• Nenhum resultado encontrado

2.1. Contornos históricos da homofobia

2.1.6. O campo jurídico da sexualidade

As contribuições do direito à história das homossexualidades e da homofobia também são marcadas por controvérsias, por posições contraditórias quando verificadas nos marcos institucionais de países diversos. É assim que, se num primeiro momento suas preocupações estavam na busca de instrumentos punitivos, na atualidade é possível verificar princípios legais punitivos, mas também aqueles que visam assegurar que as muitas ameaças advindas de sexualidades fora dos “padrões de normalidade” não venham a importunar a tranquilidade social, de que é paradigmática a luta contra a pedofilia. Por outro lado, princípios jurídicos têm sido fundamentais para o reconhecimento de direitos iguais para pessoas LGBTT e mesmo para a criminalização da homofobia, com visíveis contrastes, pois no interior de um mesmo país é possível encontrar regiões que criminalizam a homofobia com outras em que tal prática encontra resistências para aprovação legal.

Uma breve história das relações do campo jurídico e legal com as homossexualidades, contribuindo para o reforço da homofobia, aponta, em primeiro lugar, para a estreita relação entre as religiões, especialmente a Católica e a nascida da Reforma Protestante (DOURADO, 1967; SPENCER, 1996; NAPHY, 2004). As fogueiras inquisitoriais constituem as marcas mais trágicas dessa relação, instaurando um clima de terror sem precedentes para pessoas que se relacionavam com gêneros iguais.

A partir do século XIV na Europa, a homossexualidade, já associada à heresia e à usura, foi ligada a algo mais sinistro – feitiçaria e demonismo. Não surpreende, portanto, que a natureza humana relacionada com isso fingisse que o ato da união homossexual era coisa que não lhe dizia respeito. (SPENCER, 1996, p. 121)

As perseguições não pouparam nem mesmo religiosos, como os reveses sofridos pela Ordem dos Templários (SPENCER, 1996), fazendo com que a melhor alternativa fosse criar estratégias de dissimulação das relações com pessoas de mesmo gênero. Para Colin

17 Retirado de http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1407200913.htm, sob o título “Psicóloga que

diz ‘curar’ gay vai a julgamento em conselho”, consultado no dia 30 de outubro de 2009, às 11h45, e de http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1407200915.htm, sob o título "É a Inquisição para héteros", diz terapeuta, consultado no dia 30 de outubro de 2009, às 11h45.

48 Spencer, as relações entre religiosidades e práticas jurídicas não foram rompidas nem mesmo com o surgimento do Iluminismo, que em sua avaliação, em nada contribuiu para reverter o quadro de condenação das práticas homossexuais, ao contrário do que se poderia esperar de um sistema de pensamento comprometido com a superação da “era das trevas”.

As grandes transformações no tocante aos artifícios legais referentes às relações entre pessoas de mesmo gênero começam a se verificar a partir do século XIX, com a abolição das penas de morte em quase todos os países da Europa e nos Estados Unidos, porém com a sua substituição por outros dispositivos jurídicos que em nada aliviavam os preconceitos e a condenação ética, moral e legal da homossexualidade. Pelo contrário, na avaliação de alguns estudiosos (SPENCER, 1996; NAPHY, 2004), tornando ainda mais arraigados os sentimentos homofóbicos, posto que as novas ordens jurídicas tinham agora à sua disposição, além da condenação moral de fundo religioso, novos discursos, mais poderosos, já que revestidos de suposta racionalidade. Estes foram oferecidos pelas mais diversas descobertas em variados campos das ciências, que começam, com o Iluminismo, a ocupar o lugar das tradições mi(s)ticas e religiosas. Às teses medicocientíficas gerais sobre as homossexualidades somaram-se estudos desenvolvidos especificamente por pioneiros do que poderia ser considerada a primeira investida de pesquisadores declaradamente homossexuais, incluindo literatos, como André Gide, cujas obras, ironicamente, acabaram por auxiliar no reforço da perseguição legal aos amantes do mesmo gênero (SPENCER, 1996; NAPHY, 2004; ERIBON, 2008).

