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Corpo-memória e corpo-vida em Grotowski

No documento A imaginação do ator, um voo indizivel (páginas 110-114)

Capítulo I – Bases Conceituais Para Experimentação

1.4 Memória em corpo-ator, um suporte somático e vivo pela

1.4.5. Corpo-memória e corpo-vida em Grotowski

A partir da sua compreensão do sistema de Stanislávski, Growtoski (2007) afirma: (...) a muitos atores o corpo não dá um sentido de segurança. Com o corpo, com a carne não estão à vontade, estão antes, em perigo. Há uma falta de confiança no corpo que é, na realidade, uma falta de confiança em si mesmos. E isso divide o ser (GROTOWSKI, 2007, 175). Nesta afirmação podemos reconhecer em Grotowski esta forte influência de Stanislávski tanto no trabalho sobre si mesmo, quanto na importância de um treinamento psicofísico, no qual é indispensável a elaboração de uma outra compreensão de si sobre si mesmo, como por exemplo, a compreensão do conceito de liberdade muscular - e de sua função - que só se dá como conseqüência dos acordos corporais, os quais, por sua vez, só acontecem pela vivência. Tais concepções nos levam insistentemente ao encontro do centro do corpo como fonte do impulso organizador e por conseqüência atualiza os diálogos somáticos.

Grotowski (2007) associa igualmente a Stanislávski a auto-confiança corporal com a auto-confiança para agir e, aprender como agir, para o ator, é o que importa. Para esta compreensão psicofísica, Grotowski (2007) ressalta: a existência de vocês é constantemente dividida entre ‘mim’ e o ‘meu corpo’, como duas coisas diversas (GROTOWSKI, 2007, 175). Portanto, continuamos com a premissa de que não há imaginação e nem memória sem um corpo e, não estar divididos é a base para se aceitar (...). Não estar divididos: é não somente a semente da criatividade do ator, mas é também a semente da vida, da possível inteireza (GROTOWSKI, 2007, 175).

Deste modo, a compreensão de ‘superar a si mesmo’, encontrada tanto nos ensinamentos de Grotowski, de Copeau, de Brook, de Barba, de Artaud, de Meyerhold, de Vakhtângov, de Chekhov a partir do sistema de Stanislávski, reforçam a importância dos vínculos do trabalho do ator sobre si mesmo, exercendo a força do trabalho técnico constante.

Grotowski (2007) também diz que a presença da técnica se distingue da presença do Ato: A técnica pode ser (em graus diversos) um sintoma de um Ato sub-rogado. Se executarmos o Ato, a técnica vem por si mesma (GROTOWSKI, 2007, 179).

Para esclarecer um pouco mais o que compreendemos a respeito do Ato, da imaginação e da memória, apresentaremos o conceito de corpo-memória criado por Grotowski (2007). Para apresentar este conceito é necessário começar pelo resgate de que toda reação autêntica62 tem início no interior do corpo. O exterior é somente o fim deste processo. Se a reação exterior não nasce no interior do corpo, será sempre enganadora, falsa, morta, artificial, rígida (GROTOWSKI, 2007, 172), porque será a partir da abertura destes canais físicos que poderá ser possível investigar a expressividade mais honesta e natural. O treinamento serve para preparar, disponibilizar e concentrar a atenção e, essencialmente, para abrir os canais criativos.

Grotowski também fala do posicionamento fisiológico deste ponto gerador de impulsos e diz que ele fica na parte do corpo que chamamos cruz

incluindo a base do torso, até o abdômen inferior63, apresentando a fonte da qual

nascem os impulsos autênticos. Mas, ele também diz: vocês podem estar

62 Reação autêntica chama à ação os conceitos ‘não-agir agir...’. Relaciona-se com honestidade em Grotowski, Stanislávski; também se direciona ao conceito de self somático proposto por Keleman e Campbell e, ainda, sobre a imagem como relação direta com o mito - em vivência. Compreensões que só acontecem como experiência, a partir de um impulso organizador.

63 Para os taoístas chineses o centro do corpo e a base da coluna - a região lombar- são a fonte geradora da energia ch’i; mas, essa compreensão vai além da localização fisiológica do ponto: como eixo é vivo ele vai além. E, ao escrever a palavra ‘eixo’, além de reorganizar o eixo físico do meu corpo frente ao computador, resgato por ele a compreensão teórica apresentada pelos princípios do tai chi chuan. O eixo é o princípio de todas as coisas e é também a essência de todas as coisas: “(...) eixo através do espaço, da consistência da matéria e através do tempo.(...) eixo como estrutura não é leve nem pesado; em termos de consistência é aquele que pode ser sentido e aquele que não pode ser sentido e, em relação ao tempo, o EIXO não é do passado nem do futuro (...) (CHENG,1989,12). Por estas vias chinesas seguem as imagens vivas e enigmáticas sobre eixo. Para os princípios do tai chi chuan ficam no centro do corpo, mas para reconhecê-lo é preciso associar à auto-percepção “a intuição e o sentimento de transparência”. “Eixo, ou TAO DO MEIO, é o ponto básico de construção de toda atividade do tai chi chuan – a alquimia do movimento; ele é o que permite o surgimento de todas as características e todas as práticas. E, por fim, EIXO, para eles, no ser humano se subdivide em três: o físico, o psicológico e o vazio, ou físico, não-físico e absoluto” (CHENG,1989,13).

relativamente conscientes deste fato para desbloqueá-lo, mas não é uma verdade absoluta (GROTOWSKI, 2007, 172).

