durante estes momentos de inversão e de descontinuidade criadora, as atrizes permaneciam trabalhando e investigando corporalmente suas imagens até compreendê-las como ação.

A partir do primeiro contato com estes conteúdos, as atrizes retornavam às origens do impulso (às vezes no espaço físico, às vezes nos espaços subjetivos, dentro de si mesmas) e refaziam, refaziam... até entenderem, suficientemente, o material que surgia. Este foi o espaço de enfrentamento com a matéria e também o de exercer o esforço e a intuição.

Entender suficientemente significa saber como refazer; é o entendimento psicofísico da imagem como ação-física e em relação ao espaço. Depois deste processo de elaboração e corporificação básica - a tomada inicial de consciência - as atrizes podiam dar nomes e escrever em seus diários o acontecimento interno, a forma, a localização no espaço, o nome da cada imagem ou de cada seqüência, impressões, sensações, perguntas, desenhos, e todas as informações possíveis sobre o material identificado como dramatúrgico.

77 Denominamos células dramatúrgicas, ou células de ação, as pequenas estruturas dentro das grandes estruturas dramatúrgicas; uma organização como células rítmicas, ou células melódicas, ou ainda, como parágrafos.

Em nossas observações foi possível perceber que desde as primeiras improvisações dramatúrgicas as imagens surgiam como células, ou seja, como pequenas seqüências de acontecimentos; e é a organização destas seqüências como partitura, que é a materialidade dramatúrgica em corpo-ator, que estamos chamando de dramaturgia corporal, improvisos a partir do contato com o self corporal.

Após o primeiro contato com esta dimensão e com a emersão destes conteúdos, eles eram retomados no laboratório seguinte, sempre após as dinâmicas pelo espaço. Este processo de retomada se iniciava a partir do resgate dos impulsos, da conexão com as imagens- era a procura da compreensão e apreensão do impulso organizador poético. Depois desta conexão e com o material já resgatado como acontecimento interno, iniciávamos os processos de investigações dramatúrgicas, de repetições, de seleções e adaptações psicotécnicas.

A Flora tinha uma seqüência de imagens que demorou certo tempo até que a atriz compreendesse o que estava acontecendo, ou seja, qual era ação e quais eram, de fato, os acontecimentos. E, enquanto ela não entendia, continuava a procura do impulso pela retomada às origens da ação. Por vários laboratórios ela retomava e resgatava os impulsos e os ‘movimentos’ descobertos. Mas estes não eram ‘movimentos’, no sentido de não terem conteúdo dramatúrgico, e, sim, por ainda não estarem conscientes para ela como ação, o material ainda estava latente.

Assim, a atriz seguia o trabalho pela intuição e pelas repetições, mas alguma coisa ainda a segurava, ela precisava de mais tempo para compreender aqueles conteúdos e se adaptar a eles.

Era uma seqüência que acontecia depois da célula “a gruta e o fio de luz”. O movimento externo acontecia quando ela levantava do chão e se dirigia ao centro do espaço e, em um único impulso rápido e muito preciso, simultaneamente, os dois braços se abriam e as palmas das mãos ficavam

alinhadas uma com o rosto e a outra em relação a nuca. Assim ela permanecia no centro do espaço e girava a cabeça para uma palma da mão e para a outra, até desenvolver estes movimentos da cabeça como um giro do corpo inteiro, ou seja, olhar várias vezes com um tempor-ritmo específico, para os dois espelhos, a transformava.

Este material é inquestionável como conteúdo dramatúrgico, mas a Flora precisava investigá-lo e compreendê-lo ainda mais até que fosse possível descobrir como trabalhá-lo e, por fim, como se adaptar a ele.

Levou algumas semanas para a atriz tomar consciência de que suas mãos eram espelhos e que ela olhava para eles e, ainda, que cada um refletisse uma imagem diferente. E, demorou um pouco mais, para ela entender e aceitar que era o giro do corpo que iria acelerar o tempo dos acontecimentos, e estes acontecimentos manifestos como giro iriam transportá-la a um outro espaço-tempo de ação; ou seja, uma troca de cenário, mesmo.

