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2.1. Contornos históricos da homofobia

2.1.4. A medicalização do sexo

A medicina foi também fundamental na disseminação e pluralização dos discursos sobre a sexualidade, ao instaurar uma série de procedimentos pelos quais são determinadas

40 práticas sexuais em acordo com uma suposta visão científica, condenadora das práticas homossexuais, ou de atitudes que poderiam levar a elas (FOUQÉ, 1953; DOURADO, 1967; ECK, 1970; SPENCER, 1996; NAPHY, 2004; ERIBON, 2008, dentre outros). Embora hoje as práticas médicas, exceto em casos particulares de profissionais preconceituosos, não se destinem mais a buscar a “cura” para homossexuais, é esclarecedor, para os propósitos de uma história da homofobia, o que se pensava nos anos iniciais do século XX, na citação de Charles Fouqué, mantida com a grafia da época da publicação de seu livro no Brasil.

O homo-sexualismo representa um desvio. É o menos que se pode dizer. O médico deve, portanto, esforçar-se em combatê-lo (...). Inicialmente deve-se adotar uma profilaxia no cuidado com as crianças que resultará, pelos seus benefícios, numa profilaxia do onanismo. Magnus Hisrchfeld provou que certas inversões têm origem no onanismo. Uma das causas do onanismo vem da irritação das partes sexuais, cujo prurido leva o bebê à masturbação. A limpeza meticulosa desta região deve constituir para as mães o primeiro cuidado. É um capitulo da Puericultura. Quando necessário, não se deve hesitar em operar a fimóse, intervenção cirurgica banal e destituida de qualquer perigo. Certas crianças acariciam-se quase por instinto. Uma boa medida de prevenção é fazê-las dormir de luvas, durante algum tempo, pois as luvas impedirão a disseminação do impetigo da genitalia. É preciso distrair a criança dêsse hábito mas de forma a não despertar-lhe a atenção sobre êle. (FOUQUÉ, 1953, pp. 98-99)

Os primeiros discursos médicos foram poderosos, à medida que não falariam em nome de especulações, de falsas crenças, mas supostamente de um lugar de objetividade e em função de observações criteriosas, de controles metodológicos que garantiriam uma verdade irretocável. No entanto, como o cuidado pretendia-se global, a medicina se via misturada a questões também morais, pois os conselhos médicos incluíam alertas sobre a escolha de domésticas e babás, para evitar aquelas que poderiam incutir “vícios” nas crianças, assim como outras medidas para que elas crescessem saudáveis:

Tanto quanto possível, principalmente se não estamos absolutamente seguros do perfeito equilibrio moral de cada uma delas, não se deve deitar, habitualmente, duas crianças juntas. Isso deve ser evitado mesmo acidentalmente. (FOUQUÉ, 1953, p. 99)

Ainda que não mais pelas medidas profiláticas difundidas pelas práticas médicas, não estamos de todo livres de algumas das crenças acima descritas, como o provam cartas a médicos, psicólogos e sexólogos com perguntas de adolescentes sobre os perigos da masturbação, regularmente publicadas em jornais, revistas e páginas da internet, assim

41 como difundidas em programas de rádio e televisão. São ainda nestes espaços que muitos adultos e adolescentes manifestam suas angústias psicológicas, bem como dúvidas morais e religiosas acerca das práticas homoafetivas. Cartas assim são apenas um dos indícios de que práticas e pesquisas médicas têm sido generosas no que diz respeito às explicações das “causas” da homossexualidade, com algumas questões remontando ao início dessas investigações. A mais recorrente das buscas encontra-se na tentativa de encontrar uma explicação genética e hereditária (JUNQUEIRA, 2007), de que se tem valido os pesquisadores das conquistas das últimas décadas no campo da decifração e manipulação genética12. A propósito dessas tentativas, pessoas ligadas aos movimentos de direitos humanos e cidadania LGBTT têm manifestado posições ambíguas. Se por um lado comprovar uma origem ou uma causa genética para a homossexualidade poderia abrir caminhos para a aceitação das relações homoafetivas, posto que independentes de escolhas individuais, por outro poderiam recrudescer a homofobia, a partir da “purificação” das sexualidades pelo controle genético dos filhos gerados, na esteira de promessas já em curso de ser possível escolher, por manipulação genética, a cor dos olhos da criança, por exemplo.

