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Centro Tan Tien e energia ch’i

No documento A imaginação do ator, um voo indizivel (páginas 42-48)

Capítulo I – Bases Conceituais Para Experimentação

1.1 Corpo, imagem e mito: abordagem, procedimentos metodológicos e

1.1.4 Centro Tan Tien e energia ch’i

Apresentaremos o centro Tan Tien e a energia vital ch’i como correspondentes filosóficos e práticos das ações que Keleman denominou como: a atuação autêntica e Campbell como centro de energia. Ambos podem nos aproximar, em parte, dos princípios a serem propostos em laboratório e também serem orientadores nas escolhas dos exercícios para o treinamento.

Assim, as escolhas e as proposições dos exercícios a serem utilizados em laboratório, só podem ganhar um sentido se disponibilizarem, ao ator, recursos para que ele possa integrar suas compreensões como psicotécnica.

Huaí-Chin Nan (1993) ao desmembrar os três ideogramas chineses usados pelo taoísmo para explicar o significado ch’i, apresenta que:

(...) no antigo ideograma ch’i significa nenhum e que tem o mesmo significado que fogo, em outras palavras ch’i significa sem fogo. O que quer dizer sem fogo? Os desejos sexuais, os afetos e as atrações carregadas de luxúria, os pensamentos inquietos e movimentados em uma mente descuidada são todos sugeridos pelo fogo (NAN,1993:21).

Esta primeira apresentação do elemento fogo pede que façamos uma abertura um pouco maior, neste momento, para que possamos evidenciar a compreensão, chinesa e taoísta, do sentido apresentado pela expressão sem fogo, assim como para revelar a classificação qualitativa do elemento fogo, como materialidade energética em treinamento, diante desta visão filosófica e prática que é investigada pelos princípios da prática do tai chi chuan (também conhecido como a alquimia do movimento), como possibilidade de transformações na materialidade psicofísica.

Sem esse fogo, facilmente avivado e que tudo consome, estaríamos repletos de vitalidade. Na medicina chinesa o fogo que se movimenta intranquilamente é chamado de fogo

secundário, ao passo que o fogo na posição correta e na condição apropriada é conhecido por fogo dominante. Quando alguém tem o fogo dominante e está cheio de energia potencial, o ch’i latente pode ser induzido (NAN, 1993, 21-22).

A identificação e o reconhecimento básico do centro do corpo Tan Tien, como imagem somática e viva, assim como do complexo que envolve a imaginação do ator, são apresentados como elementos básicos para fundamentar os passos iniciais deste processo; o qual propõe a imagem como um procedimento psicofísico provocador e ordenador em corpo-ator.

A percepção imaginada, enraizada e viva do Tan Tien como gerador da energia ch’i, nos leva a outras conexões relevantes -”Ch’i quer dizer o não-fogo” (NAN,1993, 41). Em laboratório, esta investigação como vivência em processos criativos nos possibilita meios e recursos objetivos para encontrar ajustes entre os tempos: o do pensamento, o da imagem e o do corpo, até que se sincronizem como materialidade em uma unidade de ação psicofísica.

Este conceito sem-fogo secundário (ou fogo falso), proposto pelo treinamento de expansão e de recolhimento de energia, ajuda o ator a habitar, ainda mais, o próprio corpo no momento presente e, com isso, a não antecipar o tempo da ação pela velocidade e compreensão do pensamento. Estamos procurando investigar possibilidades de uma relação mais afinada entre corpo, alma e espírito, para agir.

Meyerhold (s/d)25 apresenta em seus enunciados sobre a biomecânica a

necessidade da calma total e de um equilíbrio justo como as primeiras condições de um bom trabalho preciso, e estas qualidades reconhecemos evidentemente como um correspondente do ‘sem fogo’, ou como a atuação pelo ‘fogo dominante’, citado por NAN. Ao executar um exercício, é preciso proibir-se de manifestar o fogo

ou o temperamento, não se deve ter pressa, nem se apropriar muito do espaço.

