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2.1. Contornos históricos da homofobia

2.1.2. Os fundamentos religiosos da homofobia

Para as religiões judaico-cristãs, e ainda antes da emergência da burguesia como classe no poder e do capitalismo, a normatização da sexualidade concretiza-se na sua restrição ao casamento heterossexual e à sua função exclusivamente procriativa. Este é o motivo pelo qual, ainda hoje, algumas doutrinas, como a católica, entram em conflito com as propostas de controle da natalidade por métodos contraceptivos. As divergências contrapõem-se, por exemplo a advertências de especialistas em demografia sobre os riscos representados pela expansão da população, assim como pela medicina, preocupada, com problemas de saúde que determinada gravidez poderá trazer para a mulher. Embora a Igreja Católica seja sempre a mais lembrada quando da associação entre religião e homofobia, ela não é a única doutrina religiosa a combater os laços homoafetivos. Assim, diz-nos Luiz Angelo Dourado, autor de um dos primeiros estudos no Brasil sobre “homossexualismo”, em que ele apresenta, a partir de perspectivas

34 psicológicas e psicanalíticas, reinantes até os anos 1970 do século XX, as razões que associam as práticas homossexuais à delinquência:

A luta enérgica contra a homossexualidade começou com o judaísmo. O monoteísmo desenvolveu o monossexualismo. Além das razões religiosas, os judeus orientaram a questão sexual no sentido da procriação e enriquecimento em número da humanidade, condenando formalmente o vício helênico. O texto bíblico é claro em sua reprovação ao homossexualismo e o fogo divino foi a pena imposta a Sodoma e Gomorra. A Igreja Católica impossibilitada de coagir a pederastia com recursos espirituais decidiu-se, no ano 342, a puni-la criminalmente. Desencadearam-se impiedosas perseguições. O homossexualismo tornou-se execrando vício, castigado com as masmorras e as penas eternas do inferno. Em plena Idade Moderna, ainda continuava-se a queimar vivos, em vários países, os réus do então chamado “crime nefando”. (DOURADO, 1967, p. 18)

Particularmente importante na análise de Dourado é a indicação de que, em suas origens, a condenação judaica às relações entre pessoas de mesmo gênero tiveram como princípio a necessidade de aumento da população, partindo da premissa de que relações entre gêneros iguais colocariam em risco a própria sobrevivência das raças. Nota-se, aí, que impera um princípio de produtividade, marcada por elementos demográficos – com finalidades inclusive de preparação para eventuais guerras – como força de regulação dos laços afetivos e sexuais, que se manifestará também em outros momentos e culturas, como salientaremos adiante quando das discussões sobre as relações entre gêneros iguais nas culturas clássicas, incluindo a estratégia de manter como amantes soldados e guerreiros. O resultado dessa visão homofóbica, no entanto, sobrevive a diversas mudanças ao longo dos séculos, inclusive quando o problema da procriação passa a uma ordem inversa, com a necessidade de controle da natalidade, revelando a passagem de uma ordem discursiva sobre produtividade do campo mais imediatamente material para o simbólico. Em outros termos, fixaram-se as noções de condenação das relações entre pessoas de mesmo gênero de tal forma eficientemente, que invertidas as condições de aumento populacional pelo crescimento das taxas de natalidade, mantiveram-se intactas, e mesmo foram potencializadas, as injúrias e demais formas de depreciação contra amantes do mesmo gênero, agora justificadas por “leis naturais”.

Voltando às influências religiosas na condenação da homoafetividade, diz-nos Willian Naphy, em livro que aborda a história da homossexualidade:

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Onde deparamos com uma diferença acentuada, historicamente, nesta reacção humana universal à homossexualidade é nas três grandes religiões monoteístas: judaísmo, cristianismo, islamismo. Como já vimos, porém, a reacção islâmica tem sido menos inflexível e mais complacente com os actos homossexuais, exigindo no entanto que o requisito de procriar seja cumprido. Esta atitude resulta sobretudo da grande segregação dos sexos – na realidade, o compromisso implica que algumas actividades homossexuais sejam ignoradas para permitir a reclusão sexual das mulheres. O judaísmo e o cristianismo, por outro lado, adoptaram uma atitude muito menos conciliadora com a homossexualidade. A realidade, contudo, é que durante quase dois milénios o judaísmo não esteve em condições de regulamentar a vida de indivíduos e, nessas circunstâncias, coube em grande parte ao cristianismo regulamentar a sexualidade no mundo “judaico-cristão”. (NAPHY, 2004, p. 284)

Assim como a análise de Luiz Dourado aponta para o Judaísmo como religião que condena a homossexualidade com base na necessidade de aumento da população, Willian Naphy também aponta no islamismo tendência a inserir as relações sexuais no campo da necessária procriação, embora em sentido distinto, pois as religiões islâmicas tenderiam a “fechar os olhos” para as práticas homoafetivas, desde que elas não interfiram na reprodução da espécie, assim como preservem as mulheres. Nesse sentido, a abordagem de Naphy destaca que a constituição de haréns acabaria, em algumas tradições islâmicas, necessitando mesmo de relacionamentos entre pessoas de mesmo gênero, em consequência de uma certa “escassez” de mulheres, principalmente para estratos da população masculina de menor poder econômico e pouco prestígio social. A acrescentar, no entanto, que a relativa tolerância do islamismo com a homossexualidade está restrita aos princípios religiosos, pois acontecimentos recentes em países de tradição islâmica são claramente indicadores de ações políticas e jurídicas de criminalização das relações entre pessoas de mesmo gênero, inclusive com a pena de morte10 (PAPÍ, 2007, OTOSSON, 2009).

