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Investigações psicofísicas sobre o corpo

No documento A imaginação do ator, um voo indizivel (páginas 153-159)

Capítulo II Ações e Reflexões em Experiência

I) Investigações psicofísicas sobre o corpo

Objetivamente iniciamos este processo a partir do relaxamento das tensões excessivas no trabalho sobre os pés. Especificamente, na região dos metatarsos, entre os dedos, nas pequenas articulações dos dedos, na borda externa, interna e no centro.

A transferência do peso do corpo entre o calcanhar, o metatarso e os dedos, contribuiu para ampliar um pouco mais o seu aproveitamento consciente - base de movimento que integra a mecânica corporal com a imaginação.

Quando observava que os pés das atrizes agiam como garras, e que para manter o equilíbrio do corpo eles, os pés, agiam como se pudessem ‘se agarrar ao chão’, ou seja, muito tensos, propunha que elas percebessem que esta reação inconsciente – de querer se agarrar ao chão com os pés - aumentava a instabilidade do corpo, ou seja, se afastava da sua função técnica como base, que, por sua, vez influencia o estado de atenção e de concentração. Uma base instável significa instabilidade no corpo-ator como todo.

A partir desta observação dos pés e/ou de seus dedos que agiam como se fossem garras, foi possível propor um trabalho de reorganização consciente do tônus. Este trabalho iniciou pelo relaxamento daquilo que corporalmente identificamos como excesso e, com isso, ampliamos o espaço interno das bases como ação de apoio e de sustentação, até que a compreensão da dilatação corporal atingisse, de fato, a reorganização dos dedos dos pés. Deste modo, os pés como unidade psicofísica e imaginária, encontravam um caminho para se desenvolver e agir como raízes. Concretamente estas elaborações significam um aumento significativo da confiança consciente do ator sobre a função das suas bases para agir.

Aos poucos, pelo pisar, rolar, amassar, agarrar e empurrar diversos objetos sob os pés, os pés-garras começaram a encontrar seus meios de transformação, até que fosse possível agir mais como pés de pato e como raízes, ou seja, eles estavam se tornando mais abertos em sua horizontalidade e, também, mais dilatados em sua verticalidade imaginária.

Utilizar diversos materiais entre o chão e os pés, e com diferentes movimentos e intenções, tinha como propósitos simultâneos amaciar e acordar o corpo inteiro. De fato, estes exercícios alargavam os pés, aumentavam o comprimento dos dedos, e abriam canais sensíveis. Mas isso só acontecia quando

havia o exercício da atenção volitiva. Ou seja, sem a ação, a intenção e a imaginação do ator, estes exercícios poderiam se desenvolver como um relaxamento exclusivamente passivo.

Por esta prática foi possível exercitar a atenção e a percepção; a primeira, porque os objetos utilizados como bases, se não fossem utilizados a partir do acordo com o eixo do corpo – em respiração - eles rolavam; a segunda, se altera ao perceber a pressão e o tônus em transformação e o espírito em imaginação. Com este fazer era exigido das atrizes que criassem um sentido para si além do proposto.

Para que fosse possível reconhecer as ressonâncias deste trabalho pelo corpo inteiro, foi preciso integrar aos movimentos da atenção as sensações e a imaginação; ou seja, para completar os propósitos deste procedimento não era suficiente que as atrizes trabalhassem apenas sobre aquilo que lhes era proposto. Também lhes era solicitado que investigassem seus meios para estarem receptivas para poderem perceber os diálogos somáticos, e ainda, para descobrir(em) como aproveitá-los.

Deste modo, fomos investigando correspondentes corporais do ‘não- agir’ e por estes experimentos percebíamos que estávamos alimentando aquilo que nos propusemos, ou seja, a singularidade da compreensão e da atenção de cada atriz de procedimentos comuns e respostas singulares.

As reorganizações do tônus, da consciência e da atenção corporal trabalhadas insistentemente pelo tempo de laboratório foram os elementos fundamentais para os estudos e suas transformações. Reorganizar o tônus dos pequenos músculos dos pés podia repercutir pela perna inteira até a região lombar, coluna e principalmente na região da nuca e do pescoço. Ir adiante, na abertura destes canais energéticos apontava um caminho ao desenvolvimento do processo criativo e sensível. Estas eram as primeiras aproximações com o self corporal.

Depois de um tempo, aproximadamente 4 meses, os objetos utilizados foram deixados de lado, todavia, a referência psicotécnica, o treinamento e as compreensões psicofísicas permaneceram e se integraram como conceitos em-

corpo que, quando utilizados, proporcionam mais liberdade e confiança para agir, e, sempre que necessário, era possível retornar a eles.

Foi possível observar, com o passar do tempo em laboratório, que o corpo-ator se apropriava do espaço a ele disponibilizado como espaços de investigações. Aos poucos as atrizes foram, por si mesmas, se localizando diante do trabalho proposto e foram conhecendo e explorando os seus meios para identificar cada uma ao seu modo, como se organizar para agir.