Nestes ensinamentos compreendemos a importância do treinamento e dos trabalhos corporais na elaboração da segunda natureza e, principalmente, do reconhecimento físico do ator em si mesmo sobre o seu estado criador. Mas, também sabemos que a qualidade técnica integrada como uma segunda natureza, não garante o Ato. Peter Brook (1999) chamou o ‘Ato’ de graça concedida.

Por conseguinte, nosso corpo inteiro é uma grande memória e em nosso ‘corpo-memória’ criam-se vários pontos de partida (GROTOWSKI, 2007, 172), e, nesta fonte orgânica, capaz de reagir infinitamente, há, sim, certa objetividade na sua reação64. Esta materialidade corporal só se objetiva se o corpo estiver desbloqueado, porque, se o corpo estiver bloqueado durante os exercícios, (...) bloqueará também todos os outros pontos de partida do corpo-memória. (...). O corpo não tem memória ele é a memória (GROTOWSKI, 2007, 173).

Deste modo, Grotowski apresenta os exercícios e o treinamento como possibilidade de conhecimento e de estudo sobre os pequenos e micro-detalhes existentes entre o impulso (sub-impulso) e o seu desenvolvimento como ação. Mas, sabendo-os como um meio para realização dos detalhes precisos, o diretor também diz que o fluxo orgânico está na fluência destes detalhes, ou seja, é a relação entre eles que pode dar o sentido. E, é assim que Grotowski apresenta a possibilidade de reação orgânica no corpo treinado e que procura alcançar a espontaneidade e evidencia que a espontaneidade não é o controle é, sim, a transcendência.

Ao falar de seus ‘exercícios plásticos’ e da ação racional imperando sobre o corpo e predeterminando onde focar a atenção, Grotowski (2007) exemplifica a atuação dessincronizada - mente ordena e corpo executa - e, agir assim, é agir cindido, não é uma ação conjunta:

(...) mas se vocês mantêm os detalhes precisos e deixam que

o corpo determine os diferentes ritmos, mudando

continuamente os ritmos (...) quase como pegando os detalhes no ar. Quem dá os comandos? (...) Não sabemos como acontece mas é o corpo-memória, ou mesmo o corpo- vida, porque vai além da memória (GROTOWSKI, 2007, 174).

Deste modo, o autor apresenta o conceito de corpo-memória, ou ainda, corpo-vida, como um estado de ‘ser’ em ação, o qual se manifesta como elaboração estética, como inteligência psicofísica em ação ordenadora e em comunhão e, ainda, transcende as camadas da memória individual e atinge a camada universal, para Jung (1991,60), uma dimensão suprapessoal. Para Artaud (1999) é um estado de atuação que, confesso ou não, consciente ou não, é transcendente de vida, é no fundo aquilo que o público procura através do amor, do crime, das drogas, da guerra ou da insurreição (ARTAUD, 1999, 143).

Desta condição de ser e de agir, integrada ao como agir, é que emerge a necessidade e o comprometimento (entrega ao ofício), no qual encontramos a atitude revolucionária no teatro. Artaud (1999) chamou-a de ‘crueldade’, porque, para ele: Tudo que age é uma crueldade. É a partir dessa idéia de ação levada ao extremo que o teatro deve se renovar (ARTAUD, 1999, 96) e, sobre esta mesma atitude, disse: Portanto eu disse “crueldade” como poderia ter dito “vida” ou como teria dito “necessidade”, (...) que nele nada existe de imóvel, que o identifico como um ato verdadeiro, portanto vivo, portanto mágico (ARTAUD, 1999:134). Crueldade esta que, na ação de Copeau(s/d), ela exige o ‘doar-se’, que ele mesmo chamou ‘o monstruoso no ator’.

Para Grotowski (2007) essa revolução se inicia igualmente no ator sobre ele mesmo quando em corpo-vida: Perante um tal agir toda nossa natureza se desperta. Portanto o que é necessário? Algo que não seja barato. Uma doação (GROTOWSKI, 2007, 206).

Por fim, objetivamente, a naturalidade está vinculada com a disciplina e com a precisão, a espontaneidade com a estrutura, mas, em Ato, o que acontece é

que o corpo-memória como a inteireza e a totalidade do ser é memória. “Mas quando dizemos “a totalidade do nosso ser”, começamos a imergir, não na potencialidade, mas nas recordações, nas regiões da nostalgia. Eis porque talvez seja mais exato dizer corpo-vida” (GROTOWSKI, 2007:174). E segue:

Se permitirem que o seu corpo procure o que é íntimo, o que fez, faz, deseja fazer na intimidade (em vez de realizar a

imagem da recordação evocada anteriormente nos

pensamentos), ele procura: toco alguém, seguro a respiração, algo se detém dentro de mim, sim, sim, nisso há sempre o encontro, sempre o Outro...(...) E quando digo corpo, digo vida, digo eu mesmo, você, você, inteiro, digo (GROTOWSKI, 2007, 205).

No documento A imaginação do ator, um voo indizivel (páginas 110-114)