É assim que entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX a homofobia será amplamente difundida por princípios legais, com a condenação por crimes de sodomia, vadiagem e outros, em proporções, segundo alguns estudiosos, muito maiores do que aquelas verificadas no período das trevas impostas pela inquisição (SPENCER, 1996; NAPHY, 2004). No Brasil, país que naquele período, como na atualidade, não havia legislação criminalizando os relacionamentos entre pessoas de mesmo gênero, as condenações não deixaram de existir. As perseguições policiais e condenações judiciais foram realizadas a partir do artifício jurídico da condenação por vadiagem (TREVISAN, 2000). Paradigmática do alcance legal da homofobia foi a condenação, na Inglaterra, do escritor irlandês Oscar Wilde, próximo à virada do século:

49

A palavra homossexualismo tinha sido recém-incorporada à língua e Wilde foi sua primeira vítima. Com sua condenação, a homofobia institucionalizada atingia seu ponto mais alto, embora, infelizmente, fosse atingir um patamar ainda mais alto, que se manteve durante os 70 anos seguintes. [...] Wilde tem um significado extra para esta história, porque imprimiu uma característica indelével na própria homossexualidade. Sua condenação e prisão a criminalizaram; depois dessa data, nenhum homossexual podia estar livre do medo de ser detido, acusado e jogado na prisão. Na cabeça do povo, o homossexual era uma coisa impensável (minha mãe, que nasceu no ano em que Wilde morreu, me contou que durante sua infância e adolescência o nome de Wilde jamais foi mencionado em sua casa, apesar de pertencer a uma família razoavelmente liberal). Essa autocensura dentro da sociedade tornava-se mais arraigada na medida em que a sociedade era forçada a pensar sobre o crime, uma vez que os escândalos continuaram, e então a fantasia que se havia criado em torno de Wilde foi exumada. (SPENCER, 1996, pp. 270-271)

A condenação de Wilde significou, para muitos pesquisadores, um marco duplamente importante: do recrudescimento da homofobia com amplo amparo medicocientífico e legal; e do início, ainda que tímido, de reações mais politizadas contra as práticas institucionalizadas de perseguição. Especialmente na Inglaterra e na Alemanha, religiosos, políticos, diplomatas, artistas de todas as áreas, homens e mulheres, perderam cargos, prestígio e fortunas, envolvidos em escândalos e processos movidos por crime de sodomia, criando um ambiente de terror que não encontrou freios até o clímax, atingido com o holocausto de gays e lésbicas promovido pelo nazismo (SPENCER, 1996; BORILLO, 2001; NAPHY, 2004; SIMONIS, 2007; ERIBON, 2008).

Mas foi exatamente o recrudescimento da homofobia institucionalizada que levou, após a Segunda Guerra Mundial, a reações que começaram a se espalhar por diversos países da Europa e nos Estados Unidos, onde o senador Josef Raymond McCarthy impôs clima de terror aos homossexuais por meio das perseguições patrocinadas por sua política de “caça às bruxas”, envolvendo comunistas e outros “subversivos”. O McCartismo veio reforçar políticas conservadoras que já vinham atingindo membros de corporações estatais civis e militares, produções cinematográficas e musicais, além de homens e mulheres anônimos. Entre o final da Segunda Guerra e os anos 1960, Europa e Estados Unidos são os locais onde a reação começa a ficar mais vigorosa, a princípio, solicitando o fim dos dispositivos legais que criminalizavam as práticas sexuais entre pessoas de mesmo gênero, mas passando logo depois para a criação e/ou ampliação de clubes e outras formas de organização política, de homens e mulheres homossexuais,

50 que conseguiram, aos poucos, impor as reivindicações por igualdade e cidadania para pessoas vítimas de perseguição por motivos sexuais (SPENCER, 1996).

Os movimentos feministas e contraculturais que se espalharam mundo afora a partir da década de 1960 fincaram, de vez, as raízes que têm, a partir de então, fomentado os movimentos LGBTT e suas reivindicações, colocando-os em posição de visibilidade sempre crescente, inclusive no Brasil, (TREVISAN, 2000; NUNAM, 2003; CARRARA, GREGORI e PISCITELLI, 2004; FACCHINI, 2005, PRADO e MACHADO, 2008; POSSO, 2009). Estes grupos têm se mostrado mais fortes a cada ataque homofóbico mais explícito, de que é paradigmático o episódio de violência no Bar Stonewall anteriormente referido. Questões como casamento entre pessoas de mesmo gênero, adoções legais de crianças, direitos a herança e a pensões de parceiros (as) são apenas algumas das que colocam em xeque a ordem jurídica homofóbica. O que se pretende vai além, tendo a criminalização da homofobia como parte de um amplo processo de reeducação para a aceitação das diferenças, processo que, em alguns países, já é realidade (SPENCER, 1996; NAPHY, 2004; GONZÁLEZ, 2007; SIMONIS, 2007; ERIBON, 2008). No entanto, conforme já aludido, há diferenças substanciais entre países e mesmo no interior de um mesmo país, a exemplo da punição de homossexuais com a morte em vigor nalgumas partes do mundo, especialmente de tradição islâmica (OTOSSON, 2009).