As articulações do corpo também foram investigadas de forma detalhada. Estes processamentos foram desenvolvidos com movimentos de rotação e de torção, em diversos tamanhos e em dois sentidos (esquerdo e direito). Utilizávamos também o próprio peso da perna em relação à força da gravidade para ajudar a perceber o quanto ela, perna, estava desnecessariamente tensa e, com isso, podíamos nos aproximar dos pontos de tensão e por meio destas identificações era possível continuar o trabalho.

As rotações e as torções, associadas às intenções de torcer e espichar sem forçar, propunham caminhos para os estados da materialidade procurada com este exercício. Queríamos apresentar meios para a flexibilização corporal direcionada a elaboração de um estado imaginário -‘como que oleoso, viscoso’ - que lubrificasse as articulações imaginárias e que fluísse pelo corpo.

Com o trabalho sobre as articulações era possível direcionar a atenção para alguns acontecimentos em si mesmos, até então, despercebidos. Eram compreensões em corpo-ator da sua memória corporal sutil e também o desenvolvimento consciente da força dos tendões e das articulações, propostos pelo treinamento do movimento da energia.

Trabalhar sutilmente as articulações também é um meio de trabalhar o corpo-ator inteiro e com isso acessar sensações como imaginação, como lembrança, como reconhecimento, como estranhamento e como criação. O objetivo desta unidade em ação é a compreensão psicofísica do ator sobre si mesmo como materialidade autocriadora.

Por conseguinte, foi indispensável para o desenvolvimento deste laboratório o reconhecimento dos limites de cada momento e, só a partir desta observação, foi possível entrar em contato com aspectos vivos em corpo-ator, e este ainda é um acordo indispensável para a continuidade do trabalho.

O trabalho sobre as articulações do corpo atuava freqüentemente sobre os tornozelos, joelhos, entre o fêmur e a bacia, ombros, cotovelos, pulsos, e dedos da mão, dos pés e coluna.

A coluna tinha movimentos e tempo de trabalho exclusivos, relaxávamos e alongávamos os espaços entre as vértebras e, aos poucos, íamos despertando os ‘seus olhos adormecidos’. Estes momentos exigiam tempo e atenção até que a coluna estivesse suficientemente livre para agir.

Trabalhamos com freqüência a imagem-ação de esfregar o lado interno da pele das costas com as vértebras da coluna, nos sentidos verticais e horizontais. E, conforme o corpo-ator entrava nesta imagem como ação imaginária, enraizada no soma, mais estes movimentos se desenvolviam em seus aspectos fisiológicos, energéticos e imaginários. Este exercitar dos ossos da coluna em um espaço vazio dentro do próprio corpo se desenvolvia gradativamente até englobar todo o esqueleto. E, assim, alargávamos a distância entre os ossos e a pele e, nestes espaços conquistados, era possível vivenciar outros movimentos.

Consideramos importante esclarecer, ainda mais, que movimento fluido não significa movimento com pouco tônus, lento, flácido ou sem sentido. Movimento fluido é conseqüência da atenção e da adaptação corporal que movimenta a energia em corpo como unidade; fluidez é uma qualidade alcançada tecnicamente, que pode tornar o agir natural. Este também era um dos nossos objetivos.

A fluidez envolve qualidades expressivas e objetivas que conectam o corpo inteiro, as quais não estão condicionadas a velocidade lenta ou rápida. Assim, investigamos como dissolver as camadas mais aparentes do corpo até despertar outras, as imanentes.

Nesse momento, também estávamos aprendendo a ouvir um pouco mais o corpo como potencialidade dramatúrgica; não apenas como significado e, sim, como imagem e como possibilidade de desenvolvimento em um sentido estético.

Foi por estes questionamentos corporais que trabalhamos para deixar a ansiedade do lado de fora da sala de trabalho e direcionar a atenção em questões corporais, as quais nem sempre eram nomináveis, mas eram possíveis de serem identificadas no corpo presente.

Durante estas investigações psicotécnicas do ator sobre si mesmo, foi fundamental:

- o tempo que utilizamos observando e reorganizando cada pequena parte do corpo até despertá-la como atenção e como fluência de energia;

- o tempo necessário para que compreensão corporal pudesse se expandir como compreensão espacial – domínio de espaço;

- o tempo que utilizamos para que cada uma das atrizes pudesse identificar e reconhecer os seus excessos e encontrar caminhos próprios para transformá-los;

- o tempo necessário para perceber e criar os pequenos elos entre o corpo fisiológico, o corpo-memória e o corpo imaginado e, ainda, para reconhecer o agir com unidade.

A imaginação e a memória estão fundamentadas na atenção em corpo, como uma ação em movimento contínuo e mutante. Por conseguinte, em treinamento, imaginar aproxima-se mais do desenvolvimento do foco da atenção naquilo que é vivo e o esforço é o processo de lapidar, de dar forma e de se adaptar àquilo que já existe.

Foi por meio destas abordagens psicofísicas do ator sobre si mesmo e destes recursos psicotécnicos do ator sobre sua imaginação que foi proposto o trabalho investigativo com a imaginação. Este espaço de trabalho empírico também atuava entre a memória e a imaginação e, ainda, entre o impulso e o desenvolvimento da ação.

No documento A imaginação do ator, um voo indizivel (páginas 153-159)