Historicamente, é fundamental ressaltar, as práticas médicas que contribuíram para a instauração e solidificação da homofobia levaram à humilhação e mutilações de milhares de homossexuais, de todos os gêneros, travestis, transexuais e interssexuais, principalmente pela contribuição da psiquiatria. Os métodos incluíram as medidas profiláticas anteriormente aludidas (FOUQÉ, 1953), mas métodos muito mais cruéis, como castrações físicas e químicas, práticas de lobotomia, choques elétricos de variados níveis de intensidade, choques convulsivos induzidos por estimulantes químicos e tratamentos hormonais, mesmo quando tais procedimentos mostravam-se absolutamente inócuos e causadores de terríveis sofrimentos físicos e psicológicos aos “pacientes” (SPENCER, 1996).

Uma das mais famosas vítimas dos tratamentos para a “cura do homossexualismo” no século XX foi o matemático Alan Turing, apontado como responsável pela decifração dos códigos secretos dos nazistas, o que teria sido fundamental para os destinos da Segunda Guerra Mundial. Para não ser preso, uma vez que ser homossexual na

12 Dentre as muitas informações a respeito, leia-se:

http://cienciaesaude.uol.com.br/ultnot/bbc/2007/10/26/ult4432u708.jhtm, sob o título “Homossexualidade pode ser genética, diz estudo”, consultado em 26 de outubro de 2007, às 8h45.

42 Inglaterra dos anos 1950 era crime, Turing foi proibido de continuar trabalhando no serviço secreto, pois homossexuais eram considerados um risco à segurança, por serem vítimas de chantagem, além de ter sido submetido a tratamentos hormonais, com injeções, que o deixaram fisicamente deformado. Humilhado, ele cometeu suicídio em 195413. Ainda que na atualidade estes métodos não se apliquem mais diretamente como punição pelo desejo por pessoas de mesmo gênero, inclusive com pedidos de perdão, caso do governo inglês relativamente ao episódio Alan Turing, eles ainda pairam como ameaça de fundo homofóbico. Vale lembrar a este propósito, projeto de lei que tramita no Congresso Brasileiro prevendo a castração química de pedófilos, em troca de redução de pena, quando de primeira condenação, e obrigatoriamente, no caso de prisão por reincidência na pedofilia. Um dos argumentos para aprovação da lei é o fato de países como Estados Unidos e Canadá já adotarem essa prática, que está em via de implantação na França e na Espanha14. Uma das possibilidades de aplicação da pena é para casos de atentado violento ao pudor que, na ausência de uma lei no Brasil que criminaliza práticas sexuais entre pessoas de mesmo gênero, pode ser usada para punir, por exemplo, pessoas suspeitas de práticas sexuais em vias públicas, disfarçando prisões ou condenações que tenham, na verdade, motivação homofóbica (TREVISAN, 2000). A considerar, ainda, o fato de haver amplo apelo no imaginário popular para a relação do pedófilo com o homossexual, realidade reafirmada pela posição de religiosos católicos, por exemplo15.

Além disso, é necessário sempre lembrar dos muitos casos de métodos medicocientíficos que têm sido, ao longo da história, sujeitos a equívocos, sendo o mais comum, contemporaneamente, a divulgação de resultados parciais ou de descobertas provisórias. O aparecimento da Aids e sua difusão massificada no início dos anos 1980 é ilustrativo do quanto conhecimentos médicos precários e parciais divulgados em larga escala podem ser danosos para a potencialização da homofobia (CARVALHO, 2009). De imediato, o surgimento da Aids, atribuída inicialmente a “grupos de risco”

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Retirado de http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe1209200901.htm, consultado no dia 12 de setembro, às 9h45, sob o título “Governo britânico pede perdão a matemático gay”.

