• Nenhum resultado encontrado

Espaço aberto à convergências

No documento A imaginação do ator, um voo indizivel (páginas 35-39)

Capítulo I – Bases Conceituais Para Experimentação

1.1 Corpo, imagem e mito: abordagem, procedimentos metodológicos e

1.1.2 Espaço aberto à convergências

A partir destas organizações iniciais, propomos um espaço aberto, intermediário e de comunicação entre a realidade somática apresentada por Keleman (1995), e a vida cotidiana e imaginária do ator; pela qual, as estruturas somáticas ficam, temporária e frequentemente, reorganizadas por outra ‘ordem’, em ‘reordenações somáticas criativas’, cuja ontologia é poética e com potência suficiente para transformar o estado de ser em corpo-ator, o qual é o mesmo corpo do ator.

Esta realidade criativa, corporal e mutante implica em reorganizações psicossomáticas, mas isso, de fato, só acontece por processos de treinamentos, de ensaios e de repetições até que a sua adaptação psicofísica se materialize como uma segunda natureza para agir.

Este processo, todavia, não é de automatização inconsciente, repetir para o ator é recriar é ‘revivecer’ a partir das origens, dos estímulos e dos impulsos

imaginários - é a ação conjunta do que é conhecido com o que é espontâneo. Portanto, o como o ator trabalha é a compreensão psicotécnica que age em acordo com a sua sensibilidade, as quais são determinantes na sua elaboração estética. É que a técnica é susceptível de numerosas acepções: podemos considerá-la como uma força viva (...) Nunca a considerarmos um automatismo do ‘ofício’ (...) mas sim uma poesia toda feita de acção (FOCILLON, 2001, 61).

Assim, o ofício de ator exige, constantemente, que ele saiba como entrar em um outro espaço, imaginário e vivo dentro de si mesmo. Esta materialidade criativa é dolorosamente construída passo a passo, por um processo artesanal que se alimenta pelo tempo e pela disciplina.

O ator é aquela pessoa que trabalha e se entrega de corpo e alma às exigências do processo, mesmo sabendo que esta materialidade conquistada como continente corporal terá de ser dissolvida e, de certa forma, destruída. Entretanto, ainda assim, ele é capaz de trabalhar com atitude incansável e investigativa nas ‘recorporificações’ possíveis em si mesmo pelos seus personagens e é no movimento mutante desta polaridade morte-vida que reside a possibilidade da existência e da atuação. O ator é aquela pessoa que deve saber como alcançar e mobilizar os espaços férteis dentro de si mesmo, para que ele possa se reordenar dentro desta realidade corporal criativa e com estrutura mutante. Stanislávski em “sistema” denominou este processo de corporificação como processo de adaptação. Deste modo, um ator constrói a sua vida somática também pela vivência de seus personagens e com isso cria uma cadeia viva, a qual pode também ser chamada de memória, de conhecimento de repertório e de imaginação.

Assim, podemos apontar a intensidade que pode ser alcançada como vivência somática e poética em um corpo-ator. Esta intensidade está relacionada com a capacidade que ele tiver, no momento, para se entregar e tornar-se um outro; para falar sobre este estado psicofísico; com a abertura que seu espírito possui de poder perceber as exigências do universo poético. Como afirma Copeau (s/d) sobre este estado psicofísico:

se o ator é um artista ele é quem mais sacrifica sua pessoa ao ministério que exerce. Ele não pode dar nada a não ser a si mesmo, não em efígie, mas de corpo e alma, e sem intermediário. Tanto sujeito quanto objeto, causa e fim, matéria

e instrumento, sua criação é ele mesmo19 (COPEAU, s/d).

A partir desta compreensão técnica podemos chamar a atenção para as diferenças frequentemente estudadas, confundidas e investigadas em sala de aula e em salas de ensaio, entre: simular uma ação e de fato agir, forçar a imaginação (pensamento) e estimular a materialidade imaginária (sensação, ação, razão, emoção e transformação), a autenticidade da atuação e a artificialidade da ‘ação’20, forçar uma ‘ação’ e percebê-la ao seu tempo, etc, assim como tantas outras ações, atitudes, equívocos e procedimentos que se confundem durante o eterno aprendizado exigido pelo ofício.