Domínio de si, calma e método antes de tudo (MEYERHOLD, s/d)26.

As investigações empíricas a serem feitas em laboratório, portanto, terão grande espaço disponível neste trabalho. Por estes experimentos e compreensões, eles serão apresentados como um recurso para trabalho do ator sobre si mesmo, visando a elaboração de outras qualidade no como agir.

O propósito desta abertura é investigar, tanto quanto possível, outras compreensões corporais durante a preparação, as quais poderão abrir outros caminhos para entrar na etapa seguinte: dinâmicas pelo espaço.

Mas, cabe ainda dizer que é preciso chamar a atenção para não confundir e, tampouco, vincular a lentidão com o afinar dos tempos (da ação e o do ator) ou, ainda, com a organicidade; ou seja, a velocidade e a qualidade da ação são elementos técnicos distintos.

Estas sintonia e sincronia do movimento, sob a luz taoísta, seria o agir que se pretende a partir do fogo dominante (ou verdadeiro), que, para Stanislavski (apud DAGOSTINI, 2007), seria a atuação verdadeira.

O fogo compreendido como processador em treinamento (qualidade de energia), é um fogo constante que preserva a temperatura aquecida para nutrir as investigações. Deste modo, o fogo pode preservar e alimentar continuamente os caminhos que conduzem às mutações. Este fogo também se processa pela insistência que exige paciência, disciplina e questionamentos. Sobre as investigações desta qualidade, no como agir, Brook (1999) diz: Para encontrar uma qualidade vital temos que ser sensíveis ao eco, à ressonância que o movimento produz no corpo (BROOK, 1999, 59).

A nossa compreensão deste movimento está relacionada com a fluência de energia ampliando a atenção e percepção do ator. A partir desta compreensão, sobre energia em movimento, se direcionarão as investigações por qualidades de atuação não forçadas e mais naturais, isso nos leva ao encontro com os

ensinamentos de Brook (1993): A tarefa do ator é tornar qualquer estilo natural. (...) o que significa natural? Algo é natural quando, no momento em que acontece, não há análise nem comentário, simplesmente parece de verdade (BROOK, 1993, 60).

Deste modo a função das imagens e conceitos Tan Tien como centro de energia, e ch’i como energia vital, servirão como um recurso técnico para desviar a mente da pressa, propondo um sentido interno para agir e, assim, afastar o ator do estado interno que desorganiza. A calma é proveniente de um estado interno atento e concentrado, que, segundo Stanislavski, disponibiliza ao ator o tônus muscular adequado para agir.

A partir do centro Tan Tien e da energia ch’i nos direcionamos às investigações sobre as polaridades ‘não-agir agir’ em constante movimento e mutabilidade, as quais têm o vazio com um princípio que atua como um eixo para o movimento.

Quanto aos propósitos metodológicos e a classificação das imagens, eles estão apresentados de forma diluída no decorrer do texto, e de forma objetiva no final deste subcapítulo.

1.1.5 O vazio

A partir da proposição da atenção corporal no Tan Tien e no Ch’i, apresentamos outro princípio taoísta, o vazio. O esvaziar da percepção que antecede o agir, que, para o ator, também é um princípio vinculado aos processos

da imaginação em corpo. Segundo François Jullien27 (1995, 138) o vazio para os

chineses tem a capacidade simultânea de comunicar-se e manifestar-se o vazio permite a passagem do efeito.

Como vivência, o vazio propõe uma condição interior de movimento potencial e de mutações: esvaziar-se para tornar-se disponível àquilo que ainda não foi experienciado. Este estado atua como uma limpeza da atenção que permite agir um pouco mais natural, ele possibilita que a ação se concretize e se atualize um pouco mais livre de excessos, sejam eles mentais, emocionais ou musculares, ou seja, o vazio também tem como função clarear a percepção.