A partitura da Flora desde o começo apresentou espaços distintos e passagens, e, por estas ações com as mãos e com o giro, ela investigava como elaborar a transição de um espaço de ação ao outro. Assim, eu podia observar a Flora procurando o acontecimento que desencadearia a transição; ou seja, um núcleo dramatúrgico.

Para as ações de olhar para espelhos, a atriz teve tempo suficiente de as trabalhar e atingir a adaptação corporal. Mas o giro como transformação e como passagem não atingiu a vivência e a compreensão física como acontecimento. Neste momento ela reconhecia racionalmente o que acontecia como ação, mas o corpo precisava de mais tempo para a vivência e para se adaptar aos estados psicofísicos provocados pelo giro. Ou seja, ela entendeu a ação, mas ainda investigava como seria possível construí-la corporalmente. Estudar este espaço foi um processo caro para a Flora, mas também foi um momento de algumas conquistas. Trabalhar este momento, para Flora, era se colocar diante de diversos limites e também era enfrentar as resistências da matéria.

Esta célula ficou denominada como “transformação das mãos em espelhos”.

Abrir o espírito aos dizeres do corpo em imaginação, foi permitir que o corpo fosse ‘dissolvido e metamorfoseado’ e recriado pela dramaturgia.

Por conseguinte, as camadas biológicas, psicológicas e afetivas fundidas na dimensão humana estão processadas e reorganizadas sob a luz da imaginação, pelos caminhos investigativos do processo criativo - incapaz de evitar que seus movimentos empíricos transbordem dos limites individuais e dos contornos científicos. Como já foi dito, este era um espaço suprapessoal e também uma possibilidade de vivenciar o eixo do tempo como instante.

Em laboratório, estes processamentos atuaram sob as organizações da imaginação, da sensibilidade, da percepção, e da adaptação. Eles foram observados e trabalhados tecnicamente sob o método das ações-físicas e organizados pelo sentido latente, apontado pela estética do silêncio.

Ao escrever a expressão estética do silêncio me lembrei de uma experiência do tempo da graduação. De volta ao campus UFSM-RS, surge a imagem de um tempo de trabalho com Thomas Leabhart (Mimo-corpóreo ISTA – discípulo de Etienne Decroux, Prof. do Pomona College, departamento de teatro e de dança- Claremint, CA/EU, que durante 20 dias trabalhou na UFSM com os alunos do curso de artes cênicas). Durante as manhãs trabalhávamos o corpo de forma intensa, consciente, detalhada e em silêncio profundo. Ficávamos durante muito tempo (aproximadamente 90 a 120 minutos) trabalhando e soltando a coluna e só depois de horas de concentração e de preparação iniciávamos - igualmente em silêncio - improvisações corporais. Em uma das seqüências propostas como final do aquecimento e concentração, havia um movimento de equilíbrio e uma imagem: o “grand canyon”. Mesmo sem conhecer o “grand canyon” ao qual Thomas se referia, a latência da imagem dele despertou a minha, e então, entre ambas, podíamos nos encontrar e comunicar. Até hoje tenho essa imagem muito viva em mim.

E, agora ao escrever “grand canyon” lembrei de um outro trabalho, desta vez mais atual e de minha autoria: era um solo-cena (atuava em algum espaço entre o teatro e a dança), uma composição que fiz para um espetáculo de dança-teatro da Unicamp, no qual atuei de 2004 a 2007. Nele, dançava- atuava “a vertigem”. Em minha seqüência de imagens havia um texto: “É a voz do vazio...lá! Lá embaixo!”, momento em que trabalhava o equilíbrio corporal até o limite do desequilíbrio. A imagem por trás do texto era a do vôo. Mas, só agora, ao escrever esse texto, compreendo que era o “grand canyon”, do Thomas, transcriado em minha concepção sobre a vertigem em “Es-boço”, de Sayonara Pereira.

No documento A imaginação do ator, um voo indizivel (páginas 168-174)