10 Leiam-se, a propósito, notícias publicadas sobre o tema, retiradas de

http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u86191.shtml, sob o título “Nobel da Paz condena enforcamento de homossexuais no Irã”, consultado no dia 01 de outubro de 2009, às 9h26; de http://noticias.gospelmais.com.br/direito-dos-gays-divide-brasil-e-paises-islamicos-na-onu.html, sob o título “Direitos dos gays divide Brasil e países islâmicos na ONU”, consultado no dia 01 de outubro de 2009, às 9h53; de http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/clipping/outubro-2008/islamicos-querem-impedir-entidade- do-brasil-de-defender-gays-na-onu/, sob o título “Islâmicos querem impedir entidade do Brasil de defender gays na ONU”, consultado no dia 01 de outubro de 2009, às 9h56; e de http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL66907-5602,00-

IRA+CONDENA+A+MORTE+POR+ESTUPRO+ADULTERIO+E+HOMOSSEXUALIDADE.html, sob o título “Irã condena à morte 20 por estupro, adultério e homossexualidade”, consultado no dia 01 de outubro de 2009, às 9 h28.

36 No entanto, se parece haver consenso quanto às origens judaico-cristãs da condenação da homossexualidade, ao lado da tradição islâmica (NAPHY, 2004; PAPÍ, 2007), está longe de haver consenso sobre a interpretação de trechos bíblicos e dos livros sagrados do islamismo como explicitamente condenadores da prática do amor entre pessoas do mesmo gênero (HILTON, 1992; SPENCER, 1996; ALLEN, 2006; PAPÍ, 2007; ERIBON, 2008). Na esteira do conflito, especialmente aqueles relativos à exegese dos textos do Antigo Testamento e de São Paulo, encontramos igrejas e instituições de cunho religioso que condenam veementemente as homossexualidades, inclusive procurando “curá-las”, a exemplo da Êxodus Internacional (DAVIES e RENTZEL, 1997). Mas há também igrejas e religiosos que buscam nos mesmos textos bíblicos e nos textos sagrados da tradição islâmica que condenariam as relações homoafetivas as razões para a sua aceitação com base no amor de Deus (HILTON, 1992; PAPÍ, 2007). É assim que, atualmente, as formas religiosas são, ora francamente hostis às relações homoafetivas, ora francamente favoráveis a elas, inclusive com a criação de igrejas inclusivas criadas com a finalidade de acolher pessoas LGBTT (SÁNCHEZ, 2009), ora ambíguas quanto à condenação ou aceitação, o que pode incluir diferenças no interior de uma mesma congregação religiosa. Juan Antonio Férriz Papí, ao analisar as formas de manifestação da homofobia em diversas vertentes do cristianismo, do judaísmo e do islamismo, afirma que o recrudescimento de posições monolíticas e fundamentalistas no interior das três tradições religiosas tem provocado a criação de movimentos em sentido contrário. Estes têm promovido leituras anti-homofóbicas dos textos sagrados dessas tradições religiosas, em ações claramente políticas, contando, inclusive, com homossexuais de todos os gêneros nessa militância (PAPÍ, 2007).

Apenas a título de ilustração, sem pretender abarcar a multiplicidade de congregações e pensamentos religiosos, são visíveis as discrepâncias entre a condenação veemente que o Vaticano faz da homossexualidade e as políticas de tolerância11 de certos setores dentro do catolicismo (VIDAL, et al., 1985; LEERS e TRANSFERETTI, 2002; PAPÍ,

11 As práticas de tolerância, amplamente convocadas por grupos ou pessoas quando da constatação de

suas atitudes e ações preconceituosas, no entanto, podem não resultar em comportamentos anti- homofóbicos. Tolerar pode ser simplesmente ignorar os relacionamentos entre pessoas de mesmo gênero, com a condição de que elas se anulem, bem como não deixem transparecer seus afetos, trejeitos, desejos e amores. Tolerar, assim, está muito distante de aceitar e, mais importante, não garante, pelo contrário, acentua, a suposta normalidade dos rechaços com forte matização homofóbica. Vale lembrar que a tolerância tem sido reivindicada não somente por instituições religiosas, mas por uma grande diversidade de instituições das mais variadas esferas sociais: políticas, econômicas, culturais, sindicais etc., bem como por pessoas em múltiplas localizações sociais.

37 2007). Do mesmo modo, é interessante notar outra forma de tolerância, dessa vez do espiritismo, que propõe-se não julgar, mas compreender a homossexualidade, a partir do princípio espírita de que as manifestações da sexualidade encontram-se na esfera da evolução espiritual de cada ser (VIEIRA, 2007). Portanto, até que o espírito esteja evoluído, ele passará, assim como em outras esferas, por aperfeiçoamentos também na da sexualidade.