14 Retirado de http://jbonline.terra.com.br/pextra/2009/09/16/e16095273.asp, consultado em 29 de

setembro de 2009, às 23h11, sob o título “CCJ adia votação da castração química para pedófilos”, e de http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2009/09/18/materia.2009-09-18.0192573385/view, consultado no dia 29 de setembro de 2009, às 11 horas e 15 minutos, sob o título “Para presidente da CPI da Pedofilia castração química favorece criminoso”.

15 Leia-se, a propósito, informação retirada de

http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/cox/2010/04/17/homossexualidade-nao-e-a-mesma-coisa-que- pedofilia.jhtm, consultada no dia 17 de abril de 2010, às 11h25.

43 (homossexuais, prostitutas, haitianos, hemofílicos e usuários de drogas endovenosas) pareceu colocar em xeque todas as conquistas que nos anos 1960 e 1970 marcaram novas possibilidades nos campos das sexualidades e dos comportamentos. Passado algum tempo, no entanto, alguns estudiosos dão conta de que a Aids não teria tido apenas reflexos negativos para os homossexuais, posto que ao lado da visibilidade negativa, os próprios desafios de lidar com os dramas sociais e com o recrudescimento da homofobia teriam criado novas redes de solidariedade e formas de atuação política que contribuíram positivamente para reafirmar a necessidade de por fim aos preconceitos sexuais e de gênero e suas consequências (GIDDENS, 2005, dentre outros).

Ramo científico às vezes pouco preciso, por misturar, em algumas de suas vertentes, medicina, psicologia, psiquiatria e psicanálise, a sexologia também tem sido importante na elaboração discursiva sobre as sexualidades. Embora também classificado na área da biologia, o estudo sobre as sexualidades humanas empreendido por Alfred Kinsey nos anos 1940 e 1950, nos Estados Unidos, pode ser um exemplo da área da sexologia. Submetido a controvérsias e críticas desde o seu aparecimento (GAGNON, 2006), os relatórios produzidos pela equipe de Kinsey, apesar dos eventuais limites, tiveram o mérito de mostrar, com ampla amostragem populacional (DOURADO, 1967), o quanto as manifestações da sexualidade humana são variadas, colocando em xeque quaisquer noções de normalidade, e revelando que o desejo sexual está situado num continuum entre o puramente heterossexual e o puramente homossexual ao longo das biografias individuais. Para Anthony Giddens, um dos marcos mais importantes para as conquistas de direitos homossexuais a partir da segunda metade do século XX, inclusive, estaria nos estudos de Kinsey:

A passagem dos homossexuais das margens da sociedade para o seu centro ainda não se completou, mas se testemunhou um rápido progresso nos últimos anos. Algumas mudanças cruciais podem ser apontadas. Em primeiro lugar, a publicação do relatório Kinsey sobre o comportamento sexual trouxe a público a predominância da homossexualidade na sociedade norte-americana (...). Essas descobertas foram chocantes para muitas pessoas, mas ajudaram a minar a falsa crença de que os homossexuais eram um minúsculo grupo de desviados com distúrbios psiquiátricos. Um segundo momento crítico ocorreu em 1969, com as revoltas de Stonewall, um episódio brutal de violência entre policiais e a comunidade gay de Nova York. Stonewall eletrizou o movimento de liberação gay, não somente nos Estados Unidos, mas também em outros países.

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Finalmente, o surgimento da epidemia da AIDS, no início da década de 1980, foi um acontecimento crucial na recente história da homossexualidade. Embora a AIDS tenha sido devastadora para a população gay, devido ao grande número de indivíduos que foram infectados e morreram, ela fortaleceu a comunidade gay e tornou a homossexualidade um assunto publicamente aberto. (GIDDENS, 2005, pp. 120-121)

Os atos de brutalidade de Stonewall citados por Giddens, claro, não se situam no campo das práticas médicas, embora delas tenha recebido parte de contribuição, à medida que os estudos apontam para a medicina como uma das responsáveis pela difusão dos sentimentos homofóbicos. Adiante, quando das discussões sobre as contribuições do direito para a disseminação da homofobia, Stonewall reaparecerá, ao lado de outros episódios que levaram à articulação de resistências contra a ordem homofóbica reinante.