Copeau (s/d) apresenta o vazio como uma porta que permite a passagem do homem comum em seu estado real para outro tempo-espaço. Como concretizar essa porta e saber como transpô-la, é um procedimento psicotécnico que possibilita ao ator refazer a mesma ação, quantas vezes forem necessárias, com a vitalidade orgânica de um ato espontâneo e natural, ou seja, a lógica do vazio é funcional. Para Brook (1993) o vazio no teatro permite que a imaginação preencha as lacunas. Paradoxalmente, quando menos se oferece à imaginação, mais feliz ela fica, porque é como um músculo que gosta de se exercitar em jogos (BROOK, 1993,23).

Identificamos o vazio como atitude e como estado potencial que abre espaços para estudos, investigações e renovações. Sobre estas atitudes encontramos fortes correspondentes nas organizações das relações éticas entre as atitudes diretor–pedagogo e qualidade de estudante, apresentadas por

Vakhtangov28. Para ele a atividade pedagógica está longe de uma padronização,

ou seja, da reprodução dos mesmos procedimentos em contextos distintos. O que ele apresenta como direção pedagógica é a necessidade de movimento e de renovação, ou seja, um de seus maiores legados está muito distante da relação

pedagógica tradicional. A importância está no experimentar29 (Vakhtangov

experimentava e investigava embasado no sistema stanislavskiano).

28 Sobre qualidade de estudante e diretor-pedagogo ver SCANDOLARA (2006).

29 Marco de Marinis (in SCANDOLARA, 2006)aponta esta atitude de Vakhtângov como uma das fundamentais renovações realizadas por encenadores no começo do século XX, ou seja, a indissociabilidade entre a pedagogia e a criação, como vivas e em movimento. Mas, ainda existem equívocos que vinculam a proposta ética e investigativa de Vakhtângov à procedimentos cênicos ou exclusivamente à estética de suas encenações. Vakhtângov, de fato, procurava e gerava espaços para experimentar outros movimentos e, por eles, rever e renovar o seu próprio fazer.

Continuando na relação funcional do vazio, essencialmente no contexto taoísta, apresentamos por Lao Tzu (1995):

Trinta raios cercam o eixo:

a utilidade do carro consiste no seu nada. Escava-se a argila para modelar vasos: A utilidade dos vasos está no seu nada.

Abrem–se portas e janelas para que haja um quarto: A utilidade do quarto está no seu nada

Por isso o que existe serve para ser possuído

E o que não existe, para ser útil (Lao Tzu, 1995, 47).

A partir da utilidade desta disponibilidade que procura a presença do ator, e a partir da negação, é que também se abrem espaços para atualizar o material codificado, e é por onde apontamos o redimensionamento que estamos propondo com a imagem em corpo. Assim, o vazio em corpo-ator passa a ser um estado, o qual, também pode ser apresentado, paradoxalmente, em texto, como gerar a presença de si mesmo a partir da ausência de si, o vazio, como uma possibilidade de transição viva entre deixar de ser e ser.

O vazio firma-se como um princípio e como procedimento, que poderá apontar ao ator caminhos para ele não ‘repetir’ o seu trabalho, e, sim, para lhe gerar recursos para revificá-lo. Por conseguinte: Deve-se começar pelo zero, abrir um espaço vazio dentro de si e, dolorosamente, lutar para reescrever dentro do seu próprio organismo toda a trajetória do primeiro questionador que trilhou o caminho (BROOK, 2000, 114).

Vazio, ou zero, podem atuar como um recurso imaginário, experiência psicossomática, que possibilita a reorganização da percepção atual, a do ator sobre si mesmo, e que nos leva ao encontro do centro de energia como gerador de impulsos orgânicos para agir. Sobre estes direcionamentos técnicos da atenção, Brook (2000) propõe que o diretor tenha a sensibilidade para orientar o ator, ao

dizer (...) concentre-se em descobrir a fonte de energia do ator, da qual os impulsos verdadeiros podem emergir (BROOK, 2000, 118).

Partindo do que foi exposto, reafirmamos os princípios orientadores de nossas investigações em laboratório sobre o estado vazio, a partir da localização e dos treinamentos do centro Tan Tien e da energia ch’i.

No documento A imaginação do ator, um voo indizivel (páginas 42-48)