Ainda sobre o estado de atuação dilatada, ‘imensidão da alma’, reconhecido no ator que atinge esta atitude de entrega (de ser honesto), seguiremos adiante com os ensinamentos do grande mestre Copeau (s/d):

Shakespeare disse (Hamlet, ato II, cena II) que a natureza do ator vai contra a natureza, que ela é horrível e ao mesmo tempo admirável. Ele o disse em uma só palavra: ‘Monstrous’. O que é horrível, no ator, não é uma mentira, pois ele não mente. Não é um engodo, pois ele não engana. Não é uma hipocrisia, pois ele aplica sua monstruosa sinceridade em ser aquilo quem ele não é, e não em exprimir o que ele não sente, mas em sentir o imaginário O que perturba o filósofo Hamlet, (...) e, um ser humano, o desvio das faculdades naturais para

um uso fantástico(COPEAU, s/d)21.

19 Copeau. In: www.grupotempo

20 O conceito de ‘ação’ consta no glossário e também será desenvolvido no subcapítulo 2 deste trabalho. 21 In: www.grupotempo

Com base nesta afirmação podemos nos aproximar um pouco mais do que denominamos como imagem em corpo-ator, e podemos também distingui-la de outras tantas imagens utilizadas em outros contextos atuais.

Cabe evidenciar que ao nos referirmos à imagem, ela carregará consigo, antes de qualquer coisa, a existência somática em corpo-ator como vivência e, sobre esta qualidade corporificada, utilizaremos os conceitos de existência somática e de experiência direta propostos por Keleman (2001):

Vivemos em duas esferas: a esfera da experiência direta e a esfera das imagens representativas. Ser capaz de viver nas duas esferas e realizar um diálogo entre elas é a verdadeira natureza da existência somática. Assim, não há dualidade – apenas o reconhecimento de duas esferas diferentes. Fato é que confundimos uma com a outra: e, ao fazê-lo, perdemos o contato com o corpo. A imagem –não o corpo- tornou-se nossa experiência direta (KELEMAN, 2001, 44).

Então, a imagem além de estar vinculada à vivência somática, ganha agora mais um elemento vivo: o tempo, pois, o fenômeno da comunhão teatral segundo Brook (1999) é a revelação do momento. Para ele, a essência do teatro reside num mistério chamado momento presente (BROOK, 1999:68).

Para o ator, a imagem, ainda que minuciosamente conhecida, quando recriada, deve ser refrescada pelas variáveis e pelos mistérios do presente e, para esta integração, é indispensável o domínio psicotécnico.

Deste modo, as investigações dos processos corporais em laboratório iniciam a partir da compreensão primeira da imagem proposta como conteúdo interno, o qual apresenta a função e a intenção para o ator agir, mas com o propósito de que se ativem dinâmicas vivas pela imaginação de cada ator.

Esta procura visa abrir outros espaços nas investigações corporais durante o treinamento, localizado metodologicamente como momento de preparação e concentração, no qual, por sua vez, poderá alterar a percepção do

corpo. Por estas possíveis alterações o corpo pode passar a ser um espaço de investigações com possibilidades de reconhecimento, de estranhamento, de treinamentos, de dificuldades, de criação, de superação, de auto-conhecimento, e de transformações; as quais, podem direcionar a abertura de um outro espaço, mais aberto ainda, um espaço escuro e disponível ao processo criativo e às investigações da dramaturgia corporal.

A partir destas compreensões sobre a imagem como uma experiência corporificada, psicotécnica e criativa, é que se posicionam os objetivos e os vínculos que investigaremos em treinamento com a utilização da imagem.

Por conseguinte, o conceito de imagem apresentado se posiciona, nestas investigações em laboratório, em diversos pontos, como objetivo, como princípio, como procedimento, como movimento, como ação, como recurso e como substância22.

No documento A imaginação do ator, um voo indizivel (páginas 35-39)