No Brasil, várias dessas conquistas ainda não são vislumbradas para muito próximo, mas há políticas governamentais de combate à homofobia18, na lacuna de leis, bem como cada vez mais decisões judiciais sobre direito a pensão, adoção por pessoas homossexuais e outras conquistas de cidadania para as pessoas LGBTT, que formam uma ainda tímida jurisprudência. Outra iniciativa no campo jurídico foi a arguição de descumprimento de preceito fundamental proposta ao Supremo Tribunal Federal, pela procuradora-geral da República, Deborah Duprat, no sentido de reconhecer a união entre pessoas de mesmo gênero19. A garantia de direitos iguais e a criminalização da

18 Conforme dados retirados de http://noticias.uol.com.br/politica/2009/05/14/ult5773u1188.jhtm,

consultado em 14 de maio de 2009, às 18h45, sob o título “Plano do governo defende adoção e direitos civis para casais homossexuais”; e de http://noticias.uol.com.br/politica/2009/05/14/ult5773u1190.jhtm, consultado em 14 de maio de 2009, às 19h27, sob o título “Plano de metas do governo prevê fim da criminalização a militares gays”.

19 Conforme dados retirados de http://colunistas.ig.com.br/luisnassif/2009/07/02/a-protecao-a-uniao-

homossexual/comment-page-1/, consultado em 03 de outubro de 2009, à 1h09, sob o título “A proteção à união homossexual.”

51 homofobia têm projetos de leis sempre postergados em suas votações pelo Congresso Nacional, por pressão de grupos conservadores, representados no legislativo, principalmente, pelas chamadas bancadas evangélicas e católicas. Elas vencem, assim, as reivindicações de grupos de defesa dos direitos humanos e cidadania LGBTT e as milhões de pessoas que, anualmente, saem às ruas de diversas cidades brasileiras nas passeatas pelo Orgulho LGBTT, que tem em São Paulo a maior do gênero no mundo. Como parte de embates políticos, a realidade brasileira é ilustrativa do quanto a homofobia e suas práticas são, não somente desafiadoras, como reveladoras de regularidades e irregularidades, quando observadas no fluxo histórico.

Regularidades e irregularidades que, de resto, podem ser observadas também em outros lugares no mundo. Mas também no que diz respeito aos modos como as diversas instâncias por nós abordadas têm se comportado ao longo da história, a partir da ação de pessoas que combatem a homofobia. Nesse sentido, se a perspectiva de uma certa noção de produtividade econômica e simbólica, nos termos que apresentamos anteriormente, esteve no horizonte das construções discursivas sobre a homofobia, é fundamental perceber que elas também estão no horizonte da desconstrução discursiva que tem sido levada a cabo rumo à superação das manifestações homofóbicas. É assim que lutas empreendidas por grupos de defesa de direitos humanos e cidadania LBGTT têm proposto novas perspectivas produtivas, ressaltando, a partir de princípios econômicos, éticos, morais, religiosos, pedagógicos, culturais, comportamentais, médicos, psicanalíticos, psicológicos, psiquiátricos, científicos e jurídicos a urgência de se estabelecer de fato a igualdade de direitos e deveres entre os gêneros e suas variâncias nas relações afetivas e sexuais. Uma produtividade, especialmente de natureza simbólica, fundada na necessidade de superação do dispêndio de energia gasta para evitar que pessoas sejam aniquiladas física e psicologicamente pela homofobia.

Como é para a família, destaca Foucault (2006), que os discursos sobre a sexualidade são dirigidos, resultando em ampla difusão de preceitos sobre condutas sexuais e sexualidades “sadias/aceitáveis”, é em novos arranjos familiares (CARRARA, GREGORI e PISCITELLI, 2004; GIMENO, 2007; PAIVA, 2007; SIMONIS, 2007; SÁNCHEZ, 2009) que se encontra parte significativa do trabalho de eliminação da homofobia. Isso porque para a família funcionar como centro irradiador da homofobia, seu modelo é derivado de um discurso bastante específico: ela deve resultar de uma

52 união monogâmica, heterossexual e reprodutivista. Aqui temos a convergência de todos os discursos sobre a sexualidade tão empenhadamente levados a cabo: sua matriz heterossexista e reprodutivista, responsável, em larga medida, pela instauração e disseminação da homofobia, posto que rechaça qualquer manifestação de afeto e formas de sexualidade ou modos de vida identificados com lésbicas, homossexuais, bissexuais, travestis, transexuais, interssexuais e suas múltiplas possibilidades de variâncias.